Alfredo Fressia é poeta, cronista e crítico literário, autor de “Ciudad de papel” (prêmio Bartolomé Hidalgo).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Pois é, curiosidades. Aos meus 70 anos eu suponho que o primeiro que verifico é se dormi bem ou se dormi mal. Se foi uma noite ruim nem penso em escrever. Acordo muito cedo, mais ou menos às 5h, tomo café, dou uma olhada nos e-mails, leio a página de notícias. Poucos artigos me interessam, exceto agora, na atual conjuntura, trato de saber que nova maldade fazem contra os movimentos populares e contra os trabalhadores em geral. Muitas vezes dedico a manhã para a vida material (ir ao sacolão, na feira, no banco, no médico, enfim, atividades materiais inevitáveis). Algumas vezes não…, e então escrevo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Cada vez que tenho que redigir uma crônica ou trabalhar em algum ensaio, eu me imponho horários, sim. Geralmente à tarde e depois de um café forte, antigamente tomava chimarrão também. Mas a escritura central na minha vida é a poesia, e a poesia não aceita horários. E nem ritos, no meu caso. Eu já escrevi no ônibus, no metrô, na sala de aula…. versos assim, de relance, ou pelo menos versos que depois serão retocados, porque poesia se “escreve” antes de ser escrita no papel. Poesia se escreve sozinha na cabeça da gente. É uma ideia às vezes, uma imagem outras vezes, e aquilo vai tomando forma, e um dia, na rua, no mercado, no ônibus, a gente percebe que o poema quer nascer. E é bom aí sim passar no papel esse maquinário idiomático que quer nascer. Porque se deixamos para depois a criatura pode ter um parto difícil, com partes amputadas, e isso a gente sente logo no poema que ficou.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu insisto em que o poeta não tem essa liberdade de escolha. No meu caso pelo menos, eu escrevo quando o poema pede. Evidentemente, sim, a gente tem períodos mais criativos, em que se escreve muito e com alguma regularidade detectável, e há períodos de maturação, ou então em que simplesmente somos solicitados pelo mundo exterior, por problemas a serem resolvidos. Você sabe, José, eu fui amigo e tradutor ao espanhol de Ferreira Gullar e ele gostava de comentar esses períodos de silêncio, ele dizia que achava que já nunca mais escreveria um poema, e de repente, anos depois, a poesia voltava a bater à porta e lá ia ele escrevendo de novo. Comigo acontece algo parecido, talvez os períodos de silêncio tenham sido mais curtos. E ainda assim, eu percebo que nos anos noventa, por exemplo, eu escrevi pouca poesia. Meu primeiro livrinho era de 1973, ainda publicado em Montevidéu uns dois meses antes do golpe de estado… Depois tive de vir ao Brasil, e de fato nessa década de setenta escrevi menos poemas do que se devia esperar. Os oitenta foram para mim anos de muita produção. Os noventa também, mas não em poesia, foram anos de escrever para o El País de Montevidéu, eu era correspondente cultural. Os anos dois mil me devolveram a produtividade poética dos anos oitenta, e os dois mil e dez, já aposentado, também foram de muita produção. Mas você vê que em grande parte nós somos sempre objetos das circunstâncias, levados e trazidos pela Historia e pela nossa pequena história pessoal.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não penso que seja difícil começar. Eu ouço gente falando da angústia da página em branco, acho bobagem. Temos que aceitar que geralmente o poema “se faz sozinho”, que a gente começa sem saber com clareza que rumo ele tomará. Para mim a maravilha se produz na hora em que o poema diz: quero dizer tais ou quais coisas, é preciso respeitar essa vontade do poema. Você já deve estar imaginando que eu acredito na inspiração, esse estado em que até a pressão arterial deve aumentar, como no amor. O nosso querido e admirado João Cabral de Melo Neto dizia ser um “construtivista”, ele dizia que construía o poema como uma parede, tijolo por tijolo. Eu entendo e admiro, mas não é em absoluto meu caso. Ele foi um grande poeta, e de fato conseguiu superar as ciladas que tende esse excesso de “cerebralidade”, essa invasiva vigilância racional sobre o poema, que tantas vezes lida com o mistério, com o que não pode ser dito na prosa, com esse magma do qual surge a sensibilidade humana. O enigma. Quanto a compilar notas, sim, esse trabalho de formiguinha é necessário. Eu não acredito em poetas “espontâneos”. Escrever poesia exige anos de leitura e de admiração da boa poesia. Penso que o mesmo vale para o leitor. A boa poesia traz consigo um universo de conotações, de informações às vezes eruditas, cada poema reproduz a história da poesia. Por isso ela é um gênero dito difícil. Não porque o seja, mas porque ela é exigente com o leitor. Eu sinceramente tenho medo dos poetas e dos leitores “espontâneos”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso só veio a se colocar como problema para mim agora, com a idade já avançada… Antes não, a poesia é livre, “não vende” e por isso mesmo ela dispõe de uma liberdade que os outros gêneros devem invejar. Mas na minha idade a gente se pergunta se deve mesmo continuar escrevendo. Meu querido amigo Lêdo Ivo dizia que não se deve escrever depois dos sessenta, e era claro: para não dizer bobagens. Ele próprio não seguiu o conselho, e eu tampouco… Não sei como serão as coisas pra frente. Em todo caso, não me produziria ansiedade parar de escrever, dar enfim minha obra poética por encerrada. Não tenho problema com isso. Escrever poesia com ansiedade seria catastrófico, e nisso resulta útil recordar o Paul Valéry quando falava da perfeição do silêncio…
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Releio muito, sim. Às vezes faço correções (e às vezes me arrependo delas). Quando ainda vivia meu amigo, grande latinista uruguaio e magnífico narrador, Juan Introini, eu mostrava a ele, sempre. Faleceu no ano 2013 e desde então não mostro a ninguém, como foi o caso no meu recente livro de 2017.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
À mão, e em qualquer papel, como eu te contei. Depois, sim, passo ao computador para “ver mais claro”.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Impossível saber de onde vêm as ideias, as imagens, o poema… Eu sei que vêm desse magma de que falei, e acho que talvez seja melhor ignorar essa “terra incógnita”… Quanto aos hábitos, eu só diria: leia, ouça, informe-se.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
Alceu Amoroso Lima dizia que há poetas que já nascem prontos, como Minerva da cabeça de Júpiter, e outros que não… Eu acho que nasci poeta (não me vejo em outro destino), mas não necessariamente “pronto”. De maneira que a gente se aperfeiçoa quanto mais se informa, quanto mais desembesta… Mas basicamente eu te diria que meus livros têm uma profunda unidade. E esse é outro enigma, talvez a única pobre garantia da obra seja a primeira pessoa. Será?
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não fiz nunca projetos em poesia. A musa veio cada vez que ela quis. Eu só fiquei disponível. Projeto é cerebral e exige racionalidade e cartesianismo. O projeto não é poético. O sentido sé nasce depois, quando o poema ganha vida. É misterioso, mas talvez alguns dos teus leitores me entendam.