Alice Vieira é escritora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Talvez eu devesse me envergonhar de dizer isso, mas eu sou muito preguiçosa. Ou talvez não tenha a ver com preguiça, mas simplesmente com funcionar melhor à noite. Por isso eu gosto de dormir tarde (umas duas da madrugada) e acordar às dez. Quando o capitalismo não permite que eu me adeque aos ditames do meu corpo (e geralmente ele não permite), acordo de muito mau humor. A primeira coisa que faço é alimentar meus porquinhos-da-índia, que só param de gritar quando eu ofereço comida. Depois eu mesma tomo café puro (sem açúcar) e aí o mau humor vai diminuindo. É claro que, se o café estiver ruim, o mau humor se estende pelo dia todo. Não faço questão de comer no café da manhã, mas sem tomar um café forte não consigo fazer nada.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
À noite. Sem dúvidas à noite. Às vezes também escrevo na parte da tarde, mas é muito mais fácil à noite. Não faço muita cerimônia para começar a escrever, escrevo em qualquer lugar (isso já gerou algumas situações engraçadas, é verdade). De todo modo, quando começo a escrever não gosto de ser interrompida. Mas também é difícil conseguir me interromper quando estou escrevendo: entro num estado de excessiva concentração, é preciso me sacudir para que eu note o que está acontecendo no mundo. Não falo isso para enfatizar que sou uma pessoa introspectiva e idiossincrática apenas por ser escritora, falo isso porque é verdade mesmo. Eu me concentro muito quando estou escrevendo. No geral sou muito falante (quase insuportavelmente falante), só fico calada quando estou escrevendo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ultimamente eu tenho escrito todos os dias, mas isso é mais uma contingência do que uma rotina. Não consigo ter uma meta diária de escrita (talvez por isso eu consiga escrever bastante). Pressão, rotina e prazos costumam me deixar muito confusa e ansiosa, de uma maneira paralisante até. Provável que isso explique por que para mim é muito mais fácil escrever um poema que um artigo acadêmico.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Minhas notas são, geralmente, mentais. Começo a imaginar o poema e a substituir palavras mentalmente. No processo de escrita, releio os versos e vou cortando e trocando palavras que me pareçam inadequadas. De certa maneira, a escrita literária me autoriza a me organizar na minha desordem. Quem abrir meu caderninho de poemas não entenderá nada da minha bagunça. Mas eu consigo me localizar ali, de certa maneira. Gosto muito de substituir uma palavra por outra e de cortar coisas que soem verborrágicas. É difícil encontrar uma palavra que soe bem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Essa pergunta é engraçada porque dialoga com o que eu já disse sobre rotina. Para mim, é muito mais difícil lidar com escrita acadêmica do que com escrita literária. Porque os poemas eu escrevo com um senso de urgência que é meu – não sou interpelada por outrem. Mas, verdade seja dita, quando passo da escritura de um poema para um projeto “em si”, que ganhará materialidade e se tornará um livro, que obedece a prazos de publicação, aí sim eu fico assustada. Eu fiz a revisão do meu primeiro livro várias vezes, de uma maneira quase obsessiva, e em nenhum momento senti total segurança. Quando os exemplares chegaram aqui em casa, comecei a olhar para os livros e fiquei meio paralisada – sem saber do que exatamente eu sentia medo. Acho que era dos leitores.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu nunca contei exatamente, mas são muitas. Eu reviso e mudo os textos até sentir que eles podem vir a público. Antes de uma publicação, digamos, “formal” ou “oficial” (entre aspas para fazer a ressalva de que não sei se concordo com essa categorização), costumo postar nas minhas redes sociais. Depois, se eu for publicar numa revista ou em um livro, reviso o poema de novo. Quando me sinto insegura mesmo tendo revisado muitas vezes, mostro para um leitor de poesia em quem eu confie e peço que seja sincero na avaliação do texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou totalmente flexível. Hoje eu escrevi um poema cuja primeira versão fiz à mão num caderninho e a segunda versão digitei no computador. A terceira (e última?) versão digitei no celular. Se fosse para escolher um dos três meios eu diria que prefiro digitar no computador. Isso porque eu gosto de ficar observando como o poema se dispõe na página – e se eu escrevo à mão, minha caligrafia meio infantil e desengonçada atrapalha a visualização do texto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As minhas ideias costumam vir de textos. Às vezes elas vêm da minha relação com as pessoas. Geralmente constituem uma mistura esdrúxula da minha relação com as pessoas e a minha relação com os textos. Pessoalmente, eu acredito que a leitura seja o hábito mais importante para conseguir escrever. O cinema também já foi muito importante para mim nesse sentido.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu estava pensando nisso ontem. Acho que eu mudei radicalmente meu jeito de escrever depois que comecei a estudar literatura russa. Sinto que minha escrita foi arrancada de uma zona de conforto ou de uma pacífica torre de marfim. A poesia russa tem me tornado mais exigente com a escolha de palavras e mais precavida contra alguns cacoetes estilísticos que eu tinha. Se eu pudesse voltar no tempo, certamente aboliria do meu vocabulário alguns preciosismos que eu usava nos poemas. Eu já tive uma escolha lexical que lembrava a dicção decadente do final do século XIX (isso tornava meus poemas um pouco caricatos).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever um livro que trabalhasse com a questão das “máscaras poéticas”, que expusesse as enormes tensões entre o sujeito empírico do autor e as vozes que falam nos poemas.
Um livro que eu gostaria de ler e não existe: uma antologia de poemas sobre o futuro do Brasil que tivessem uma nota de misticismo cristão, ou um tom meio apocalíptico. Faz sentido? Seria e não seria um livro político.