Alvaro Bianchi é professor no Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo, limpo a areia da Bisnaguinha, minha gata vira-lata, e a alimento. Faço meu café, com pão e geleia ou requeijão e uma fruta e tomo ele sentado na poltrona da sala enquanto vejo os e-mails e as redes sociais. Dedico as manhãs a arrumar o apartamento, fazer compras no supermercado, pagar contas e colocar em dia minhas coisas. É também o período do dia em que vou à academia, três ou quatro vezes por semana, um jeito que encontrei para evitar dores nas costas e controlar a ansiedade. Trata-se de uma rotina mesmo e raramente altero a ordem das coisas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Antes do café estou imprestável e não consigo sequer me comunicar direito. Mas posso trabalhar de manhã ou de tarde, embora devido a rotina que fui construindo prefira fazer isso à tarde. Evito trabalhar depois das 20h, a menos quando dou aula no período noturno. Quando passo desse horário demoro mais para desligar e dormir e o sono se torna agitado. Não tenho um ritual de preparação para a escrita, pelo menos nenhum que eu me lembre. Sento e começo a escrever. Há alguns anos voltei a tomar notas para minhas pesquisas em cadernos. Em especial, a registrar minhas investigações sobre Antonio Gramsci. No começo é difícil. Percebi que havia desaprendido a escrever a mão e que cometia muitos erros. Com frequência saltava letras ou simplesmente as confundia. Às vezes o cérebro ordenava uma “t” e minha mão fazia uma “l”. Minha letra ficou menor e perdi o jeito com algumas letras, como o “p”, o qual ficou parecido com um “n” com uma perna, ou o ‘j” e o “g” que se confundiam. Palavras com érres, êmes, ênes, ás e ús tendem a parecer uma sucessão de pequenas ondas. Em vários casos tive que mudar a forma de escrever essas letras para poder entender depois o que havia anotado.
Mas tenho gostado do resultado. Quando vou redigir um artigo o processo é diferente. Faço isso direto no computador, mas tomo como referência as anotações manuscritas. Por incrível que pareça é mais fácil trabalhar em um artigo a partir do material manuscrito. Não só porque a escrita à mão ajuda enormemente à memorização, como porque depois posso reescrever o texto de modo mais livre, sem ficar engessado no recorta e cola. Ou seja, o artigo sai mais fácil e mais perto de uma versão definitiva. O tempo que gastei com os cadernos, economizo dobrado na redação do artigo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Trabalhei muitos anos como jornalista e aprendi a organizar a escrita e a redigir rapidamente. Posso escrever mais de dez páginas por dia se isso for necessário e se já tiver o material para tal. Sempre conto a meus alunos uma anedota do José Saramago a respeito da escrita. Eu estava acompanhando a coletiva de lançamento do livro Terra, no qual ele participou com o Chico Buarque e o Sebastião Salgado, e um jovem jornalista lhe perguntou como ele escrevia. Saramago disse que só escrevia uma página por dia e o jovem replicou: “Só isso?” . Saramago então completou: “É, meu filho, mas no final do ano eu tenho 365 páginas”. Quando trabalhei em minha tese de doutorado ou no livro que escrevi sobre o pensamento de Antonio Gramsci fiz algo parecido. Estabeleci uma meta e sentava na frente do computador todo dia na mesma hora e não parava até chegar naquela meta. Mas com o tempo a produção de livros cedeu lugar a escrita de artigos e ensaios, que são textos mais curtos e fixar uma meta diária deixou de fazer muito sentido. Atualmente escrevo em períodos concentrados, geralmente atendendo a prazos que não foram determinados por mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Parto sempre de uma ideia, um tema, algo sobre o que gostaria ou tenho que escrever. Geralmente começo pelo título e um resumo. Tenho duas pastas no diretório Documentos de meu computador: “Artigos esboçados” e “Artigos publicados”. Em “Artigos esboçados” há centenas de arquivos, alguns com uma ou duas linhas, outros com alguns parágrafos escritos ou com algumas citações e referencias bibliográficas, e há até os que estão quase prontos, faltando desenvolver um aspecto, escrever uma seção ou resolver um problema que não consegui na época da redação. Às vezes esses arquivos ficam lá anos sem que eu trabalhe neles, mas periodicamente dou uma olhada na pasta, abro alguns dos quais nem me lembrava mais, vejo como poderia desenvolver a ideia e decido se retomo o artigo ou se deixo ele esperando mais um pouco.
Minha escrita é precedida de pesquisa intensa. Leio muitos artigos, marco os livros com papéis coloridos, reúno material de arquivo, faço anotações. Quando começo a escrever já sei qual é o caminho que irei percorrer, já imaginei os capítulos do livro ou as seções do artigo e começo a me mover nessa direção. Costumo usar imagens arquitetônicas e pensar o texto de modo equilibrado. Minhas seções, meus capítulos, meus parágrafos tem mais ou menos o mesmo tamanho, os subtítulos seguem um mesmo padrão (curtos ou longos, afirmativos ou interrogativos, com nomes próprios ou sem nomes próprios, etc.). Tenho pavor de textos desalinhados nos quais um parágrafo de vinte linhas é seguido por outro de três. Essa ordem também ajuda no processo da escrita e me permite controlar melhor o fluxo do trabalho.
As fases de pesquisa e planejamento estão sobrepostas, mas antecedem a escrita. Quando creio que já reuni material suficiente e consegui mentalmente desenhar aquele caminho começo a escrever o texto propriamente dito. A mesa de trabalho é tomada então por cadernos, livros e papéis que são meu material de trabalho e ela permanecerá nesse estado caótico até que eu termine o que estou fazendo. Quando chego em um impasse, provocado geralmente por um problema para o qual não tenho uma resposta satisfatória, interrompo a escrita e volto à pesquisa ou pulo para outra seção na qual possa me mover com mais segurança e continuar escrevendo.
Embora eu tenha sido alfabetizado primeiro em espanhol, minhas anotações são sempre em português, o idioma no qual manejo mais recursos. Para artigos que já escrevo tendo em vista uma revista ou livro publicado em outra língua – italiano ou inglês – prefiro escrever em português, deixando as citações no idioma original e, depois, fazer a tradução. Quando tenho tempo geralmente faço eu mesmo a primeira versão da tradução de um artigo e depois envio para um revisor.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sempre acho que preciso pesquisar mais um pouco ou ler algo mais antes de começar a escrever. Atraso ao máximo o início da escrita, mas depois que começo não interrompo o trabalho, a menos que chegue em um impasse decorrente da pesquisa insuficiente. Nesse caso ou retomo a pesquisa ou deixo o texto naquela pasta de “Artigos esboçados” esperando voltar a ele algum um dia. Por outro lado, a prática no jornalismo me ensinou a trabalhar perto do deadline, mas nunca ultrapassá-lo. Escrever nunca foi um problema para mim. Se o trabalho não avança é porque eu não deveria tê-lo começado, ou seja, ainda não tinha uma pesquisa o suficientemente sólida para chegar ao final.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso os textos inúmeras vezes. Às vezes escrevo apenas cinco páginas e já começo a revisá-las. Estou há dois meses trabalhando em um artigo e acredito que já imprimi e revisei o texto mais de dez vezes. Depois de concluído o texto reviso ainda duas ou três vezes antes de enviá-lo aos editores. Costumo pedir para algumas pessoas próximas lerem os textos que escrevo. Mas para isso é necessária uma relação de confiança muito forte. Quando dou um texto para uma pessoa ler não espero elogios e sim críticas. Elogios não servem para nada. A partir dos comentários reajo, reflito, aceito, contesto e um diálogo, às vezes tenso se estabelece. Mas ele é fundamental para colocar os argumentos em risco. Por isso a confiança é importante. O leitor e o autor devem se sentir à vontade para dizer o que pensam. Nem todo mundo tem um amigo com a formação e a dedicação de um Friedrich Engels para ler seus textos, mas esse seria o ideal.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Faço minhas anotações em cadernos ou nos livros que li, sempre com lápis ou lapiseira com grafite mole (4B ou 6B) e escrevo o texto direto no computador. Sou fascinado com a escrita de Antonio Gramsci. A publicação da edição anastática de sua obra revelou um processo de escrita a mão na qual o texto saia limpo, praticamente sem rasuras. Depoimentos de contemporâneos atestavam que em seus tempos de jornalista ficava longo tempo andando e refletindo sobre o que ia escrever, depois sentava e produzia o texto limpo, sem erros nem retoques. Não consigo fazer isso. Meu texto passa por muitas versões antes de ficar pronto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Trabalho com a história do pensamento político. Minhas ideias vêm das ideias de outros, ou seja, da leitura de fontes primárias e de comentadores.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Quando avançamos na carreira acadêmica perdemos aos poucos a capacidade de controlar nosso trabalho. Aumentam as responsabilidades de todo tipo, inclusive administrativas. Uma diferença substancial está nos convites para participar de congressos ou de coletâneas. Eles ocorrem levando de modo muito genérico o que fazemos, mas rarissimamente dizem respeito a aquilo que estamos pesquisando no momento. Isso gera interrupções periódicas e desvios de rota que acabam postergando aquilo em que estávamos trabalhando. Eu tenho tentado selecionar cada vez mais os convites que aceito, mas às vezes isso é impossível. Eles refletem a existência de redes colaborativas que construímos e das quais não queremos abrir mão.
Se eu pudesse voltar ao passado e me dar um conselho no momento da escrita da tese eu diria: “Deu certo. Continue fazendo o que você começou a fazer. E tire da cabeça essa ideia de mudar de tema na reta final da pesquisa. Isso vai te tomar tempo e no final das contas você vai retomar a pesquisa do ponto em que a deixou.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Comecei a imaginar um projeto sobre aquilo que chamo de tradução/tradutibilidade de ideias políticas. Ou seja, o processo “uso” em um contexto nacional ou regional de ideias políticas produzidas em outros contextos nacionais ou regionais. O ponto de partida são as anotações de Gramsci a respeito da noção de “tradução”. Mas este é um tema que aparece na historiografia contemporânea do pensamento político, como por exemplo, e J. G. A. Pocock e Melvin Richter. Organizei um seminário de estudos sobre o tema e já escrevi um artigo metodológico a respeito. Espero em doze meses começar a trabalhar de modo mais sistemático nessa ideia.