Álisson da Hora é doutor em Teoria da Literatura pela UFPE.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
No geral, minhas manhãs são as coisas mais desinteressantes do mundo. Ou rotineiras, ou o que alguém achar melhor definir. Mesmo dormindo tarde, com raríssimas exceções, acordo sempre às 8h da manhã. Ponho alguma música para tocar e tomo café da manhã. Há dias nos quais nem isso faço e fico pensando coisas das mais variadas. Ultimamente, fugindo ao máximo do noticiário, seja online, seja o televisivo. Vindo ainda do stress pós-defesa (defendi minha tese em 2017), não encontrava ânimo para ler. A gente fica muito cansado e não consegue ver graça em livro algum. Agora leio enquanto espero a comida do almoço ficar pronta. É uma espécie de disciplina que me impus para retomar a fruição da leitura. Primeiro alguns livros mais novos que havia comprado e outros mais antigos que havia abandonado. Assim, já em janeiro, me dei ao luxo de ler sete livros. Se não dou aula pela manhã – evito ao máximo pegar aulas nesse período do dia, porque simplesmente não rendo – essa é minha rotina. Que acho, por definição, algo entediante demais. Mas nem por isso me esforço em buscar outras ordens. Às vezes é melhor encarar como um caos pessoal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Já aconteceu de eu parar tudo o que fazia e sempre pensar poemas (quando publicava no blog que mantive por onze anos) por volta das 20h. Não sei se era ritual, mas era o momento exato no qual eu juntava algumas anotações – ou imagens – e escrevia. Acho que fiz isso por dois ou três anos seguidos. Depois achei que isso iria me jogar num sem fim de clichês e lugares-comuns e parei. Quando esbocei meus romances, escrevia a qualquer hora que estivesse em casa, anotava coisas nas cadernetas. Hoje, em geral, continuo preferindo a noite. Mas sem saco de varar a madrugada, durmo sempre às 2h45 da manhã. O mestrado esgotou meu regime noturno. Quando cheguei ao doutorado já não tinha mais paciência de ver o sol nascer e estar escrevendo. E como ficcionista então, pior. Se estiver com insônia, às vezes levanto e escrevo um parágrafo ou dois. Creio que desencanei bastante dessa coisa do “rigor”. Algo bem idealizado, do “café e cigarros”. Bebo café até às 20h e não fumo mais há quinze anos. Talvez a única coisa que me prende ainda seja a ideia de sempre ter algo escrito, nem que seja para corrigir. Maior sentimento de frustração é uma página em branco.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como acadêmico a gente sempre aprende a criar metas de escritas. Então transferi a disciplina que eu tinha quando escrevia ficção para época do mestrado, até porque o tempo era exíguo, e criava horários para escrita. Um pouco pela manhã, pelo final da tarde e a maior parte do tempo à noite e ia pela madrugada adentro. No doutorado, só escrevia à tarde e à noite. Hoje em dia estou em um processo de bloqueio criativo e como poeta estou quase bissexto e como ficcionista obscuro, me afundando ainda mais na obscuridade. Se escrever quatro parágrafos em um dia, já me dou por satisfeito. Até porque fica para mim mesmo, então nem esquento mais a cabeça.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Admiro muito quem coloca post it’s a torto e a direito nas páginas para marcar pontos importantes. Ou quem faz longos relatos nas cadernetas antes de fazer as considerações e análises. Ou para traçar um caminho para um conto ou um romance. Eu sempre compilo as notas, anotando número de páginas ou transcrevendo passagens interessantes, ao lado de algum pensamento que eu tenha achado interessante marcar e anotar para desenvolver depois. Então vou escrevendo ambas e depois vou sistematizando aos poucos, porque me faz refletir acerca dos problemas que vão surgindo. Acho que sempre é um caminho difícil, a não ser que a pessoa se ache um gênio e já vá escrevendo tudo de uma vez só. Mas isso é impossível. Até porque o rigor exige esse debruçar-se mais demorado. Em pesquisa, muito mais. Já aconteceu de eu ter uma ideia X sobre determinado assunto e ao longo de várias leituras e contrapondo-as entre si e com o que eu já havia escrito e ter que mudar radicalmente o caminho que eu estava seguindo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para mim os projetos longos são os mais fáceis para poder lidar com as travas de escrita. Hoje fazemos mestrado em dois anos e, tendo mais ou menos nove meses para escrever a dissertação, já sofremos bastante com a falta de tempo. Quando já trazemos algo da graduação relativo ao objeto da pesquisa ou já temos um bom domínio do tema, os bloqueios são menores. A procrastinação é que é sempre algo terrivelmente presente e inevitável, acho. Junto com a ansiedade, então, é o motor daquilo que nos áureos tempos do Orkut, chamávamos jocosamente de “Exu Tranca-Tese”. Há momentos nos quais eu simplesmente deixava tudo para depois, mas nunca me atrapalhou demais. Nos bloqueios de escrita, saía, ia ao cinema, tomava sorvete, me permitia descansar, ler poesia ou os livros encalhados. Sempre procurei fugir dessa lógica meio “coaching” de organização do pensamento, como se fôssemos um computador de ideias corporativas atrelados às frases feitas de uma autoajuda dispensável.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como sou revisor, também, dizem que “em casa de ferreiro, espeto é de pau”. Reviso umas três ou quatro vezes e justamente por não confiar na minha própria correção mostro a algumas pessoas de meu círculo mais íntimo. Mas isso é mais com prosa, quando escrevo poesia reviso somente umas duas vezes, quando não somente uma. Mas isso já faz tempo, primeiro porque encerrei o blog e nunca me vi como alguém realmente conhecido na blogosfera. Então, à exceção de alguns poemas mais “pensados”, eu encaro quase todos como “rascunhos” ou “esboços”. Depois passei a escrever mais em prosa no meu espaço no Medium e também comecei a encarar os contos ou trechos de prováveis romances como meros rabiscos. O rigor mais alto era com meus textos acadêmicos, e esses mesmo eu dificilmente mostrava para alguém.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Até 2004, 2005, eu ainda escrevia muito à mão. Já tinha computador, mas além de ele me dar muitos problemas (era doado, lento demais), eu achava que era mais fácil para fazer correções. Mas como tenho habilidades de datilógrafo, logo larguei mão disso e aprendi a fazer tudo no Word. Quando escrevia no blog, escrevia tudo no editor de textos dele, mesmo. Às vezes copiava e colava do Word, mas logo desisti disso também. Mas me arrependi, porque poderia ter tudo em .doc e me livraria do trabalho de ter de copiar tudo do blog depois que o encerrei (gostaria de tê-lo tirado do ar, mas ainda não consegui fazer isso, porque há um tempão que venho editando os textos que deixei lá).
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias são um emaranhado de leituras, músicas, percepções do cotidiano. Ou de filmes, quadros. Não temos como fugir desse monte de coisas que nos acostumamos genericamente a chamar de “referências” e que parece ser uma senha para um certo status hoje em dia. Easter eggs, aquela intertextualidade espirituosa que mostra que você está atento à velocidade das coisas. Por mais vaporosas que elas sejam. Ou mesmo líquidas, embora não goste da analogia, porque acho que tudo acaba mesmo é virando fumaça e até mesmo a ideia de “liquidez” é uma diluição barata. Fumaça mesmo. Não acho que haja “hábitos” para se manter criativo, é o mesmo que dizer que leitura é um “hábito”, quando ela é definida como “prática” – então fugimos da ideia de que se manter criativo é algo mecânico e rotineiro como o hábito de escovar os dentes, ou tomar três banhos por dia. Então, manter-se criativo passa pela lógica de estar sempre lendo, de tudo, até porque você só se livra das coisas ruins conhecendo-as – e vai que aquilo que você achava que era ruim não o era, ao passo que aquilo que você farejava de longe que era, então passa a ter certeza.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Em se tratando da escrita acadêmica, aprendi a me dar mais voz e não depender tanto das citações. Se a gente tem um projeto de pesquisa, por mais que recorramos ao aparato teórico é o nosso projeto, então a gente tem que impor nossa voz e não sermos meros mimetizadores do pensamento alheio. Então a mim mesmo como pesquisador, eu diria parabéns, você seguiu um caminho formidável. A mim mesmo, como artista, eu só diria: tu não cansas de insistir, cara?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Uma série de contos, ou mesmo um romance dentro daquilo que Derrida chama de hauntologie em Espectros de Marx. Desses futuros que vão aos poucos ficando mais atrelados ao passado. E essa nostalgia do vintage passa a ser algo cruel e anacrônico. Até comecei, mas quando a realidade torna muito daquilo que tu só imaginavas verossímil dentro da tua cabeça, resolvi parar e esperar. Quanto a esse livro que não existe acho difícil ele não existir, talvez não o tenha lido ainda. Tudo já foi escrito sobre tudo, a gente é que não tem tempo suficiente para ler tudo que foi escrito.