Ana Carolina Assis é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu trabalho na biblioteca de uma escola, então de segunda a quinta minhas manhãs são: acordar, preparar algo pra comer e sair pro trabalho. Aí recebo duas ou três turmas de 20 crianças que podem ter de 6 a 11 anos e a gente lê junto, eu conto histórias, ou proponho alguma atividade que tenha a ver com literatura.
Nos fins de semana, acordo mais tarde. Minhas manhãs são muito mal-humoradas, então geralmente me concentro em acordar, comer com calma, ouvir alguma música que melhore o astral pro dia.
Então a manhã não é um boom momento de leitura e escrita pra mim.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto de ler e escrever nos fins da tarde e à noite, principalmente por causa do calor que faz no Méier, onde moro. Para começar a escrever, sinto que preciso criar um clima, suspender o resto das coisas que aconteceram no dia e me enfiar no meio das palavras. Como sou muito dispersa, isso me ajuda também a viver o momento com mais concentração. Geralmente releio autoras e autores de que gosto e que de alguma forma tem a ver com o que estou querendo escrever naquele momento. Assim consigo trabalhar com qualidade por um tempo mais longo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias, mas recentemente voltei a ter um diário, muito pra me forçar a registrar algumas impressões cotidianas, apesar do cansaço do trabalho e da organização da vida. Nunca trabalhei com a ideia de meta. Geralmente tem algum tema ou projeto me rondando e nessas épocas produzo mais, porque acabo ficando mais atenta aos acontecimentos e imagens que, pra mim, têm a ver com esse tema ou projeto.
Recentemente, por exemplo, eu estava fechando o meu primeiro livro, então foi uma época de bastante trabalho de revisão e organização do livro, e menos de escrita em si.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sempre tenho algum caderninho por perto, e às vezes uso as notas do celular pra registrar as ideias que vão me ocorrendo ao longo dos dias. Geralmente uma coisa externa a essas notas é o que me move a sentar e escrever de fato. Algo que me choca ou mexe com a sensibilidade de algum jeito intenso. O corpo maior do poema acaba sendo algo que não tinha a ver com o tema e o tema em si vira o ambiente onde o poema acontece. Por isso, acho, tenho uma facilidade maior de escrever séries de poemas, ou variações em torno de um tema durante um tempo, ao invés de coisas mais pontuais.
Ultimamente tenho trabalhado muito em torno de memórias pessoais ou de coisas que vi em São Gonçalo, onde morei a vida inteira e de onde me mudei recentemente. Depois que me mudei, tem acontecido muito de um fato externo me lembrar algo que vivi, de uma maneira muito intensa. Por exemplo, quando aconteceu o crime ambiental de Mariana, me lembrei da casa onde morei pequeninha e que alagava, lembrei principalmente do cheiro de bicho que a lama tem e escrevi um poema em torno disso.
Quando sento pra escrever, escrevo o poema todo com alguma facilidade, parece mais um registro rápido das ideias. Essa parte não é difícil. O que acho mais complicado é depois mexer no que já está escrito, trocar palavras, cortar, refazer, até ficar com uma cara boa. Por isso, gosto de escrever num impulso, deixar o texto descansar uns dias e depois, quando eu to mais descolada da experiência real que me levou ao poema, quando to menos impressionada, aí volto a trabalhar mais tecnicamente nele.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Foi muito importante pra mim entender que sou uma pessoa lenta. Escrevo devagar, demoro um tempo no mesmo poema, fico dias e dias sem escrever nada. Depois de um tempo deixei de ler isso como uma trava exatamente e percebi que é um tempo de observação das coisas, de sentir de outro jeito e depois voltar a escrever.
Quando os intervalos são grandes, por causa de algum projeto que me toma a cabeça, ou do cansaço do trabalho, tento não ficar ansiosa pra não acabar escrevendo só por escrever. Escrever poemas é uma das coisas que eu mais amo na vida e por isso tento não neurotizar demais esse processo, pra poder escrever coisas em que eu acredito de verdade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É difícil saber essa medida, porque sinto que tenho que desistir do texto e não aprontá-lo. Isso por causa desses retornos que faço e vou trocando os elementos que já estão escritos, e aí chega a hora em que sinto que eu tenho que entregar aquele material pro mundo do jeito que está, aí mostro pra pessoas que são mais próximas e depois de ajustar a partir das sugestões delas, considero o texto pronto.
Até ano passado, eu fazia parte da OEP (Oficina Experimental de Poesia). Lá a gente tinha uma prática chamada Lanternagem. Nesse dia, a gente levava nosso poema com cópias pra todo mundo ler, e a regra era só escutar as sugestões e as leituras dos outros. Era uma experiência muito potente porque era uma chance de ver se o poema tava funcionando lido em outras vozes e não só como você imaginou, além de ouvir sugestões de gente muito diferente e que escreve e lê de outros jeitos.
Desde 2015 até 2018, que foi quando o coletivo acabou, esses dias de lanternagem foram os momentos de troca mais intensos que tive tanto com relação aos meus textos quanto com as outras produções. Sinto que meu livro foi, de alguma forma, montado e fechado ali, ao vivo. A maioria dos poemas que está n’ A primavera das pragas passou por esse processo.
Agora, as trocas são mais por e-mail com algumas poucas amigas e amigos e, primeiro, geralmente, com o meu companheiro, Rafael Zacca, que também é poeta e crítico.
Então, sim, acho muito importante essa conversa entre escritores(as) e leitores(as) mais próximos, que acontece nos bastidores e que faz com que nenhum livro seja feito somente a duas mãos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando comecei a escrever, adolescente, fazia muito mais nos cadernos. Hoje em dia acho mais prático escrever no computador de uma vez. O caderno fica como um bloco de anotações das ideias ou versos iniciais e quando vou escrever o poema já prefiro digitar. Como o processo entre a escrita inicial e a primeira mexida me exige um intervalo, acho mais prático que essa primeira versão seja mesmo digital.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como eu disse antes, tenho trabalhado muito com as minhas memórias. É claro que acabo inventando a partir delas, seja no campo do sentido, seja sendo levada pelo próprio som das palavras ao longo do poema. É muito divertido poder trair uma memória e vê-la se transformando nessa coisa no mundo que é o poema.
Uma coisa que também aprendi com a OEP é que eu podia falar de coisas “sujas” nos poemas. Que o poema não precisava ser algo sublime, com uma linguagem determinada e um campo de palavras limitado onde quem escreve pode se mover. Lá descobri que eu podia falar de lama, mangue, das pessoas pobres com quem convivi, das incertezas e sujeiras do meu corpo e de uma cidade cheia de bichos. Descobri que não é só a sensibilidade da Zona Sul praiana que interessa.
Quanto aos hábitos, acho que o fundamental é a mistura da leitura das autoras e autores que me formaram com a galera que tá escrevendo agora perto de mim. Além disso, a prática das oficinas, estar em salas de aula e ambientes de conversa sobre literatura sempre me dão um gás pra escrever. Sempre acontece aquela escapadinha da atenção ao assunto da aula pra rabiscar um verso ou uma ideia nas últimas páginas do caderno.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Uma coisa que mudou foi o meu entendimento da função da escrita na minha vida. Eu era uma adolescente ultra sensível e pra mim a escrita servia como desabafo dessas coisas que eu tinha por dentro. Isso me fazia escrever coisas super sentimentais, clássicos da juventude, né?
Eu achava que um poema precisava ser muito bonito, e muito bonito significava palavras truncadas, sentido fechado, super elaboração de cada pedacinho. Era como se precisasse provar que aquele texto era bom. Uma vontade muito grande que tenho agora é que meus poemas sejam simples, lidos por qualquer um e ainda assim tenham ali dentro todo um universo elaborado, interessante. Isso me permite escrever um ou outro verso mais engraçado, usar uma linguagem mais falada e, principalmente, gostar de estar escrevendo.
Agora acho que a escrita é algo que me constitui. Assim: eu sou uma escritora, escrevo porque preciso, porque isso me forma como pessoa, é como eu me entendo no mundo e é também por onde passa a maioria das minhas relações. Me entender como escritora não foi um processo simples. Foi perceber que eu tenho uma postura artística no mundo e isso é relevante. Pra algumas pessoas, se levar a sério pode ser um processo mais simples, mas pra mim foi custoso.
Então eu acho que se eu pudesse me falar algo há uns bons dez anos atrás, seria uma coisa muito simples, mas que faz toda a diferença. Eu diria: Ana, você é uma mulher que escreve, uma escritora.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Como acabei de escrever um livro, o que quero é conseguir escrever outro livro, que agora parece impossível. Inventei um microcosmo, estou largando ele no mundo e o que espero é daqui a um tempo conseguir criar outro e outro.
O livro que quero ler, e que talvez já até exista, é de uma mulher que conta histórias de outras mulheres na sua dimensão de força. Que expõe uma genealogia da literatura escrita por mulheres ao mesmo tempo em que conta a sua própria história de família. E que essa história não seja de violação dos nossos corpos mas de construção e trabalho que estruturam a vida.