Amanda Vital é poeta, autora de Lux (Penalux, 2015) e Passagem (Patuá, 2019), editora-adjunta da revista Mallarmargens.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Como estudo à noite e chego tarde em casa, passo quase a manhã toda dormindo. Procrastino o máximo na cama e só vou pensar em me levantar quando o sol já ocupou toda a casa. Começo meu dia lentamente, me desenferrujando, limpando alguma bagunça deixada de madrugada e já ligando o computador para checar e-mails, mensagens, notificações das redes sociais e materiais para postar na Mallarmargens. Costumo preencher listas para organizar afazeres e estudos – deixo tudo em uma notinha na área de trabalho do computador, com alguns motes avulsos e anotações curtas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto mais de produzir durante a madrugada, mas sei que a qualquer hora do dia pode chegar o ímpeto, a vontade de escrever determinada sequência de palavras. Então pego um caderno ou meu celular para anotar. Prefiro escrever ouvindo músicas que me façam viajar dentro da minha própria mente, dentro do que estudei, vivenciei e observei recentemente. Começo o trampo imersa numa atmosfera confortável para mim e em um estado alterado de consciência. Acontece muito de ficar horas em jejum durante a escrita de um poema. Não é uma atividade romântica. Não consigo me alimentar durante a produção de um poema, apenas ler coisas da mesma temática que escrevo, e sou muito dispersa. Meus poemas vêm demorando muito a serem finalizados. E não vêm sóbrios. Escrever fora de um estado “normal” aguça as antenas captadoras de poesia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Faço um poema por mês, no mínimo. Mas não é uma questão de escolha, é de necessidade de verbalização. É algo que acaba acontecendo. Já “forcei” muito poema que não deveria forçar, porque achava que o escritor precisava espremer a cabeça para fazer literatura, mas percebi que, para mim, isso gerava materiais mais fracos do que os poemas que marinavam mais. Em 2015, fazia praticamente um poema por dia. Talvez isso funcione para algumas pessoas e elas fiquem satisfeitas com seus materiais, mas a coisa comigo tem que vir mais lenta, gradativa, envolvendo muitas leituras no caminho.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pego um mote avulso entre todos os que registro nas minhas anotações e vou produzindo a partir dele. Talvez o mote fique no começo do poema, talvez no meio ou no fim, e algumas vezes ele simplesmente desaparece, dissolvido no meio das composições, embolado no meio de outras imagens. Vou lendo, relendo, puxo um monte de abas de pesquisa do Google e pego alguns livros para poder mergulhar no universo daquilo que escrevo. Não acho difícil, mas acho bastante exaustivo. Levo horas encarando uma mesma tela brilhante, um mesmo conjunto de versos. A cabeça e a barriga doem muito nesse processo, a mente voa e acessa lugares desconhecidos, intocados. Para mim, é um exercício quase psicodélico. Como falei mais acima, passo muita fome durante a escrita e teço poemas em estados alterados de consciência. O curioso é que, assim que termino, é como se saísse do transe: do nada, a barriga ronca e eu sinto como se retornasse à realidade. E minhas pesquisas são essenciais para a escrita, porque produzo bem mais a partir do que leio do que a partir do que eu vivencio. Tenho gostado de pesquisar e ler poesias voltadas ao político, à denúncia e à catástrofe. Também leio muito a épica grega.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Aceito as travas. Aceito que temos nossos momentos e que, se não sinto vontade de escrever nada, simplesmente fico sem escrever e me envolvo em outros projetos. Vou ler, estudar, divulgar poesia. Acima de escritora, sou leitora. Mera aprendiz. E não tenho medo de não corresponder às expectativas, porque o que escrevo tem muitas emoções envolvidas. E isso já me basta. Não costumo ficar ansiosa com meus projetos, porque sou uma mera materializadora da poesia. O foco central deve ser a poesia, não a pessoa. E a poesia sempre vem no seu tempo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Altero bastante meus textos, porque vou alterando as imagens ao longo da escrita. Vou ocultando o que acho muito óbvio, vou percebendo o que não havia percebido. Quero dizer exatamente o que eu gostaria de dizer, tomo cuidado com os detalhes. A mesma coisa com os videopoemas que venho produzindo, sempre com uma coisa de cada vez: ensaio, gravo a declamação, compilo recortes de imagens, monto, edito e reedito várias vezes, até sentir que ficou pronto. Sei que está finalizado porque vem uma sensação de alívio, de trabalho completo, fechado. Mostro meus poemas quando escrevo sobre algo que conversei com alguém, ou que me lembrou determinada pessoa. Venho desenvolvendo uma crítica minha, própria, e confio nela.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Varia muito, mas uso mais o computador. Evito usar o celular durante as aulas, então tenho muitas anotações soltas em apostilas, livros, cadernos. Todas guardadas para eu buscar mais tarde. Meus primeiros poemas e crônicas foram rascunhados em diários. Tenho um livro inteiro que fiz com 13 anos com esses poemas coletados dos diários, dos caderninhos cheirosos. Ainda quero voltar a ter esse hábito de escrever no papel, sinto que temos menos distrações quando estamos longe da tecnologia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm do cotidiano e dos livros. Observo muito, vou coletando muitas imagens na mente, vou armazenando uma certa bagagem literária. A leitura me mantém criativa. Mantém a arte sempre por perto. Leituras diversificadas mantêm minhas engrenagens rodando. A literatura é minha companhia fiel, diária, indissociável do meu corpo e do meu espírito. Uma vez mergulhada inteiramente nesse meio, não consigo mais sair. E nem quero. Isso me mantém criativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Passei a escrever menos sobre mim e mais sobre o mundo, o lado de fora. Minha escrita começou muito egocêntrica, falando dos meus sentimentos, da minha rotina, de um cotidiano íntimo, próprio do diário, mesmo. A publicação do Lux foi um marco para isso, quando passei a ler mais do que escrever. Furar a bolha do universo que construí para mim depois do abuso sexual que sofri. Então, acho que essa foi a grande diferença: absorver mais do que transmitir. Não diria nada para mim se voltasse aos primeiros escritos, porque acho que todo o processo aconteceu como deveria acontecer.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho nenhum projeto em mente ou programado além do meu TCC, então diria meu TCC, mesmo. Por se tratar de um tema que tenho muito interesse em pesquisar, que é a poesia feita durante as manifestações de 2013 e o golpe de 2016, um campo ainda pouco explorado e necessário de ser analisado. E não consigo pensar em nenhum livro inexistente que gostaria de ler! A cada livro que leio, a cada poema que passa pelos meus olhos, me surpreendo mais com as possibilidades da literatura. Com o que ela consegue alcançar. Eu só gostaria de sempre ler livros e de sempre conhecer universos. Simplesmente isso.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Por enquanto, não faço planejamentos para a minha escrita. Falo em questão de temas, não em produção de livros e poemas pura e simplesmente. Pensei em escrever livros, séries de poesia e cadernos seguindo um único tema, mas não consigo organizar minha produção para se fechar em um caminho específico até o livro estar finalizado. Acho melhor assim: prefiro escrever com temáticas diversas, já que não tenho preferência por nenhuma. Por isso é que meus livros sempre são seleções de poemas recentes. Sobre a segunda pergunta, definitivamente, o mais difícil é escrever a última frase. Não tenho problema algum em começar poemas (até começo vários ao mesmo tempo), mas ir até o final, já é outra história. Ao passo que o “deixar fluir” sempre obedece alguma noção de autocrítica, alguma perspectiva de que o poema deveria ou não seguir por ali, alguma idealização de como ele deve continuar. Cada poema meu tem uma fluidez controlada, prevista, vamos dizer assim.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu preciso manter uma frequência de escrita de pelo menos um poema por semana, porque colaboro para dois blogs enquanto poeta: o Equimoses, fundado por Pedro Tiago, poeta português (meu namorado) e o Zona da Palavra, do poeta e professor Márcio Leitão. Em cada um deles, tenho um dia da semana para postar. Fora esses dois projetos, sou editora-adjunta da revista Mallarmargens, onde trabalho publicando seleções de poemas, contos, notícias e resenhas de autores contemporâneos. Ano passado, também me aconteceu de estar nesses três projetos e ter sido convidada a ser uma das curadoras da quarta edição da antologia Carnavalhame. É bem puxado, ainda mais que estou no primeiro semestre do meu Mestrado em Edição de Texto e preciso dividir o tempo com os estudos, que são minha prioridade. Mas eu gosto genuinamente de estar nesses espaços literários, sempre tirando um tempo da minha rotina para eles. São atividades que exerço com muito prazer e sinto que as pessoas estão confiando cada vez mais no meu trabalho como editora e escritora.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
São muitos os fatores que me motivam, não apenas um. Me sinto motivada quando termino um poema e me sinto bem com o que escrevo, quando tenho um círculo de leitores que acompanha meu trabalho (pessoas que não apenas leem, mas me dão retornos, fazem críticas, divulgam os poemas em suas redes) e quando percebo o reconhecimento da minha escrita por escritores, professores e editores que eu admiro. Não saberia dizer o que me deixa mais satisfeita, então fico com o conjunto de tudo isso. E minha escrita começou quando eu tinha uns nove ou dez anos de idade. Comecei a escrever por ser muito tímida, mas sempre observadora e apreciadora da leitura, e encontrei na escrita uma possibilidade melhor de me expressar. Até hoje, tenho muita insegurança em falar com as pessoas, sobretudo em público. Escrever é o que sempre funcionou para mim. A partir daí, não parei mais.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
A dificuldade maior do escritor, a meu ver, é a busca pela autenticidade. Não acredito na teoria de que tudo está escrito e que nossos poemas não passam de cópias de produções anteriores, porque as maneiras de escrever e os assuntos sobre os quais escrever não se esgotam. Logo, procuro fugir das repetições, das imagens óbvias, da reprodução de estilos que já foram trabalhados, justamente para não cair em contradição quanto a essa “originalidade contemporânea” em que acredito. Não sei se já desenvolvi um estilo próprio, mas estou no caminho. É difícil escolher apenas uma autora que tenha me influenciado, porque gosto de ler muitas, de cânones a marginais, de clássicas a contemporâneas. Arrisco dizer, ainda pela vontade de citar tantos nomes por aqui, que a autora que mais me influenciou até hoje – e segue influenciando – é a poeta Marceli Andresa Becker, que considero ser uma das maiores escritoras brasileiras da atualidade. Por sua poesia ser muito próxima de mim (não apenas pelo lado temporal, mas também por me identificar com o conteúdo), pela beleza autêntica do que ela escreve nos dias de hoje, pelo cuidado e trabalho que dedica à sua poesia, por admirar tanto seu processo criativo e suas escolhas de escrita. Minha admiração à poesia dela alinha técnica e subjetividade, e é por isso que ela influencia a minha.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Meu Campo, de Fiori Ferrari (Penalux, 2017): a poesia do Fiori é muito bem trabalhada – e não é um trabalho com a linguagem que transpareça qualquer artificialidade. Soa orgânico. O livro nos transporta a outros lugares, cumprindo quase a função de um romance ou uma novela, e é um grande alívio ler poemas como os dele nos tempos de hoje. É muito bom ter um autor que explore os temas da infância, do campo, das origens, da cidade de interior com tanta delicadeza e originalidade, e é bonito o que ele faz com esses temas, com um domínio nítido do próprio estilo de escrita.
Folha corrida: poemas escolhidos, de Sérgio de Castro Pinto (Escrituras, 2017): o Sérgio faz uma literatura que sobreviveria tranquilamente ao tempo, o que é muito interessante de se ter na contemporaneidade. E é importante frisar que sua obra não sobreviveria por conter demasiadas abstrações, o que não há, mas pela maneira como o autor utiliza a linguagem sem ser circunstancial, sem passar por modismos ou por impulsividades. Esse livro é uma coletânea com seleções dos melhores poemas de seus livros, de 1967 a 2017. É um dos meus livros de cabeceira e constantemente retorno a ele.
Garrafas ao mar, de Adriane Garcia (Penalux, 2018): gostei desse livro quase que de imediato. É uma poesia feita para e pela resistência, em uma luta cuja principal arma é a beleza. A obra foi lançada em um momento complicadíssimo e decisivo para o Brasil, que foram as eleições de 2018, o que faz do livro bastante simbólico. Porém, ao contrário de ser um livro pesado, acaba por ser um alento para sobreviver a esses tempos. Gosto muito da poesia que a Adriane faz, sempre gostei, e esse livro não poderia ter causado um efeito diferente em mim.