Aline Valek é escritora e ilustradora, autora de As águas-vivas não sabem de si.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Café. Sempre com café. Ainda com remela na cara, pego minhas canetas, o caderno que uso como logbook, uma espécie de diário de bordo para registrar tudo o que faço nessa grande viagem chamada existência, e começo a anotar tudo o que fiz no dia anterior. Ajuda a exercitar a memória, a organizar minha própria narrativa. Às vezes escrevo, em outro caderno, algum sonho quando ele ainda está fresco na cabeça.
Não deveria, mas dou um giro nas redes sociais; vou olhar os últimos tuítes e rolo pelo feed do Instagram. Eu poderia dizer que é o equivalente a abrir o jornal pela manhã para me informar, mas a quem queremos enganar? É a pura busca pela fofoca.
Uso as manhãs principalmente para me organizar: entender o que tenho para fazer no dia, fazer listas, responder e-mails. Responder e-mail é um trabalho de Sísifo: não adianta o quanto você faça, mais vai ter que fazer. Vejo o que é prioridade para mim e respondo o que dá. Não dá para responder e-mails o dia inteiro ou eu não faço mais nada, né?
Quando é dia de ir nos Correios, e vou pelo menos duas vezes ao mês, também prefiro ir de manhã. A agência está mais vazia, os funcionários mais bem-humorados e a caminhada é mais agradável.
Também gosto de deixar todo tipo de trabalho mais burocrático para as manhãs: administrar minha loja, atualizar planilhas, fazer pagamentos. Apesar da ideia de que escritor fica o dia inteiro criando, ou sentado de roupão na varanda tomando uísque enquanto espera pela inspiração, faz parte do meu trabalho essas tarefas que não são exatamente escrever. É um trabalho como qualquer outro, afinal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou uma pessoa bem vespertina. Produzo melhor à tarde, talvez porque use as manhãs para me preparar e pegar no tranco. Mas ritual? Só o de acender umas velas num pentagrama desenhado no chão entoando uns mantras pagãos. Brincadeira! Ou não?
Quando é hora de escrever, abro o computador, sento minha bunda na cadeira e escrevo. Não tem muito mistério. Às vezes vem a vontade de fazer qualquer outra coisa, navegar a esmo na internet, organizar minhas tupperware, criar uma playlist nova com músicas para me fazer entrar na vibe “certa”, mas preciso me forçar a ficar na situação de escrever. Se fico nessa situação por tempo o suficiente, por mais difícil que seja engrenar no começo, eventualmente acabo entrando no flow, que é o estado mental em que meu foco é total e a escrita simplesmente flui.
É preciso insistência. E uns intervalos para tomar banho e café. Ajuda a recuperar o fôlego e arejar o cérebro para mais uma rodada de escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende muito. Quando estou trabalhando em vários projetos, tento escrever um pouco todos os dias, ou separar dias específicos só para escrever. Para escrever textos mais curtos, ou a newsletter que mando para meus leitores, por exemplo, costumo separar uns dois dias só para escrever isso.
Quando fazia a zine Bobagens Imperdíveis, separava uns três ou quatro dias do cronograma para escrever todos os textos. Como era uma produção mensal, o processo era bem cíclico e com etapas bem definidas, então eu sabia exatamente os dias que precisaria dedicar à escrita e à criação, e qual prazo eu teria para concluir essa etapa de forma que não atrasasse a produção.
Quando escrevi meu romance, As águas-vivas não sabem de si, escrevi em períodos concentrados. A primeira versão escrevi em um mês e, depois de um tempo de gaveta, uns seis meses para reescrever tudo. Eu tinha metas diárias e prazos bem definidos. E como me dá tesão cumprir prazo, minha nossa.
Mas foi uma época em que eu não tinha tantos projetos acontecendo ao mesmo tempo, então eu pude escrever em períodos concentrados. Nunca mais aconteceu. Mas não dá para ficar esperando a situação ideal para conseguir escrever, né? A vida acontece e a gente vai se adaptando, buscando novas formas de fazer essa produção acontecer. Tento fazer o que dá com o que tenho.
Então nos últimos tempos alternei metas diárias com escrever um pouquinho todo dia; separar dias só para escrita ou dividir o dia entre escrita, ilustração e tarefas administrativas; depende sempre da quantidade de trabalhos que preciso equilibrar para pagar as contas, mas sempre tento deixar um espacinho, ainda que apertadinho, para a escrita continuar nos meus dias. Ou não. Tem períodos em que não quero escrever, fico de saco cheio, prefiro fazer outras coisas. Então não escrevo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tento me mover o mais rápido possível. Porque ficar pesquisando e anotando pode se tornar facilmente uma tarefa sem fim. Pesquisar é muito legal, mas também é um momento perigoso de se perder. Então assim que coleto informação o suficiente para mover as engrenagens do meu cérebro e começar a ter ideias, parto logo para a escrita.
Mais tarde posso precisar de mais informações, então volto para pesquisar mais, checar detalhes se for o caso. Ajuda a movimentar o processo alternar entre etapas, porque em determinado ponto só escrever já saturou minha cabeça, então é bom me distanciar para voltar com mais gás. Então alterno pesquisa e escrita, maturação e escrita, edição e escrita. Pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo, pé direito. E assim se anda.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação eu vejo como parte do meu processo. É comum ver pessoas procurando formas de fugir da procrastinação, evitar a procrastinação, exterminar a procrastinação, mas eu resolvi abraçar a procrastinação e entender que ela é uma etapa do processo; e, como qualquer etapa, tem que ter hora para começar e hora para acabar.
Faz parte do processo criativo se afastar do problema em determinados momentos para deixar o cérebro processar aquelas informações em segundo plano. Parei de escrever para ir lavar louça, tirar uma soneca, passear no parque, ver meme no Twitter. Mas na verdade, ainda que não esteja pensando no texto, inconscientemente estou trabalhando nele. Procrastinação é um momento necessário de maturação, de incubação de ideias. Ela se torna nociva quando a gente entra num vórtice de enrolação e não consegue passar para a próxima etapa, de colocar a mão na massa.
Como falei ali em cima, me forço a entrar na situação de escrever quando é hora de escrever. A vontade de procrastinar vem, mas aí entendo que ainda não é a hora dela, que vai chegar, que daqui uma horinha vou poder dar um rolê no YouTube, mas agora não, agora é hora de produzir.
Medo de não corresponder às expectativas, aí já é uma questão para tratar em terapia. Por que eu preciso me preocupar em atender expectativas dos outros? Por que eu preciso da aprovação dos outros sobre o que estou escrevendo? Tem que ver de onde está vindo esse medo. Às vezes não tem nada a ver com a escrita em si. Até passei por momentos de me preocupar com o olhar do outro e, oh, o que vão pensar de mim se eu publicar isso, mas há muito tempo deixou de ser algo que eu tenha em mente enquanto escrevo.
Quanto a trabalhar em projetos longos, não sei se ansiedade é o sentimento que melhor define isso para mim. Ansiedade surge diante de algo imprevisível, do sentimento de não estar no controle, de não saber para onde ir. Mas com projetos mais longos ocorre justamente o oposto, porque consigo ver com mais clareza um processo com etapas previsíveis, tempo para planejar e replanejar quando é o caso de precisar mudar de direção, um ponto de chegada bem definido.
O mais difícil, nesses casos, é manter a disposição e o fôlego para conseguir levar o projeto até o fim. É preciso encontrar algo forte o suficiente para me motivar a seguir esse caminho, e às vezes preciso me reconectar com esse propósito sempre que me bate aquela vontade de desistir. Mas já falei que acho uma delícia cumprir prazos, né? Pois é. Amo concluir coisas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso quantas vezes o prazo permitir. O texto nunca vai estar pronto, totalmente pronto, perfeito, sem nada mais a acrescentar e retirar. É possível revisar e alterar um texto ad infinitum. Mas chega uma hora em que é preciso parar de mexer e publicar. Ou partir para a próxima etapa.
Como disse nas respostas anteriores, meu processo é alternar entre etapas com duração definida. Revisar também é uma etapa que precisa ter início e fim. Não lembro agora quem é o autor da frase, mas há um artista que diz “uma obra de arte nunca se termina, se abandona”. Então chega um momento em que decido que terminei, mesmo sabendo que dava para continuar revisando e mudando e tirando e acrescentando.
Tenho amigos que são meus leitores-beta, para quem mostro meus textos de ficção, especialmente os mais longos. Do feedback deles costumo tirar bons insights sobre o que melhorar na história. Quanto aos meus textos no geral, a primeira pessoa a ler, sempre, é meu marido. A visão dele me ajuda a entender se há algo estranho, se algo não funcionou, se a ideia é boa, se há algo a melhorar.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Com essa entrevista estou percebendo que nunca tenho uma forma única de fazer as coisas! Às vezes começo um esboço escrevendo no caderno, às vezes começo diretamente no computador. Mas prefiro anotar ideias no papel, gosto de soltar o braço e muitas vezes o computador é meio limitante.
Por outro lado, há momentos em que o computador permite uma agilidade que me ajuda a esboçar mais rapidamente um texto quando estou com pouco tempo e quero pegar um atalho até o texto final que será publicado. Acho que para textos curtos que publico na internet, esse é o caminho que costumo pegar. Mas não é uma regra.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias vêm de tudo o que me cerca. Lugares para onde vou, pessoas que conheço, conversas que ouço, filmes que assisto, livros que leio, situações que vivo. Mesmo quando escrevo sobre pessoas que encontram dinossauros no quintal, estou escrevendo sobre algo que tirei da vida real.
Acho que meu principal hábito é manter as anteninhas de vinil bem ligadas. Preciso manter a consciência de que tudo que experimento durante a existência, sendo agradável ou não, serve de material para o que estou produzindo. Então tem a ver com viver no presente, com atenção, para que as referências se fixem na memória. Nesse caso, o hábito de praticar yoga me ajuda bastante a manter o foco no agora, além de aliviar a ansiedade que uma vida criativa traz no pacote. E atividade física é sempre bom para o cérebro receber mais oxigênio e com isso mais combustível para criar ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Amadureceu bastante. Tenho mais segurança, mais técnica, mais desapego. Tenho mais consciência das etapas do meu processo e como funciono dentro dele. Por conta disso, consigo ter mais agilidade. Terminar mais projetos, deixar menos coisas inacabadas pelo caminho. Não só o processo se tornou mais maduro, mas minha própria voz. Experiência é tudo.
Não sei se eu diria alguma coisa. Ficaria do lado, observando caladinha. E me deixaria errar tudo o que eu errei, escrever (e publicar!) todos os textos ruins que escrevi. O caminho que me trouxe aqui foi pavimentado com os meus erros. E ainda vou precisar de uma porção deles para chegar mais longe.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de criar um jogo. Só existe a vontade, porque ainda não sei que tipo de jogo seria, como eu faria, do que eu precisaria. Quando eu souber, começo a fazer.
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe é o que estou escrevendo agora. O problema é que eu quero muito ler, mas só eu posso escrever. E agora? Só tem um jeito. Terminar a entrevista e ir lá escrever.