Allyne Andrade e Silva é advogada, feminista negra e doutoranda em direito na Faculdade de Direito da USP.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Quando estou trabalhando de casa, acordo, dou uma olhada nos e-mails, redes sociais e mensagens, toma banho, me arrumo assim com uma roupa que seja confortável, passo e tomo um café. É um tempo para minha alma voltar para o corpo (processo que só se conclui com banho e café preto) e eu organizar o que tenho de fazer no dia. Preciso passar as tarefas pendentes pela manhã, caso contrário fico com uma sensação de que não tenho prazos e posso inventar qualquer outra coisa para fazer que não escrever ou terminar o processo ou um relatório.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor entre 4 da tarde e 1 da manhã. É o horário que meu cérebro está assim 100% e eu estou em pleno controle das minhas capacidades mentais. Nem sempre, entretanto, a vida permite que eu escreva neste horário, pois eu preciso entregar algo de manhã ou comentar algo no mesmo dia. Então, meu ritual de escrita varia com o período do dia.
Se é de manhã cedo, antes d´eu sair de casa, ele começa com a história de tomar banho, me arrumar e tomar café, repassar as tarefas. Repassar as tarefas me cria a sensação de desespero de “caramba, tenho isso tudo para fazer! ou estou atrasada” que me impede de procrastinar. E aí arrumar a mesa e começar a escrever.
Se preciso escrever depois que voltei de um compromisso, meu segredo é sentar na minha mesa de estudos e continuar com roupa de trabalho. Se eu tomar banho e relaxar, o dia está perdido, meu cérebro entra no modo ligar para os amigos, assistir um filminho, ouvir uma música e relaxar “afinal, eu tive um dia pesadíssimo”. Hahaha
Tem dias que eu percebo que estou muito distraída e vou à biblioteca ou para o escritório, pois sei que em casa não vai render.
Depois dessa preparação, procuro cercar de tudo que eu preciso para escrever, arrumar a mesa com computador, bloco de papel, textos e ir relendo ou minhas anotações, até meu cérebro entrar em ritmo de trabalho.
Basicamente, preciso criar mecanismos para meu cérebro ficar em estado de alerta e eu não ser autoindulgente.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende. Projetos maiores como foi o meu mestrado e, está sendo a escrita do doutorado, eu escrevo todo dia, num período de 3, 4 meses. Embora, meu cérebro funcione melhor a noite, escolhi escrever o mestrado todo dia de manhã, como a primeira coisa do dia antes de ir ao trabalho. E depois de noite quando volto, olhar novamente para o trabalho.
Fiz a escolha de escrever pela manhã, pois não fui uma estudante de dedicação exclusiva a pós-graduação. Fiz mestrado trabalhando e faço doutorado também trabalhando … Era muito fácil ao longo do dia acontecerem imprevistos ou eu mesma me colocar em situações que impedem a escrita. Agora eu acordo às 5h da manhã e escrevo. Embora possam acontecer imprevistos as 5h ou as 6 da manhã, ou coisas melhores para se fazer esse horário, elas são mais improváveis.
Não tenho meta de escrita diária, mas uma meta de todo dia abrir meu trabalho todo dia. Pelo menos duas horas por dia. Às vezes o corpo não tá dando conta, mas abro mesmo assim e olho ou releio. O que eu não posso é esquecer dele.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Olha, eu tenho tentado fazer um processo mais organizado, mas nem sempre ele ocorre. Ele ocorre de jeitos diferenciados para textos longos e textos curtos. Geralmente, quando eu resolvo escrever sobre algo é porque eu já li uma série de textos que me levaram a determinada reflexão, então eu tenho uma noção.
Eu, infelizmente, não faço resenha de texto. Não gosto. Meu processo e ler o texto, grifar e escrever minhas observações do lado de vermelho. Quando preciso, volto as minhas anotações.
O processo organizado para os textos longos (por exemplo, mestrado, doutorado ou um artigo) é que eu faço um toró de ideias (brainstorm) de tudo que vem a minha cabeça pensando naquela questão, depois parto para um sumário mais ou menos detalhado do que quero tratar em cada seção ou capítulo do texto e que bibliografia se relaciona com aquilo, nome dos autores, lugares que eu ouvi e um ou dois parágrafos do que eu já tenho sintetizado sobre aquilo na cabeça.
O segundo passo é escrever os agradecimentos. Todos os meus projetos longos, o primeiro texto mais organizado são os agradecimentos. Aquece meu coração pensar nas pessoas que quero agradecer pelo apoio e àquelas cujas trajetórias me inspiraram a fazer determinada coisa. Se um dia eu não ver sentido em continuar o trabalho, acontece muito, eu volto e releio os agradecimentos.
Em terceiro lugar, vou olhar para aquela bibliografia do meu sumário anotado e ir anotando, ir digitando o que eu citaria daquela bibliografia. Se eu coloquei algo que eu não li, vou ler.
Depois, vou montando o texto, seção por seção, capítulo por capítulo na ordem lógica que eu pretendo apresentar. É como montar uma colcha de retalhos para mim.
Se eu tiver uma ideia maravilhosa sobre uma seção, enquanto estou escrevendo outra eu paro e faço. Por exemplo, vamos supor que eu esteja escrevendo sobre raça na legislação racial brasileira no capítulo 1 e no meio da leitura me vem uma ideia sobre seletividade racial que é algo que eu vou falar no capítulo 3, eu paro e escrevo essa ideia e deixo lá sobre um arquivo capítulo 3. Quando eu estiver na fase de escrever o capítulo 3, eu retomo aquilo.
Se eu resolver cortar um parágrafo no meio da escrita eu nunca apago ele totalmente, eu recorto e coloco num outro arquivo chamado “recorte”. Pode ser que eu precise daquela ideia, construção em outra seção do texto e aí é só eu retomar.
Eu não jogo nada que eu escrevo fora, mesmo se na hora eu resolver não publicar. Geralmente, depois, eu acho outra pecinha do quebra-cabeça que torna aquele texto antigo publicável.
Depois de escrita, essas partes, eu vou construindo as costuras do texto, olhando tudo para me assegurar da cadência, da coesão. Se no meio desse processo, eu perceber que uma parte fica melhor depois de outra parte do texto, eu mudo.
Confirmo se as citações estão corretas, se todas as pessoas são citadas. Inclusive, as vezes coloco frases no google para ter certeza se eu citei corretamente.
E por aí vai, vou fazendo reparos, até enjoar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu sou uma pessoa otimista em relação ao tempo. Então, na minha cabeça há tempo para todo propósito debaixo do Sol. Quando eu tenho tempo para escrever eu invento outras coisas para fazer ou simplesmente nada faço até que eu deixe de ter tempo.
É impressionante, mas no fim do meu mestrado eu virei uma dona de casa de primeira. Toda vez que eu precisava escrever eu precisava primeiro “limpar a casa, passar lustra móveis, lavar o banheiro, cozinhar para semana, ou passar um paninho e arrumar todos os meus livros antes de tirar da estante aquele que eu preciso”.
Em outra ocasião de um trabalho, importante, eu comecei a jogar candy crush. Eu, que detesto jogo, e baixei para me distrair nas viagens entre minha casa e o trabalho, comecei a jogar sempre e quando vi estava na fase 2856. Na qualificação do doutorado, resolvi assumir um projeto novo de trabalho e me vi com 2 empregos e um projeto, e a necessidade de escrever…
Vou fazendo isso tudo, até chegar o momento que não tenho tempo… Me vira uma chave e eu começo a trabalhar milhares de horas e, eventualmente, tudo fica pronto. Eu fico superprodutiva e eficiente, mas isso vem acompanhado de noites mal dormidas, má-alimentação, choro e ranger de dentes. Minha ansiedade vai fazendo com que eu invente um monte de tarefas não urgentes para me desviar daquilo que me deixa mais ansiosa “terminar o mestrado”, “entregar Aquele relatório”. Até que eu realmente não tenho tempo e a ansiedade que antes era reflexo do medo e infundada, vira realidade.
Também me toma uma urgência de ser feliz, toda vez que estou para terminar um projeto grande, como foi mestrado e agora com o Doutorado. Eu não sei vocês, mas pós-graduação não me faz feliz. Eu fico feliz na roda de samba, ou almoçando longamente com amigos, família, crushes, tomando cerveja. Quando tiver o título talvez fique feliz, mas o processo não é delícia não.
Então, eu tenho de escrever, mas eu quero dançar, namorar, ver aquele amigo que eu não via faz tempo. Eu, inclusive , elaboro argumentos na minha cabeça para procrastinar do tipo “ só mesmo o Ocidente para condicionar a produção de conhecimento a um processo tão desigual e infeliz como mestrado, doutorado”, ou da invalidade de uma academia eurocêntrica … já penso nos saberes tradicionais, chamo as feministas negras, os griots, as indígenas e suas teorias do bem-viver, os decolonialistas todos em minha defesa “ racional e ilustrada” de não escrever. Depois me lembro que tudo isso é verdade, porém eu fiz seleção para o doutorado e para meus objetivos, eu preciso de tese escrita.
Me conhecendo e conhecendo meu processo de ansiedade e procrastinação, eu comecei a antecipar esse momento. Eu preciso desse processo de formação da angústia, não adianta. Então, eu preciso ficar todo dia pensando “ cara, eu tenho isso para fazer, se eu não fizer isso, vou perder a oportunidade x e y, ou vou decepcionar a e b, ou não vou cumprir minha palavra com c e d ou nenhuma das opções mas isso é algo que eu quero fazer”. Aí, eu fico lá criando esse processo com mais antecedência. O primeiro é organizar a agenda. Todos os meus prazos e compromissos ficam na agenda do Google, e eu reviso pela manhã as tarefas para eu não me iludir de que eu tenho tempo para inventar alguma moda, quando na verdade não tenho.
Outro processo é ir separando essa 1 h ou 2 h por dia para olhar o trabalho, esses projetos maiores e ler coisas relacionadas, revisar. Pode ser qualquer coisa, mas tem de ser relacionada à tarefa. Não estabeleço meta de escrita, a meta é apenas todo dia olhar o trabalho por determinado tempo. Tem dia que saem muitas páginas; tem dia que sai um parágrafo, tem dia que estou tão empolgada que passa o tempo e eu não vi, tem dia que eu conto os minutos para parar… Entretanto, quando me vira a chave do desespero, eu já estava trabalhando no projeto tempo suficiente para ele não estar tão imaturo… Vai ser intenso ainda, mas sofro menos e cumpro os prazos com dignidade. Chega de mandar trabalho as 23h59 do dia do prazo final!
Sobre corresponder às expectativas, eu acredito em honestidade acadêmica e intelectual. Procuro entregar trabalhos feitos com honestidade “ citando quem veio antes de mim”, ou em linguagem acadêmica referenciando o estado da arte da disciplina, seguindo as regras, me importando em não desautorizar o conhecimento daqueles com os quais eu me importo, refletindo as lutas sociais nas quais eu acredito, honrando os orientadores e aqueles que abriram caminho para eu passar e à luz do melhor do meu entendimento naquele momento. Uma vez um professor da USP, Guilherme Almeida, me disse “trabalho bom é trabalho entregue”. Meu irmão, Allyson, sempre diz “o bom é inimigo do ótimo”. Então, eu faço o meu melhor, sem ser auto condescendente, seguindo as regras do jogo e, às vezes, desviando de algumas. Chegou o prazo, eu entrego. E rezo para ser bem avaliada. Rsrss
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso meus textos, todas as vezes que eu posso. Minha técnica, quando eu empaco na escrita, é revisar o já escrito.
Mas há alguma coisa no meu cérebro que faz com que em um determinado ponto, eu já esteja tão imersa no texto que não consigo enxergar os erros. Então, eu faço duas coisas: reviso os espaços duplos e passo revisor do word, para tirar os erros mais grossos.
Depois, peço para um terceiro revisar. Nos textos menores, eu peço para os amigos, onde um lê o do outro e tal, e a gente vai se ajudando. Textos maiores eu respiro fundo e, podendo, pago a revisão. Acho que vale cada centavo pagar os revisores, não só porque eles são profissionais aptos a fazer isso, mas porque eles te tiram da solidão. Se seu revisor for capaz de ler, você escreveu um texto inteligível. Parece bobo, mas por vezes estamos tão imersos na linguagem de nossas áreas, que escrevemos textos apenas para quem compactua da mesma formação. Como não é minha intenção, e a linguagem jurídica é excludente, gosto de um revisor escrevendo : “oi, gata? o que é isso?” ou “ nunca vi essa construção de período” ( alô, Lígia Luchesi -revisora amiga e mara do meu mestrado) aí eu já sei que tenho de quebrar o parágrafo ou explicar melhor, ou fazer rodapé. Eu fico pê da vida quando a revisão vem contestando meus parágrafos, mas no mais das vezes, obedeço.
Os meus textos mais curtos, artigos de 2, 3, 4 páginas, realmente são reações a algo que me incomoda ou me indigna e de questões que eu já interajo faz tempo, já li sobre o assunto, já discuti sobre ele. Aí, “a boca fala do que o coração está cheio “. Eu sento e psicografo. Depois me afasto do texto, releio, vou fazendo o rodapé e ajustando as citações. E entrego.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador e no formato das regras da ABNT e de citação o mais correto possível. Simplesmente, ter de voltar a um texto para adequá-lo a ABNT ou as regras de publicação, depois que você já cansou do texto, me parece uma terrível ideia. Normalmente, eu termino um texto quando canso dele ou quando o prazo chega, por isso já formato tudo direitinho. Vou fazendo a bibliografia conforme vou usando e tentando usar aplicativos para ajudar nisso.
Tecnologia é amiga, não vamos bater cabeça se existe algo que foi inventado para facilitar.
Se tiver ideias sobre meu texto ao longo do dia, escrevo a mão na agenda ou gravo no celular no gravador de voz. Só para eu não perder de vista e retomar na hora de fazer…
A única coisa que eu escrevo à mão é um diário, não diário, que uso para falar comigo mesma sobre meus sentimentos pessoais, me passar à limpo e me ouvir em voz alta. Eu todo ano compro um caderninho, que anda comigo por aí, e quando estou angustiada sobre algo da vida, eu escrevo nele, à mão, com minha terrível caligrafia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Como faz alguns anos que eu estou estudando Direito, tenho um conjunto de referências básicas sobre a matéria, pelo menos, sei por onde começar a procurar. Mas isso nem sempre dá conta e como a gente quer falar de coisas não plenamente articuladas observar para fora da área ajuda muito…
A criatividade vem de ler, fora da minha área de conforto, e ouvir com atenção. Ouvir o que as pessoas dizem na rua, nas palestras, nas conversas, nos corredores, ler os textos dos autores da sua área.
Como acredito que a matéria do Direito é gente e eu sou fascinada pelas gentes todas em suas humanidades, gosto muito de ouvir as pessoas, ao léu e à toa. Sempre aprendo coisas interessantíssimas sobre interpretação dos fatos da vida real ouvindo as pessoas dos mais variados lugares. Gente é matéria para mim.
Ver filmes, ver arte e ler literatura é outro processo. Sou do Direito e acho a leitura da minha área, com todo respeito a meus pares, um tanto estéril, com raras – e negras e/ou periféricas, exceções. Por isso, preciso de um outro conjunto de referências, que não as leituras jurídicas, até, assim, para eu aguentar o tranco dos filósofos liberais que inundam a noção do que é justiça nas salas de aula. Então buscar outras coisas é matéria para pensar Direito, mas também escape.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu fiquei mais organizada e procrastino um pouco menos, já sei minhas falhas e meus talentos…. mas ainda procrastino muito mais do que gostaria.
O que eu diria a mim mesma e continuo dizendo “isso vai levar mais tempo do que você imagina. Comece agora mesmo! Vai dar tudo certo, você ficará bem, mas você precisa começar.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
No momento, eu só consigo pensar em terminar o Doutorado. Tá muito perto, mas eu todo dia o sinto escapando das minhas mãos. Tá difícil de enxergar para além disso, mas certamente haverá vida após essa morte.