Aline Caixeta Rodrigues é revisora, ministra oficinas de escrita e mantém o blog Recanto da Prosa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo sempre com uma boa xícara de café. De resto, não tenho muita rotina, pois sou uma profissional autônoma e tenho o privilégio de poder organizar a minha agenda com bastante flexibilidade. Já tive fases em que seguia uma rotina mais rígida, mas sinto que hoje isso não funciona para mim. Não somos máquinas, somos criaturas orgânicas, temos emoções complexas, estamos sujeitos a doenças, alterações hormonais, abalos psicológicos e muitas outras coisas. Estou aprendendo a acordar e ouvir o que o meu corpo está pedindo naquele dia, então tento ser gentil comigo mesma, sem perder de vista as minhas tarefas e objetivos profissionais. Se precisar, saio para correr um pouco, apanho um livro para ler ou tiro o dia para limpar a casa. O resultado é que quando eu me sento para escrever, meus textos fluem com muito mais naturalidade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Faço o possível para concentrar todas as minhas atividades criativas no período da manhã, quando me sinto mais disposta e concentrada. Deixo as tardes para as tarefas mais operacionais, como fazer revisões, preparar aulas ou atualizar o blog; e as noites para cursos, palestras, oficinas e leituras. Quanto aos rituais, acho que não tenho nada de muito interessante para contar. Toda a minha vida pessoal e profissional gira em torno da literatura, então quando começo a escrever, é como se a soma do todo já tivesse me preparado. Se eu estiver de cabelo preso e com uma xícara de café na mão, não preciso de muito mais.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não trabalho com metas diárias, pois a pressão me deixa ansiosa, de modo que prefiro metas semanais ou mensais – a depender do projeto. Acho indispensável estabelecer objetivos, mas só combino comigo mesma aquilo que sou capaz de realizar, pois assim me mantenho motivada, produtiva, e evito aquelas frustrações desnecessárias que só servem para despertar pensamentos autodestrutivos. Também há períodos em que fico sobrecarregada pelo trabalho, daí preciso passar alguns dias sem escrever, mas quando essas fases acabam, tenho explosões criativas que duram um bom tempo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende muito daquilo que estou escrevendo. Poemas e narrativas breves, como contos e crônicas, costumam sair sem muito planejamento prévio. Apenas coloco tudo no papel, sem pensar muito, e deixo a pesquisa para a etapa da reescrita, pois assim não perco o foco. Só me interrompo se for algo rápido, então abro o navegador, resolvo o problema e dou seguimento ao trabalho. Por outro lado, quando se trata de um romance ou novela, o processo é completamente diferente. Acredito que escrever uma narrativa longa é quase como fazer um projeto arquitetônico: é preciso desenhar a planta, conhecer bem o terreno e fazer fundações sólidas antes de começar a subir as paredes, ou então tudo desaba. Faço linhas do tempo, mapas, planilhas com os dossiês dos personagens, escaletas narrativas, etc. Muita gente acredita que métodos inibem a criatividade, mas eu não penso assim. Meus documentos de pesquisa e planejamento não estão gravados na pedra, então faço alterações e adaptações constantes, à medida que vou escrevendo e a narrativa vai me pedindo coisas novas. Desse modo não me perco, não corro o risco de cair em incoerências, omitir informações importantes ou ser repetitiva. Nossa memória é muito mais traiçoeira do que acreditamos ser.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Todo escritor ou escritora que já conheci, em algum momento, se viu atormentado por essas questões: Será que o que estou escrevendo é bom? Será que alguém vai querer ler? Será que vou machucar alguém querido se publicar meu texto? Essas inseguranças – que estão na raiz de toda e qualquer procrastinação – são normais (e saber que tem mais gente no mesmo barco sempre traz algum conforto). Quando um autor ou autora se abre assim, é como se estivesse dizendo: está tudo bem, não tem nada de anormal com você, eu também passo por isso e, veja só, estou escrevendo, não estou? Acho que o mais importante é se conhecer e tomar consciência daquilo que funciona para o seuprocesso criativo. Se você tiver 10 autores numa mesa, vai ouvir 10 dicas diferentes (e provavelmente contraditórias). O jeito é ir experimentando. Já descobri, por exemplo, que o meu processo é lento, cheio de idas e vindas, e tenho aprendido a respeitar esse meu ritmo. Vivemos tempos de muita pressa e autocobrança. Estamos sempre focados em prazos e metas, que estão sempre no futuro, e nem olhamos para as nossas conquistas, nossas realizações, o que fizemos no passado e o que estamos fazendo hoje. Pensar em tudo isso me ajuda a acreditar mais no meu potencial e a superar esses anseios.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como trabalho com revisão, tenho um olhar extremamente detalhista – o que às vezes emperra o meu processo criativo – mas faço o possível para desligar a revisora quando a escritora está trabalhando, ou então não saio do lugar. Daí deixo o texto descansar por pelo menos um dia, me afasto dele, ponho as emoções de lado, imprimo tudo, pego uma caneta vermelha e faço a primeira revisão, com o máximo de objetividade possível. Depois leio em voz alta, envio para amigos e parentes, peço a opinião de profissionais da área, e só então dou sequência ao processo. Nesse meio tempo, corto todos os excessos e reescrevo muitos trechos; não tenho nenhum apego ou preguiça nesse sentido. Se for preciso jogar 10, 20, 30, 50 páginas fora, jogo sem pensar duas vezes, porque normalmente o que vem em sequência é melhor. O fato de trabalhar com processos editoriais me trouxe muita clareza da importância da coletividade. Todas as críticas são bem-vindas, até as destrutivas e dolorosas, pois elas me ensinam a filtrar o que escuto e a desenvolver maturidade e resistência emocional.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já tive mais resistência à tecnologia, mas hoje só trabalho no papel quando meu computador não está por perto. Adoro a facilidade de poder fazer pequenas edições apertando um botão ao invés de usar uma borracha ou riscar palavras – pois rasuras me deixam confusa e me causam desconforto. Também digito com muito mais velocidade do que escrevo a mão, o que é ótimo para a fluência das ideias; além disso, se tenho um navegador aberto, posso fazer pesquisas rápidas e consultar meus arquivos pessoais durante o processo da escrita, o que evita equívocos e retrabalhos desnecessários. No entanto, sempre tomo o cuidado de deixar as notificações de redes sociais desligadas. Só ajusto alguns alarmes no celular para me lembrar de fazer pequenas pausas para beber água, ir ao banheiro, alongar os músculos e descansar os olhos. Não estou disposta a sacrificar o meu corpo em nome da escrita, pois preciso dele para escrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Podem vir de qualquer coisa: uma memória, um sentimento, uma pessoa, uma notícia, um objeto, um sonho, uma imagem, um desconforto… enfim. Estou sempre lendo, estudando e andando por aí, pois acredito que quanto mais você amplia o seu conhecimento e a sua visão de mundo, mais você aumenta a possibilidade de provocar a famosa inspiração. Não acredito que ela venha do nada ou de fatores sobrenaturais, como muitos defendem, mas de estímulos variados, associações criativas e um refinamento no olhar. Dá trabalho, não é uma atitude passiva, não basta se sentar e esperar. Aquela ideia do escritor romântico, atormentado e trancafiado em seu escritório, sem distrações ou contato com o mundo externo, que recebe uma iluminação e só sai de lá quando escreve uma obra-prima, me parece um tanto ingênua. É preciso balancear atividade solitárias e compartilhadas; buscar estímulos, contatos, leitores críticos e redes de apoio. Em São Paulo há muitas opções de eventos, oficinas e cursos, mas para quem não vive nas capitais, há sempre a internet ou a possibilidade de começar alguma coisa. O que te impede de fundar um clube de leitura ou um grupo de estudos, por exemplo?
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Em primeiro lugar, porque comecei a mostrar meus textos para outras pessoas e a ouvir seus comentários. Em segundo, porque estudei muito: fiz uma graduação em Letras, duas pós-graduações (em Formação de Escritores e Literatura Infantojuvenil), uma série de cursos de extensão e incontáveis minicursos e oficinas, além de participar de vários clubes de leitura e escrita, trabalhar com revisão e ter começado o meu próprio curso no começo do ano – o que exige bastante pesquisa. Também fui deixando de lado uma série de ideias muito ingênuas, como a de que eu precisava esperar a inspiração para poder escrever ou de que deveria estar me sentindo mal para ser criativa – essa é uma ideia extremamente nociva e perigosa, que levou dezenas de artistas a uma morte precoce ou destruiu suas vidas pessoais. Existem técnicas, artifícios, métodos, e nada disso exige que você se sacrifique além do que é saudável. Dedicação não é autodestruição. Se eu pudesse voltar no tempo, essa seria a primeira coisa que eu diria a mim mesma, mas também daria algumas dicas mais práticas como: leia muito, leia de tudo, seja curiosa, escreva somente o que for verdadeiro para você, reescreva, faça cortes, não espere a perfeição para se publicar e não tenha medo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um romance pela metade, de teor autoficcional, que mistura duas narrativas com protagonistas femininas, em tempos e lugares diferentes, cujas histórias se cruzam de maneira a redefinir suas vidas. Comecei esse projeto com grande empolgação, mas me perdi no meio dele e acabei deixando tudo engavetado, principalmente por medo e falta de autoconfiança. No entanto, sinto que esse é um livro que eu gostaria de ler, com personagens potentes, e que se não o colocar no papel, ele vai passar o resto da vida me atormentando para sair.
Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não tenho dúvidas de que o mais difícil para mim é escrever a última frase. No início, existe uma empolgação que faz os primeiros parágrafos deslancharem com facilidade (o que não significa que sejam bons); mas à medida que os desafios vão surgindo, o processo vai se tornando mais lento, e isso pode acabar complicando o desfecho. Lembro-me de um professor que dizia que o começo e o fim de um livro são os trechos nos quais mais costumamos mentir – não no sentido de dizer algo com a intenção deliberada de enganar o leitor, mas porque estamos enrolando ou escrevendo algo forçado. Essas coisas normalmente acontecem porque nas primeiras linhas ainda estamos nos aquecendo para começar; e nas últimas, pode ser que já tenhamos passado da hora de encerrar, mas estamos tão apegados ao texto que não conseguimos “largar o osso”. Trabalhando como leitora crítica, já me vi em diversas ocasiões sugerindo cortes de prólogos e epílogos; daí que quando escrevo, procuro me atentar a isso e me perguntar: será que preciso mesmo dessas duas pontas?
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Minhas semanas são todas diferentes umas das outras, pois como trabalho com revisões, ministro oficinas, escrevo para o blog, participo de eventos literários e desenvolvo projetos pessoais ou sob demanda, não sou capaz de estabelecer uma rotina fixa. Entretanto, isso não significa que eu não tenha um bom nível de controle sobre as minhas atividades. Faço planejamentos semestrais, trimestrais, mensais e semanais, sempre com descrições de etapas, metas, prazos e graus de prioridade. Acredito que todo profissional que trabalha com uma agenda flexível precisa se organizar muito bem para não se perder, em especial quando se está trabalhando em muitas coisas ao mesmo tempo. Particularmente, prefiro trabalhar em apenas um projeto por vez, pois me sinto mais focada dessa maneira, mas como isso raramente é possível, estou constantemente me reinventando para encontrar formas de equilibrar as coisas.
O que motiva você como escritora?
Muitas coisas me motivam, mas acho que a principal delas é a urgência de dizer algo que, na minha opinião, vale a pena ser dito. A princípio, essa ideia pode soar arrogante (e talvez todos os escritores sejam, no fundo, meio egocêntricos), mas acredito que cada pessoa tem uma forma só sua de enxergar o mundo e compartilhar suas percepções sobre ele. A cada livro que leio, ou história que escuto, essa ideia me deixa maravilhada com o quanto somos diversos em nossas semelhanças. Sempre acreditei que a literatura nos comunica mais sobre a nossa humanidade do que qualquer outro tipo de texto, seja quando nos fala do mundo externo, seja quando nos revela algo de profundo sobre o nosso universo interior.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Claramente. Já contei essa história em vários momentos e tenho um post no blog (intitulado “Breve história de uma vida literária”) com mais detalhes do ocorrido, mas em resumo: eu estava na quarta série do ensino fundamental e havia escrito um conto às escondidas no banheiro da escola (enquanto matava a aula de educação física, por absoluta incompetência esportiva). Por acaso, o texto acabou indo parar nas mãos de uma professora que ficou muito animada com ele e quis publicá-lo no jornalzinho da escola – o que foi, de fato, o pontapé inicial. Desde muito pequena, eu amava ler, e escrevia diários cheios de bobagens, mas nunca havia pensado na escrita como uma carreira até aquele instante. No fim das contas, meu conto não foi publicado, mas nem me importei, pois, ao conversar comigo, minha professora havia me lançado a pergunta que deu um novo rumo à minha vida: “você já pensou em ser escritora?”
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acho que minha maior dificuldade foi a de realmente assumir a minha voz. Quando comecei a escrever, existia uma diferença muito grande entre aquilo que eu produzia para engavetar e as coisas que publicava ou mostrava para as pessoas. Aquelas eram sinceras, fluidas, mais simples e verdadeiras (embora verborrágicas e às vezes desconexas); enquanto as últimas pareciam ter sido escritas por uma persona de quem eu achava que devia ser, mas não era. Em outras palavras: uma escritora falsa. Com o tempo, fui me sentindo cada vez mais frustrada com essa dinâmica e comecei, aos poucos, a me expor pelo que eu, de fato, era – e isso foi uma revolução. As pessoas começaram a se envolver mais com o que eu escrevia, a me trazer retornos positivos e a me dizer coisas como: “eu chorei lendo o seu texto”, “parecia que você estava falando de mim”, ou “gostei tanto do seu último conto que dei para a minha mãe ler”. Tudo isso me mostrou o quanto eu estava desperdiçando energia com o esforço de me encaixar num papel que não era meu, e me fez parar de tentar me espelhar em outros escritores. Obviamente, muitos deles me influenciaram (durante a infância e a adolescência, li quase toda a obra da Lygia Bojunga), mas acho que, recentemente, quem mais me impactou foi a Elena Ferrante, tanto pela maestria da sua escrita, como pela verdade que sentimos em suas palavras. Isso, para mim, é o mais importante: a verdade literária – seja ela fantástica, realista, (auto) biográfica ou declaradamente ficcional.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Como disse na questão acima, sou uma grande fã do trabalho da Elena Ferrante, em especial da Tetralogia Napolitana, que começa com A amiga genial. Neste livro, destaco: a complexidade e o caráter profundamente humano de suas personagens; a estruturação impecável do tempo narrativo em uma configuração fragmentária; e, acima de qualquer outra característica, a honestidade da narradora, que nos faz enxergar muito daquilo que não conseguimos ou não queremos enxergar sobre nós mesmos.
Em segundo lugar, mas não numa ordem de relevância, indico O manual da faxineira, da Lucia Berlin. O livro é uma coletânea de contos, então quando comecei a leitura, fui colocando post-its nos meus favoritos – o que perdeu o sentido depois do quarto ou quinto conto, todos marcados em sequência. Indico pelo humor tragicômico; pela dureza que a autora consegue balancear com trechos de grande delicadeza; e pela coragem de se expor, num nível que chega a ser quase constrangedor.
Por fim, indico uma de minhas leituras mais recentes, que é A ridícula ideia de nunca mais te ver, da espanhola Rosa Montero. Não sei como classificar este livro, e essa é precisamente a característica pela qual escolhi recomendá-lo. A ridícula ideia de nunca mais te ver é uma mistura de romance, ensaio, manifesto, uma biografia de Madame Curie e um relato de memórias da autora. O resultado poderia ser catastrófico, mas Rosa Montero conseguiu um livro extraordinário, com trechos que você tem vontade de reler diversas vezes, tanto pelo quanto são impactantes, quanto pela escolha e arranjo das palavras.