Alvaro Barcellos é poeta e letrista gaúcho, autor de “Um céu de tantos remendos” (Penalux).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa meio corrido, uma vez que sou pai de 3 filhos e trabalho em banco. Assim, definitivamente, não há falar-se em rotina matinal. Ademais, esses esquemas de escrita funcionam mais na narrativa – eu por minha vez escrevo poemas e letras de músicas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não saberia precisar se há algum turno em que eu possa produzir mais ou melhor. Não tenho exatamente um ritual. Apenas em determinados momentos, percebo que estou com uma inclinação maior para criar. Daí me concentro e passo a trabalhar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não estabeleço metas pelas mesmas razões explicitadas acima – entendo que certos esquemas de aplicam mais por exemplo a romancistas e contistas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita, na maioria das vezes, é desencadeado a partir do exercício da leitura. Leio bastante, embora menos do que gostaria. Mas já me considero num patamar razoável. Leio, claro, vários autores já canonizados, mas também nutro grande interesse pela produção dos contemporâneos. O contato com outras experiências estéticas funciona como combustível poderoso.
Por vezes, anoto passagens, sonoridades e imagens poéticas; em dado momento, percebo que as coisas tendem a encaixar-se.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Passo longos períodos sem produzir – o que já me afligiu muito. Hoje, aprendi a lidar com isso. Paciência talvez seja uma chave importante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso e refaço sempre que entendo necessário. Até que possa estar mais ou menos de acordo com minha expectativa em relação àquele poema. Mas muitas vezes, troco apenas uma palavra aqui, outra ali, suprimo uma acolá, acrescento outra…e deu.
Já ensina o mestre Drummond: não adules o poema/ aceita-o/ como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada/ no espaço…
Quanto a mim, por vezes, mostro o poema – em especial a outros poetas e/ou bons leitores…E o tempo nos ensina a efetuar as publicações apenas depois de algum tempo… Pão muito quente – dizem – não faz bem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje até escrevo eventualmente no computador. Mas o caderninho foi por anos companheiro inseparável. Porque aquela inclinação criadora nem sempre é suficientemente domada.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias de algum modo surgem da interação com a sociedade, o mundo, a cidade, a relação que se estabelece com as pessoas. E, claro, sempre são também resultado de alguma leitura. O contato com outros textos costuma trazer um frescor extra.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos, a gente amadurece. E nosso amadurecimento reflete na escrita. Penso que ao menos uns 70 por cento dos autores que lançam apressada ou precipitadamente, acabam no fundo se arrependendo.
Eu próprio tive uns três ou quatro projetos de livros, antes do lançamento de Um céu de tantos remendos, que saiu pela Penalux, em 2015.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Projetos futuros, deixo para o futuro, quando não serei mais exatamente o que sou hoje. Mas já tenho engatilhado meu segundo livro de poemas, que hoje estaria praticamente pronto.
MINHA SOMBRA quando lapidaram minha sombra nem ao menos sei se estava lá embora ressoe ainda em meus ouvidos a cantiga longínqua de então e possa ao fundo identificar o traçado talvez do giz que teria riscado minha provável silhueta. de resto o mar e seu ruído intenso e compassado.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Qualquer projeto sempre exige um mínimo de organização e afinco. Sempre há alguma forma de planejamento, ainda que possa às vezes soar mais espontâneo.
Penso que nunca se trata exatamente de deixar fluir. No entanto, como trabalho basicamente poemas e letras de música, não me preocupo muito com projetos de maior estruturação – o que me parece mais necessário para o pessoal da narrativa: ambientes, perfil dos personagens, comportamento, ritmo, estratégias verossímeis etc…definitivamente, tratam-se de projetos bem distintos….os poemas em geral, no meu caso ao menos, exigem apenas alguma concentração e leitura, sempre combustível importante para libertar as feras e desencadear o processo criativo.
Quanto à abertura e fechamento de poemas, ambos são muito importantes, embora o ritmo e desenvolvimento também pesem. Mas um bom começo e um bom arremate sem dúvida contam de modo especial, para que possamos ter um resultado razoavelmente impactante.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não me preocupo em organizar minhas semanas de trabalho. Todo dia é dia para colocar a inventividade para passear. Mas, repito, determinados esquemas me parecem bem mais úteis ao pessoal da narrativa.
Com relação a projetos, para evitar atropelos, o ideal é ater-se a um projeto de cada vez. Todavia, como trabalho poemas e letras de música, por vezes acontece de estar trabalhando o andamento de um poema, mas ao mesmo tempo tendo a incumbência de colocar letra em alguma canção que eventual parceiro musical tenha me enviado, para encaixar – digamos – em uma trilha para teatro, por exemplo, o que ocasionalmente exige cumprimento de um certo prazo.
Daí, torna-se necessário redobrar cuidados para uma ou outra das tarefas. São projetos diferenciados entre si, e que exigem tratamentos específicos. Paciência e atenção especial para cada um são sempre ingredientes importantes.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Pergunta interessante. Desde muito cedo, eu ficava extasiado com canções: a música foi sempre algo muito poderoso em minha formação. E, em casos de música cantada, a letra desempenhava também seu papel…então, ouvindo muita música, eu curtia demais as saídas e sutilezas de figuras como Milton Nascimento (com o peso de um Fernando Brant), Ivan Lins (com a presença de um Vitor Marins), João Nogueira e Dori Caymmi (com a maestria de um Paulo Cesar Pinheiro), João Bosco (com as sacadas de um Aldir Blanc), Chico, Gil, Caetano, Belchior, Renato Teixeira, Cartola, Almôndegas, Tavinho Moura, Nelson Cavaquinho, Taiguara, Sergio Sampaio, Zé Keti, Raul Seixas, Tavito, Gonzaguinha, Paulinho da Viola, Sá e Guarabyra, – aos quais se somariam Russo, Adriana Calcanhoto, Criolo e Arnaldo Antunes – …tudo isso e muito mais me fazia a cabeça…Bob Dylan, Pink Floyd, Paul Simon, Cat Stevens (com o tempo fui tendo acesso às letras dos caras – que tanto já me diziam musicalmente), cumpriam também papel preponderante. Daí, vinha também a força dos livros. Poemas aos quilos me provocavam algumas reações difíceis de traduzir…é a magia da arte.
O que me motiva, antes de tudo, é que escrever passou a ser há vários anos uma necessidade: a forma mais profunda e equilibrada de expressar e dizer ao mundo de minhas dores, aflições e esperanças (que nunca são exatamente minhas – e sim, nossas, de algum modo, por ser a manifestação do eu-lírico a captar sensações que estão por aí espalhadas e presentes mesmo nos menores gestos e vidas e objetos cotidianos). O que me motiva é por vezes acertar o alvo e quem sabe sensibilizar um pouquinho as pessoas, tocá-las, do mesmo modo (sem pretensão) que outros tantos autores e autoras nos tocaram e tocam.
Penso que na medida em que fui percebendo que várias canções, poemas, contos, romances e afins de algum modo acabavam por expressar minhas dores, alegrias e demônios com mais profundidade, ali é que vi que não tinha mais jeito, senão tomar para mim esse conturbado caminho e essa missão. Que é no fundo o grande desafio da vida neste momento: recuperar o senso de humanidade, duramente abatido frente ao processo maquinizador do capitalismo contemporâneo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Inúmeros autores me influenciaram de maneira muito forte. Alguns vinham da música e outros dos livros – tanto da narrativa, quanto poetas: García Márquez, Érico Veríssimo, Graciliano, Guimarães, Hemingway, Quintana, Ginsberg, Lorca, Neruda, Gullar, Maiakovski, Leminski, Drummond, Manoel de Barros, Castro Alves, Lima Barreto, Adelia Prado, Cecilia, Bandeira, entre outros tantos.
Em dado momento, no entanto, percebi que precisaria exorcizar esses fantasmas e suas influências, passando a tratá-los conscientemente muito mais como referências, ainda que centrais.
Penso que isso é como renascer, cortando o cordão. Como forma de tentar buscar um timbre – quem sabe caminhar por si e alçar voos com asas próprias.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Cem anos de solidão = para compreender um mundo totalmente mágico e reinventado, numa América Latina tantas vezes devastada e refeita, e com palavras igualmente mágicas do extraordinário mundo ficcional do romancista colombiano Gabriel García Márquez.
Os cus de Judas = aqui o português Lobo Antunes recupera de modo impressionante o peso cruel das guerras criadas por homens poderosos, para condenar a seus horrores jovens pobres, num plano extasiante de linguagem com a qual bombardeia o leitor em jogos de vida e morte.
Poema sujo = através de palavras ora sutis, ora pesadas, o grande poeta maranhense Ferreira Gullar nos conduz a viagens num tabuleiro poético de resistência em que consegue jogar alguma luz sobre a grande sombra que atormentava o Brasil e o continente latino-americano de então.
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ÍCARO-ESTRELA-CADENTE
Eis que a ave-liberdade
pousa na alma de Ícaro
– o anjo precursor
das aves de metal
com suas asas feitas
de cera e de esperança.