Altair Martins é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina nenhuma, a não ser fazer teste de glicose e insulina (sou diabético). Escrevo sempre, mesmo sem escrever. Escrevo enquanto penso no que vou escrever, enquanto recolho “sucata” nas situações do dia a dia. Mas escrever, o ato físico, ocorre em alguns momentos, geralmente quando estou sufocado de coisas a dizer. Por exemplo: atualmente, como estou com um projeto de escrita dramática, escrevo quando surge essa necessidade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Me sinto melhor escrevendo à noite, lecionando à noite, lendo à noite. E não há ritual algum, a não ser (não creio que seja ritual) ler muito antes de escrever qualquer coisa. E pesquisar sobre o que vou escrever: se vou escrever sobre cavalos, preciso saber como dormem, quanto tempo vivem, quais os nomes das suas pelagens, suas reações…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo desde uns 8 anos, sem nenhuma meta diária. Mas encarei a coisa mais a sério durante o ensino médio, quando produzi alguns textos teatrais que me deram certa satisfação. Fui fazer letras. Os passos da leitura à escrita eu os encaro como diálogo. Hoje, escrevo (a escrita que vem antes da escrita) todos os dias, ao menos uma linha. Mas a escrita física a faço em períodos concentrados, ao menos de um turno.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu gatilho é sempre alguma coisa que ainda espera ser dita. Pode ser uma palavra (o que vai gerar um poema), uma frase, uma imagem. Mas quero dizer o que está pulando de necessidade. O sonho de todo o escritor é ser lido. Mas se perguntamos o porquê, sou sincero: por vaidade. Luto com a escrita para que alguém diga “ficou bom, cara. Conseguiu”. A arte é isso. Claro que há outras funções, como a denúncia. Por esse caminho, digo que adoro denunciar a falência da firma social do Brasil, mostrando que não temos país, mas um pátio e um umbigo construído por uma sociedade tacanha que vota no candidato da sua rua para a melhoria da coleta de lixo da sua rua. A literatura não deve ser assim. Ela não é publicidade nem jornalismo. Na literatura temos o direito (diria até o dever) de mentir, de sabotar a pretensa realidade. Daí vêm minhas ideias: do dever. E a literatura, como arte de resistência, me permite falar o que não se está falando, com a linguagem que ainda não foi encontrada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A receita é ler e depois colocar nossas ideias no bolso e caminhar, ver filmes, escutar músicas. Só a arte nos devolve a ela mesma. Minhas dificuldades continuam sendo as mesmas, nessa sequência de etapas: escrever, publicar, fazer o livro ser visto, lido, comentado em jornais e revistas e ser visto como escritor e não como peça da vez na “sociedade do espetáculo”. Me dou muito bem com a primeira. Faltam as outras etapas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso infinitamente meus textos. Reviso de uma edição pra outra. Acho que somos a tal “errata pensante” do Machado de Assis. Somos erro sobre erro. Só acredito na arte dessa forma. Por isso, tenho alguns protoleitores, gente que gosta de ler (alguns do ramo, outros não), sincera o suficiente para apontar o que funciona e o que não funciona. Aceito grande parte das considerações.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão, como foi dito, nas primeiras etapas. Conforme um texto manuscrito ganha força, vou digitando (que é outra escrita). Depois imprimo versões e volto a rabiscar à mão. Acho que aí se encontra um equilíbrio entre o impulso e visão periférica. Me sinto mais seguro assim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Se costumo dizer que coleciono sucatas, é porque guardo todas as versões do texto, desde o manuscrito à última impressão. Dato cada prova, anotando detalhes. Isso me permite recuar e avançar no processo, dando-me mais domínio das camadas textuais. Às vezes vou elaborando mentalmente uma narrativa, coletando elementos do dia a dia, até que ela ponha a cabeça para fora.
Mas também tudo o que escrevo parte de alguma pesquisa, seja ela de leitor seja de escritor. A Parede no escuro, por exemplo, nasceu da necessidade de expressar, no processo narrativo, o esfarelamento discursivo que vivemos hoje, o que também transparece na linguagem e nos temas internos. Como cada personagem se narra e narra ao outro, o romance propõe um desamparo na leitura. Uma pesquisadora da UFRGS, Joseane Camargo, apontou a origem desse processo em contos de livros anteriores: Muito o que falar (do livro Como se moesse ferro) e Equilíbrio (do livro Se choverem pássaros,). Fiquei feliz: as coisas não acontecem de uma hora para outra.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Escrevi já aos 19 anos coisas que as pessoas leram. Quando olho para aquilo, vejo que eu vivia no encantamento das palavras, imitando autorias, experimentando possibilidades. Fui um deslumbrado e vejo aquilo como algo belo, sem dúvida. Hoje, li mais (sobretudo teoria, filosofia da linguagem), vi mais filmes, vivi mais experiências. Acho que perdi aquela mania encantada e ingênua de ver a linguagem. Mas ainda sou o leitor que aprecia texto com linguagem, com coragem, como se diz por aqui, textos que “metem a cara”. Prefiro o que vaza ao que não faz peso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou aguardando respostas de editoras para um romance novo que acabo de escrever. No momento, estou envolvido com a escritura de peças de teatro. É o que estou gostando de fazer: transformar texto em voz, em gesto, em cena. Gostaria de escrever um grande projeto no qual se pudessem reunir artistas visuais, músicos e dançarinos numa grande peça de teatro.