Ana Beatriz Domingues é poeta, indígena por parte de mãe, cabocla, mestiza.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar com a luz do dia, do contrário acabo dormindo demais. Em geral, desperto cedo e quando posso, reservo esse momento para o meu autocuidado. A vida, pra mim é um grande ritual e as manhãs servem para cuidar do meu corpo, mente e espírito. Medito e faço Yoga. Bebo uma água morna com limão e em seguida o café da manhã. Amo café, me lembra casa de vó. Meu avô me ensinou a fazê-lo quando eu era adolescente, me dizia que era uma coisa muito séria, que a água precisava ser filtrada e nunca deixá-la ferver pois queimaria o pó. Ele passava o café no escuro, bem cedo, antes que todos acordassem. Penso muito nessa imagem, ele na penumbra, em silêncio, ele e a casa, enquanto aquele cheiro maravilhoso perfumava o ar. Essa memória é um afago, quando passo um café é como se eu me reunisse com os meus mais velhos. Vai ver é por isso que sirvo sempre o Preto Velho primeiro e depois bebo o meu, com um pouco de açúcar, sem culpa. Depois das primeiras horas, cuido da casa, das plantas e sento-me para responder e-mails, ver as redes sociais, ler algo, preparar aulas e escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Aprecio as manhãs e igualmente a noite, as tardes são o meu pior momento para escrever e normalmente é quando estou trabalhando fora de casa. Meu ritual é sempre organizar a casa e a minha mesa de trabalho. Não consigo escrever com bagunça, parece que o cérebro não funciona direito. Gosto de revisitar os textos em aberto e coisas antigas. É como se elas fossem índices do que sou e como se eu precisasse sempre me reinterpretar para seguir escrevendo. Alguns poemas são como orações.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo sempre mas sem uma produção diária necessariamente. Com frequência, surgem escritos no ônibus e no metrô. Moro em São Paulo e os deslocamentos são grandes pela cidade, então tento sempre despistar a dureza do concreto criando algo enquanto a cidade me atravessa. Tento não me curvar à ela e escrever no trânsito me ajuda a descobrir fraturas possíveis, curvas para respirar melhor. É uma batalha perdida de antemão, às vezes, no entanto, venço.
Jamais conseguiria ter uma meta de escrita, meu processo é caótico e o que me proponho é conseguir, sempre que possível, estar disponível(nem que seja para fazer notas ou imagens) e isso pode acontecer na rua, numa fila de banco, no supermercado, no intervalo do trabalho ou numa periferia rural de Ubatuba (meu refúgio e lugar que vou sempre que posso).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é estar aberta para a escrita diariamente, vou até os textos, releio cadernos antigos, notas perdidas em gavetas e no celular. A pesquisa surge como parte do caos, em alguns momentos é ela que move o texto, em outros o texto surge primeiro e a partir dele vou à busca de mais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Vivi muitos anos no armário como escritora, escrevo desde sempre, mas demorei mais de trinta anos para conseguir me dizer poeta. Achava que eu apenas escrevia ‘umas coisas’, tinha vergonha de compartilhar os meus textos, ainda que tivesse um blog desde 2005, em que compartilhava meus poemas com uma rede bem pequena de pessoas.
Posso dizer que estar contato com outras poetas me fortaleceu muito nesse sentido, de ter coragem em acreditar no que escrevia, que existia alguma potência ali e que valia a pena colocar minhas palavras no mundo. Três amigas poetas foram fundamentais para isso, a Aline Miranda, a Rita Isadora Pessoa e a Carina Carvalho (que conheci justamente através de um outro blog). Ali nas páginas online, trocávamos poesias, comentávamos os textos uma das outras e construíamos uma rede de afeto e fortalecimento de nós enquanto escritoras. De algum modo, sinto que a poesia delas também me formou, que a gente cresceu juntas e isso é de uma beleza sem tamanho. Não à toa, Aline prefaciou e Rita fez a orelha de “Atlântida”, meu primeiro livro. Em 2018, depois de quinze anos, voltei a morar em São Paulo (havia passado a adolescência na cidade e depois voltei ao Rio para estudar) e uma das vontades com esse retorno à Babilônia era colocar minha poesia na rua, conhecer pessoas e de alguma forma sair daquele armário. No ano passado, participei do CLIPE – Curso Livre de Preparação do Escritor na Casa das Rosas e isso foi fundamental para esse fortalecimento maior de redes de afeto e de minha afirmação enquanto poeta. Também estreitei os laços com a comunidade de escritoras lésbicas de São Paulo e do Rio, participando de Saraus, encontros e conversas. Me sentir parte foi fundamental para lidar melhor com as travas, as expectativas e as ansiedades em relação ao que produzo. Entender que a poesia é um universo vasto e que múltiplas são as suas possibilidades, entender os lugares onde me sinto bem e ancorar ali pra semear ideias!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende muito do trabalho. Alguns escrevo e de imediato já sinto que estão prontos. Tenho uma pasta chamada ‘poemas listos’ (escrevo bastante em espanhol também) e uma vez que coloquei o poema lá, ele não muda. Já na pasta ‘poemas abiertos’ fica um material que sinto que precisa ser decantado, às vezes levam meses, outras vezes dias.
Compartilho meus textos com algumas pessoas queridas. Amigas poetas em geral e depende do texto. Gosto de lê-los em voz alta, vez em quando os gravo e envio pra alguém pelo WhastApp, ninguém nunca reclamou.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Um lápis também é tecnologia, então tento extrair o máximo delas, sejam quais forem. Escrevo em cadernos que levo comigo e depois passo para o computador. Às vezes escrevo apenas no computador. Também faço notas e poemas em guardanapos pela cidade, adoro as manchas que a caneta faz no papel. O bloco de notas do celular tem sido bastante útil. Vez em quando escrevo na pele, acho bonito ver a tinta se perdendo ao longo do dia no meu corpo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Preciso me sentir atravessada, me deslocar dos lugares seguros e confortáveis. Esse lugar-abismo não é fácil, mas sem ele a vida vira engrenagem e a minha inspiração vem das derivas, das fraturas, das margens. Então não consigo ficar sempre no mesmo lugar, com o mesmo ritmo de vida ou ainda vendo sempre as mesmas pessoas. De alguma forma, estou falando de morte e de me abrir também para os bueiros. Criatividade a meu ver se relaciona com deslocamento, com estranhar algo e gerar uma resposta a isso. Conhecer gente diferente, andar por ruas novas, viajar, observar a cidade de outros ângulos, filmes, sons, bichos, grafites, o mar… tudo é potência, e desloca se me abro e deixo invadir. É um grande ato de comunhão a partir do incômodo, que pra mim é convite.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Passei a ser mais criteriosa nos últimos anos e ficar mais atenta até achar que o poema está pronto. Leio em voz alta e hoje me atento mais ao desenho do texto, à forma e ao ritmo que ele traz.
Eu diria a mim mesma para ler mais poetas mulheres e a desconfiar da literatura branca heteronormativa.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero escrever sobre o meu processo de afirmação enquanto mulher indígena. Fazer falar o silêncio imposto pela violência colonial, quebrar ainda mais armários e romper fronteiras. A poesia é uma arma quente e eu estou prontíssima pra batalha!
Quero ler os livros que as mulheres, pessoas LGBTQI+, indígenas e afrodescendentes ainda irão escrever. E serão muitos!