Álvaro Marins é pesquisador e editor no Museu Histórico Nacional, doutor em Teoria da Literatura e autor de “A mulher do fuzileiro” (2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu não sou exatamente um escritor profissional. Fora os compromissos mais acadêmicos, eu escrevo por prazer e por uma necessidade de narrar literariamente o mundo a minha volta. Não se pode deixar de levar em conta que eu sou um contista iniciante. Por isso, não tenho uma rotina estabelecida. A única época em que tive uma rotina matinal rígida para escrever foi quando escrevi a minha tese de doutorado, Machado de Assis e Lima Barreto: da ironia à sátira, publicada em 2004, pela Editora Utópus. É que na época eu tinha prazos para entregar a tese. Costumava acordar bem cedo e escrevia todos os dias de 6:30h às 8:30h, antes de sair para o trabalho. O trabalho acadêmico exige muito disciplina senão ele não anda. Quanto ao meu trabalho literário, eu tenho mais uma rotina de leituras, porque elas fazem parte do meu material de trabalho. A minha escrita está muito associada às minhas leituras. Procuro sempre entender os contos que estou escrevendo em sua relação com as tradições literárias, sejam elas criativas ou teóricas. As minhas rotinas estão mais relacionadas às minhas leituras, em geral no final da noite (durante a semana), e durante a tarde (nos finais de semana). Essas leituras me ajudam a organizar as ideias e, quando eu consigo amadurecer alguma, sinto que estou pronto para escrever. Aí, escrevo, não importando a hora e nem o lugar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando estou de férias, não é incomum eu escrever um pouco de manhã e um pouco no final da tarde. Mas como eu disse na resposta anterior, quando consigo elaborar uma ideia e uma forma clara para o que eu estou escrevendo, procuro arrumar uma brecha qualquer no meu dia-a-dia para colocá-la em prática. A preparação é a elaboração de um determinado pensamento e a melhor maneira de transcrevê-lo literariamente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Às vezes, quando temos um feriado mais longo, eu procuro escrever mais. Nas férias, acontece também de eu escrever mais. As minhas metas são mais de longo prazo. Por exemplo, espero terminar de escrever um livro de contos até o final deste ano.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O meu processo de escrita é muito lento e pode ser muito longo. Primeiro, eu anoto a ideia. Mais especificamente, abro um arquivo no word, dou um título (muitas vezes provisório) e esboço um sumário do conto. Às vezes inicio o conto e salvo. Esse esboço pode ficar arquivado por dias, meses, e até anos. Tenho vários contos iniciados. Vou trabalhando neles simultaneamente. Aos poucos, vou desenvolvendo-os. Também aos poucos, vou terminando-os. Conforme vou escrevendo-os, procuro entender o tipo de escrita que estou elaborando. Leio ou releio contos ou mesmo romances que, de alguma forma, dialoguem com o que eu estou escrevendo. Leio estudos e teoria literária também. Vou também procurando entender a relação que eles têm entre si, procurando entender o conjunto que estou produzindo, as linhas de força que os ligam uns aos outros. Pode ser um tema, uma geografia, uma ideia mais filosófica, literária ou mesmo ideológica. Ocorre de, no meio desse processo de reflexão e elaboração, surgir a ideia de título para um livro que reúna os contos que estão sendo escritos. Quando fecho a ideia do título, é sinal de que os contos, em seu conjunto, ganharam uma organicidade. Aproveito isso para trabalhar nos contos, fortalecendo essa organicidade. Procuro fazer, então, que eles caminhem na direção dessas linhas mestras. Esse foi o processo que adotei em meu primeiro livro de contos, A mulher do fuzileiro e outras quase histórias(Língua Geral, 2016), e é o que estou adotando em meu segundo livro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não vivo muito esse processo de travas. Como eu disse, meu trabalho de criação envolve também leituras. Quando não estou escrevendo, estou sempre lendo alguma coisa “sobre” os contos que estou desenvolvendo. Considero que quando estou lendo, estou “escrevendo”, faz parte do processo. Quando alguma ideia amadurece ou elaboro mentalmente o desenvolvimento de algum conto que eu esteja escrevendo, abro o computador e escrevo aquilo que elaborei para ele. A ansiedade começa a aparecer quando tenho já um conjunto de seis ou sete contos prontos e já tenho a proposta do conjunto e um título. Aí, começo a querer terminar logo os três ou quatro que completam o livro. Começo a ficar com vontade de vê-lo pronto e lido pelas pessoas, curioso de conhecer suas opiniões. Entrei nessa fase recentemente. Para não me deixar contaminar por esse sentimento, vou enviando para algumas pessoas amigas, que já manifestaram apreço pelo meu primeiro livro, um conto ou outro para que deem sua opinião. Em geral elas gostam do conto enviado e isso me mantém motivado para terminar o conjunto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre releio o conto, a cada vez que pego nele para desenvolvê-lo. Nunca contei, mas um conto meu é escrito, mais ou menos, em sete ou oito etapas. Isso significa que releio o conto umas oito vezes, por exemplo. Um conto mais curto, pode ser escrito em menos etapas, quatro ou cinco, digamos. Um mais longo, pode ter dez ou doze. O número de releituras é mais ou menos o número de etapas que ele leva para ser concluído. Quando termino um conto, considero que é uma primeira versão. Posso enviá-lo para alguém ou não. Em geral, vou passando-os para o diretório dos “prontos”. Quando considero que tenho um livro pronto, procuro elaborar a ordem dos contos no livro e envio-o para algumas pessoas que podem fazer uma avaliação do conjunto. Conforme a avaliação desses primeiros leitores, ajusto a ordem e envio para a uma editora.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre no computador e usando os recursos básicos do Word. Muito eventualmente escrevo alguma coisa em umas cadernetas que sempre tenho à mão. Procuro anotar todas as ideias porque inspiração é uma coisa rara, não podemos deixar passar ou esquecer.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Observar muito e ler bastante. Acho muito importante também conversar com as pessoas. Algumas histórias que ouço já se tornaram parte do material que utililizo para meus contos. Já utilizei-as como ideia base de uns e também como complemento de outros. Utilizo também minhas memórias pessoais e de outras pessoas para compor personagens e, às vezes enredos ou tramas. Utilizo também estruturas, personagens e materiais utilizados por outros autores. A maneira como a língua é utilizada tanto por pessoas comuns quanto por profissionais da escrita também faz parte das minhas observações. Os diversos registros da língua e da escrita me fascinam e procuro incorporá-los nos meus contos. Todos esses materiais alimentam a minha imaginação no processo de criação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Por enquanto, eu sou um escritor iniciante que publicou apenas um livro de contos e que está escrevendo seu segundo livro. Sendo assim ainda estou trabalhando a minha escrita dentro de um determinado projeto que está em desenvolvimento. Considero esse segundo livro uma continuidade do processo que iniciei no primeiro. Ainda estou amadurecendo e aprofundando esse processo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho o projeto de escrever uma série de livros de contos que de alguma forma deem conta da minha necessidade de narrar literariamente o mundo em que vivo. Uma série em que os temas e personagens circulem entre os contos de um livro para outro, formando um conjunto que relacione ideias e situações. A princípio, tenho um livro publicado, um em andamento e bastante material para um terceiro. Então, pode ser o projeto de uma trilogia, uma tetralogia, uma saga ou até mesmo um “novo” decameron. Quem sabe? Gosto desses projetos de fôlego, como A comédia humana, de Balzac, ou uma série grande de livros de contos como as de Machado de Assis, Tchecov, Borges, Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, etc. Seria fascinante se descobrissem algum livro inédito de um desses autores. Esse é o livro que eu “gostaria de ler e que ainda não existe”.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Eu costumo anotar as ideias dos meus contos em arquivos separados. Pode ser a frase inicial, um título, o esboço de um início, a frase final ou um resumo da ideia geral para o conto. Para mim o mais difícil é desenvolver o conto adequadamente a partir de cada ideia. Definir quem será o narrador, o foco narrativo, sua linguagem e o desenvolvimento de sua narrativa. Caracterizar bem os personagens, o ritmo da narrativa. Trabalhar bem a forma do conto, seu enredo. É isso que dá trabalho, elaborar bem cada material da narrativa e conjugá-los de forma adequada.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como eu não sou um escritor profissional e tenho outra profissão, não é possível para mim organizar uma semana para o trabalho artístico. Ele vai acontecendo nos intervalos possíveis. O que é possível é me disciplinar para trabalhar em um determinado conto em um final de semana, em um feriado, ou nas minhas férias. Aí, começo a desenvolver uma daquelas ideias anotadas ou trabalho em um conto já em andamento. Como trabalho em vários contos ao mesmo tempo, alguns levam muito tempo para ficarem prontos ou até nunca ficam prontos. Outros são concluídos mais rapidamente. Já houve o caso de terminar um conto em questão de horas, caso de “O macaco”, do livro A mulher do fuzileiro e outras quase histórias. Por outro lado, nesse mesmo livro, alguns contos levaram anos para ficarem prontos, por exemplo, “Lição de Geografia”. E existem também alguns contos que levaram poucas semanas ou alguns meses para ficarem prontos. Depende muito do prazer que tenho ao desenvolvê-los, do empenho que coloco neles e das dificuldades que eles apresentam na sua elaboração.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O que me motiva é a possibilidade de dar forma literária a uma ideia. Histórias que me contam, um tema colhido em outro autor, um pensamento, uma frase. Gosto também de conhecer as opiniões dos leitores, me incentivam muito a continuar escrevendo. Gosto de ser lido. Mas não me lembro de ter havido um momento de decisão. Sempre escrevi; peças de teatro e poemas na juventude, textos acadêmicos na idade madura e, mais recentemente, contos. Tenho gostado bastante de escrever contos. Sempre achei muito difícil e só nos últimos anos é que tenho conseguido escrevê-los.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não creio que eu possa falar de um estilo próprio. Só consegui terminar dois livros, A mulher do fuzileiro, já publicado, e Suíte carioca e outros contos esquisitos, que será lançado em novembro deste ano (2020). No primeiro, trabalhei muito na construção dos narradores e na geografia social do Rio de Janeiro. É possível que neles haja a influência de contistas que trabalharam muito o conto urbano como Machado de Assis, Lima Barreto, Tchecov, Borges e o Joyce de Dublinenses. Não me angustio com as influências, pois considero-as benéficas. Me alimento desses autores, com os quais me identifico em muitos aspectos. A capacidade de observação de Machado e a capacidade imaginativa de Borges e Guimarães Rosa me impressionam bastante, assim como a capacidade de Clarice Lispector no uso expressivo e original que ela faz da língua portuguesa. Mas me alimento também de autores mais voltados para a Teoria Literária e nesse campo gosto particularmente de Bakhtin, Lukács, Todorov e Barthes. Ao longo da elaboração da Suíte carioca, li muito Henry James, Hoffman, Katherine Mansfield, Jane Austen, Lobo Antunes, Balzac e o muito denso, impactante e triste O amor e outros demônios, de Gabriel Garcia Marques. Ao mesmo tempo, como nesse segundo livro uma de suas linhas de força é o material histórico, li com muita atenção O romance histórico, de Georg Lukács. Pode-se dizer que em A mulher do fuzileiro me concentrei muito no aspecto espacial, enquanto na Suíte carioca incorporei com mais ênfase a dimensão temporal, junto com a ampliação dos limites espaciais. Creio que a literatura que pratico vai surgindo da confluência de minhas observações particulares com a leitura de todos esses escritores. Ler é uma atividade fundamental dentro do meu processo criativo.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Uma parte dessa resposta acho que adiantei um pouco na resposta à pergunta anterior. Acho muito difícil recomendar leituras em geral. Depende muito do leitor a quem você está se dirigindo e do momento em que ele se encontra na sua trajetória de leituras. Mário de Andrade, por exemplo, não recomendava Machado de Assis para pessoas que tivessem menos de trinta anos. Ele achava que somente na idade madura seria possível desfrutá-lo melhor. Eu tendo a concordar com esse princípio de recomendar de acordo com o interesse e o momento de cada leitor. Eu, por exemplo, atualmente tenho conjugado as leituras teóricas de René Girard e Bakhtin, com a releitura de romances de Stendhal (A cartucha de Parma e O vermelho e o negro) e Proust (O caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra e A prisioneira). Por conta desses estudos, li também romances que não conhecia de Dostoiévski (Os demônios, O eterno marido e O idiota), além de dois romances inacabados de Stendhal (Lucien Lewen e Lamiel). Mas este é o meu momento, não sei se funcionaria como recomendação geral para outros leitores.