Alexey Dodsworth é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Veja como são as coisas: se você tivesse feito esta pergunta quando eu era mais jovem, com algo entre 20 e 30 anos, a resposta adequada seria que eu não começo o meu dia. Eu não começava dias, começava tardes. Era notívago. Varava a noite na internet ou em alguma balada, dormia no meio da madrugada, acordava perto do meio dia. Agora que tenho mais de 40, o ciclo se inverteu. Passei a priorizar o período diurno, a me sentir mais cheio de energia enquanto o sol está acima do horizonte.
Meu dia é muito melhor quando eu acordo cedo, entre 6h e 8h. Tomo um café da manhã reforçado e vou me exercitar. Para mim, é a melhor forma de “me ligar”. Quando acordo tarde, sinto-me cansado, e não produzo bem. Eu agora vivo a noite como um momento de relaxamento. Aproveito para ler, ver um filme, revisar textos, eventualmente jantar com amigos, e tenho fugido de baladas que avançam a madrugada.
Tô velho. Ainda bem.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meus rituais nada têm de mentais, são físicos: eu corro na esteira ergométrica e malho. Quanto mais eu me movo, quanto mais aquecido meu corpo está, mais intensa é a inspiração para a escrita, seja ela acadêmica ou ficcional. Eu preciso ligar meu corpo pra mente funcionar direito. Malho, e as ideias vêm. Por conta disso, o pessoal da academia deve me achar esquisitão, porque – à parte eles terem razão e eu ser, de fato, esquisito – eu entro e saio da academia quase sem interagir. Faço supino reto e construo diálogos de uma personagem. Corro na ergométrica, e cenas interessantes brotam.
De resto, eu sento e escrevo em qualquer lugar. Divido a produção em dois momentos: ao longo do dia, produzo um texto novo, que pode ser ficcional ou acadêmico; durante a noite, reviso uma ou duas páginas do que escrevi um mês antes. Para mim, o melhor momento para a inspiração vem durante o dia. A crítica flui melhor durante a noite.
Como a inspiração pode parecer excelente e na verdade ser apenas ridícula, veja você a importância da revisão noturna.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou do time que “surta” e escreve bastante em períodos concentrados. Quando o texto é ficcional, escrevo um pouco por dia. Os textos acadêmicos, por sua vez, vêm em explosões: por duas semanas, me dedico integralmente a isso, até acabar. Acho que cabe uma comparação: o texto acadêmico é como a paixão, é explosivo e minha dedicação a ele dura pouco. Em duas semanas, acabou-se. Já o texto ficcional é mais como o amor, e envolve uma dedicação diária que me absorve por um tempo muito mais longo.
Não chego a ter meta diária, porém normalmente escrevo de três a sete páginas por dia, e reviso a mesma quantidade de texto escrito semanas antes. Nos intervalos, escrevo bobagens em redes sociais. Falar bobagem – embora elas possam ser bobagens bem sérias – é a necessária pausa para o café.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Certa feita, li uma entrevista com George R. R. Martin que, creio, define bem minha tribo. Em grosseira síntese de minha parte, lembro que Martin diz existirem os escritores “jardineiros”, e também os “arquitetos”.
O tipo “arquiteto” planeja a história, toma notas, faz uma espécie de organograma. Tudo é planejado de antemão, as personagens são construídas, e o escritor faz uma pesquisa dedicada.
O “jardineiro” percebe que algo brotou, muitas vezes sem ele mesmo se tocar que naquele solo havia a semente de algo, e passa a cuidar daquilo. O jardineiro rega sua planta todos os dias, e vai aparando as arestas à medida que ela cresce.
Eu sou um jardineiro típico. Não planejo nada. Tenho uma ideia, uma inspiração, e visualizo os pontos altos daquela ideia. Daí vou escrevendo a partir do clímax, um pouco para trás e um pouco para frente. Pode parecer desorganizado começar a escrever um livro a partir do capítulo 10, por exemplo, mas para mim funciona bem demais. Escrevo a cena mais importante, que está fresca na mente, e daí escrevo o antes e o depois.
O arquiteto tende a ser bem mais organizado que o jardineiro, e a cometer menos inconsistências. Eu, contudo, nem consigo me imaginar como um arquiteto. Eu não planejo a história, é ela que se apossa de mim. Às vezes ocorre de eu já ter avançado no enredo, e daí me toco que algo em uma personagem está errado, como se ela existisse de verdade e me dissesse “eu não sou assim, mude minha história agora”. A possessão da semente no solo que é a mente do jardineiro pode ser bem esquisita: as personagens brigam comigo, dizem que não são daquele jeito, às vezes me mandam trocar o sexo delas, ou qualquer outra característica significativa.
Jardineiros costumam ser bastante criativos, a despeito de enfrentarem um problema sério que é o fato de o diabo existir nos detalhes. Por isso mesmo, não abro mão de uma leitura crítica profissional que identifique inconsistências no enredo, vícios de linguagem e outras tantas coisas que demandam revisão.
Sobre começar: eu apenas me sento, abro o notebook e começo. Só que raramente eu começo pelo começo. Como eu já disse, eu começo pelo que me dá vontade, e acho que isso ajuda. Imagino que deva ser bem complicado se ver diante de uma folha em branco, e pensar “como eu começo esta história?” Não vejo sentido nisso, não forço que algo nasça, se não está para nascer. Escrevo o que me dá tesão naquele momento, e isso pode ser uma cena específica do fim do livro, pode ser um diálogo do meio. Não me preocupo com sequência. Ela, a sequência, irá se organizar com o tempo.
Nunca tomo notas. Felizmente, tenho memória ótima, e detesto papelada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu sempre achei muito louco esse lance de procrastinação, pelo seguinte: eu só procrastino com o que não gosto. É bem evidente para mim que, se eu começo a enrolar para fazer algo, é porque não quero fazer.
Eu vejo muita gente se queixando da própria procrastinação, e é claro que cada caso é um caso e só posso falar do meu, então vamos lá: uma vez eu estava lendo um livro clássico, daqueles que as pessoas adoram dizer que leram para posar de cultas, e percebi que procrastinava. Eu deixava o livro num canto, me culpava por não ter lido tanto. Então veio a iluminação da obviedade: eu não estava gostando de ler aquele troço. Achei chato, não me dizia nada, não me fisgava. A procrastinação derivava do desamor. Até imagino que em outras pessoas a procrastinação tenha outras explicações, mas volta e meia eu me pego diante de alguém que está enrolando para fazer algo, converso com a pessoa e ela mesma termina dizendo que não está tão a fim daquilo. Ou que está mais a fim de fazer outra coisa.
Acho que uma analogia com os afetos traduz bem: se eu gosto de uma pessoa e quero vê-la, eu irei vê-la. Se percebo que estou colocando coisas na frente a fim de evitar o encontro, é porque não quero vê-la, ou, pelo menos, não tanto. Há pessoas que a gente tem de ver por obrigação, e assim é com muitos trabalhos. Daí entendo a procrastinação, a tendência consciente ou inconsciente de colocar outras tarefas na frente. Mas com o que eu amo fazer? Sem essa de procrastinar.
É claro que há coisas que a gente tem de fazer, independentemente de curtir ou não. É a vida, a gente tem que ganhar dinheiro, tem que cumprir obrigações, e isso muitas vezes envolve procrastinar em relação a coisas que a gente de fato ama. Por exemplo: considere um sujeito economicamente pobre, que tem que ralar em algum emprego chato pra sobreviver, e ele mal tem tempo para escrever, apesar de ter habilidade. Pra ele, as coisas vão ser mais duras, e talvez ele nem tenha energia pra escrever depois de dez horas de trabalho pesado com algo que ele não curte. É claro que, neste caso, a procrastinação não decorrerá da falta de amor pela escrita. São as injustiças da vida. Eu sei que não sou parâmetro, e não seria justo cobrar dos outros alguma tolice de autoajuda do tipo “persiga seus sonhos, e tudo acontecerá”. Nem todo mundo tem as mesmas oportunidades que permitem trabalhar com o que se gosta e ganhar dinheiro com isso. É ridículo posar de exemplo de sucesso, quando cada caso é um caso, e cada biografia é única. A vida inteira eu só fiz o que gosto e só ganhei dinheiro com o que gosto. E mudei de gosto um montão de vezes. Reconheço que tive este privilégio, e nem todo mundo teve as mesmas oportunidades, a mesma sorte. O que é uma lástima. O mundo seria um lugar bem melhor se todos – com exceção dos psicopatas – só fizessem o que lhes dá tesão.
A coisa que eu mais amo fazer na vida neste momento é escrever ficção, nem consigo me imaginar procrastinando com algo que me faz psicologicamente tão bem. Talvez eu mude, como já mudei tantas vezes, e descubra que o grande tesão da minha vida é plantar árvores, ou fazer bolos, ou virar médico. Eu queria que todo mundo pudesse viver desse jeito, mas sei que a grande maioria dos habitantes deste planeta precisa fazer coisas de que não gosta para conseguir sobreviver. Isso me parece bastante injusto e triste, mas hoje em dia não me paralisa. Confesso que já quase paralisou, no passado. Há algum sentimento de culpa em ser feliz, tanto quanto há o sentimento de culpa em sobreviventes. Só que não dá pra se deixar levar por esta culpa, não é legal que alguém que esteja enveredando por uma trilha de felicidade deixe de fazê-lo para chorar pelos que sofrem. Eu prefiro tentar ajudar do que chorar. Porque estas injustiças não serão resolvidas com sentimentos de culpa. Elas serão corrigidas com responsabilidade. A culpa é da esfera penal, a responsabilidade é um ato volitivo moral. Assim sendo, se eu posso fazer o que amo sem grandes amarras, o melhor que posso fazer por mim e pelos outros é ser feliz, assumindo responsabilidades em relação a quem está amarrado pelas agruras e injustiças da vida. Por essas e outras que procrastinar é algo que eu rejeito com veemência: eu não tenho o direito de procrastinar, quando a vida me deu tanto. E mais do que entendo a procrastinação em gente que quer escrever, mas tem que matar um leão por dia. A energia acaba, a pessoa procrastina. Nem sei que dica eu poderia dar, sobre isso. Qualquer uma me pareceria vã, e fácil de falar. Talvez, apenas talvez, se você tem que fazer coisas de que não gosta para sobreviver, mas deseja escrever, então escreva. Nem que seja meia página por dia. Ao final de um ano, você terá mais de cento e oitenta páginas.
Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, também nunca tive, por dois motivos. Primeiro, porque faz tempo que eu entendi que é impossível agradar a todos. Simplesmente, não dá. Em segundo lugar, eu só publico algo quando tenho segurança de que será minimamente apreciado pelo nicho ao qual se destina. E, para isso, conto com profissionais de leitura crítica e um bom editor. Se o texto é acadêmico, tenho a figura do orientador. São esses profissionais que ajudam a exorcizar qualquer eventual insegurança. Acho periclitante lançar um livro sem antes submetê-lo à crítica prévia e à navalha de um editor/orientador competente. Não importa o quanto você seja talentoso, erros serão cometidos. Escrever um livro até pode parecer ser um ato solitário, mas definitivamente não o é.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumo esquecer o que escrevi, daí pego o texto novamente duas semanas depois e o leio como se não fosse meu. Repito este procedimento umas cinco vezes, e a cada vez eu desço a navalha. Corto coisas, corrijo quase tudo. Daí contrato um serviço de leitura crítica, que, como já disse, considero fundamental. Ressalto: eu contrato um serviço, porque se trata de um trabalho exercido por um profissional. Por mais que um amigo possa ajudar, lendo o que você escreveu, não é a mesma coisa. Uma pessoa que não foi contratada para realizar um serviço não tem a menor obrigação no que tange a prazos, e eu tenho prazos a cumprir. Por fim, envio para o editor, que faz uma última revisão.
Às vezes, procuro leitores beta. Eles atuam como leitores críticos, mas são amigos. Só que o leitor beta é um lance informal, não tem como cobrar celeridade de alguém que está lendo nosso texto como um favor. Eu tenho alguns amigos próximos que gostam do que escrevo, e são suficientemente sinceros para dizer, de modo bastante objetivo, do que não gostaram. Sabem que eu não tenho melindre algum com críticas, então descem o malho. E, por isso, sou sempre muito grato! Se meus amigos não me apontarem os defeitos, terei que contar com inimigos. E quem tem bons e sinceros amigos como os que tenho, não precisa do serviço de inimigos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre, única e exclusivamente escrevo usando o computador. Nem sei mais escrever direito usando a mão. Acho um tormento. Além disso, minha letra é horrorosa, tenho quase certeza de que, se no futuro um arqueólogo encontrar um caderno meu, pensará que se tratavam de hieróglifos, e não de português. O risco de eu mesmo não entender o que escrevi é alto, então melhor evitar. Outro dia eu anotei um número de telefone importante em um papel, e depois nem eu mesmo entendia se aquilo era um 3, um 8 ou um 7. O caso é grave.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de todos os lugares! Eu sempre fui muito curioso, e com uma tendência a conectar saberes aparentemente desconexos. Às vezes eu me deparo com uma informação aparentemente banal, e todo um enredo já brota espontaneamente e com uma potência maravilhosa, como a tal semente do jardineiro.
Ter estudado filosofia e um terço do curso de astrofísica me deu inspiração para passar várias vidas produzindo ficção. Ideia é o que não me falta. Conto um lance divertido, e que, tenho certeza, não se passa só comigo: de vez em quando, alguém me procura e diz que teve uma ideia maravilhosa, e que gostaria de fazer parceria comigo para escrever. Eu fico lisonjeado, mas estimulo que, se a pessoa teve uma ideia maravilhosa, que ela então a escreva. Eu não preciso de ideias, já tenho uma porrada delas. Eu preciso de tempo, isso sim.
Sobre os hábitos: eu sou viciado em endorfinas, então preciso malhar todos os dias. Se não exercito meu corpo, é como se não tivesse escovado os dentes naquele dia. Ler coisas muito diversas é também algo que me ajuda a romper com meus próprios vícios de escrita. Desde uma revista em quadrinhos do Capitão América até um livro do Proust.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nos últimos anos, cursando o doutorado em Veneza, aprendi que menos é mais. Aprendi a evitar (ou a, pelo menos, tentar evitar) a prolixidade, a ir direto ao ponto. Como ainda estou escrevendo a minha tese, eu digo a mim mesmo todos os dias: “vá direto ao ponto. Não enrole, não floreie, não encha linguiça, nem queira falar de tudo”. E é o que eu diria para mim mesmo se voltasse no tempo para reescrever minha dissertação de mestrado: “aborde menos coisas”.
Dou um exemplo: imagine um aluno que queira fazer uma tese sobre Titã, satélite natural de Saturno. O bom orientador dirá: é muita coisa. Especifique. Daí o aluno diz que quer falar sobre os criovulcões (vulcões que cospem gelo) desta lua. Um bom orientador insistirá: é muita coisa. Então o aluno, talvez um pouco frustrado, dirá que deseja falar sobre um específico vulcão. E o orientador, chato e necessário, dirá: é muita coisa! Por fim, o aluno se toca: a pesquisa se debruçará sobre a atividade do vulcão X nos últimos dez anos. Pronto. Chegamos a um objeto específico que permitirá uma pesquisa concentrada.
Em ficção, a navalha também precisa operar. Em meu livro O Esplendor, por exemplo, me foi recomendado cortar 10% do texto. E ficou melhor, de fato. Vida longa ao profissional de leitura crítica!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
São tantos os projetos ainda não iniciados… Aponto alguns, que me são caros: um roteiro de quadrinhos de terror baseado na história verdadeira de uma ancestral minha, a judia portuguesa Branca Dias, primeira professora de meninas do Brasil e processada pelo Tribunal da Inquisição no século XVI. Também quero muito escrever o roteiro de uma graphic novel de ficção científica. Acho que estes dois são os principais projetos. E estou escrevendo um roteiro de quadrinhos de fantasia com humor que envolve o cotidiano de Veneza, cidade onde moro. O roteiro está sendo desenhado por Mariana Waechter.
Sobre o livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe – pelo menos em português ou em inglês – é a obra “Hatata”, do filósofo etíope Zera Yacob, que descreveu diversas ideias também expostas por Kant, só que um século antes do nascimento do filósofo prussiano. Também adoraria ler os textos filosóficos da veneziana Elena Lucrezia Corner Priscopia, a primeira mulher a – com muita insistência – conseguir se formar na história ocidental. Só que estes textos são impossíveis, posto que foi tudo perdido ou destruído após a morte precoce de Lucrezia. Sabe que agora me veio uma nova inspiração? Nunca soube de uma obra ficcional que abordasse a história de Lucrezia. Acho que uma mulher que foi a primeira a conseguir se formar, e cujo nome batizou uma cratera do planeta Vênus, merecia um romance sobre sua vida. Quem sabe um dia eu escreva sobre isso?