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Como escreve Alexandre Rabelo

3 de dezembro de 2018 by José Nunes

Alexandre Rabelo é escritor, autor de Itinerários para o fim do mundo (Patuá, 2018) e Nicotina Zero, desintoxicação em uma noite (Hoo, 2015).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?

A única esperança é a de que vou renascer. Isso quer dizer que, num dia puro, acordo com a cabeça zerada. E o corpo parece recomeçar alguns anos mais jovem. É quando respirar não dói, apesar da força da gravidade. Olhar para cima, pro céu. Sentir os pés empurrando o chão. Tenho o privilégio de trabalhar em casa a maior parte do tempo, tenho prazer quando vejo pela varanda do apê o sol chegar rosinha e o menino do bar da frente organizar as mesas na calçada.

Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?

Existem textos matutinos e madrugais. As primeiras horas da manhã é para tentar ser ingênuo de novo, bom para a escrita realista, a descrição desinteressada, os textos de fácil digestão e destinos claros. As madrugadas são para os que não têm medo de encarar as camadas mais soterradas da existência, desde nossa ancestralidade até nossa sede por magia, liberdade e prazer. Gosto das duas experiências. Mas as Horas nem sempre precisam pesar em nossas decisões. Se estou num fluxo, sigo até o fim, por dias até, manhã, tarde e noite.

Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?

Eu adoraria ter a disciplina de escrever todos os dias, de manhã e à noite, como uma forma de meditação. Mas acabo fazendo isso através do silêncio. Só escrevo o que resta, depois de algum ciclo de vida. Não consigo determinar quando esses ciclos abrem ou fecham para novas formas de ser que exigem novas formas de ver e descrever. É maior do que o meu controle.

Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?

Tenho que sentir que o prazer está envolvido. Se a experiência é pesada, tento abordá-la como se fosse uma fábula, para não ferir mais, mas às vezes não dá. Autores como Faulkner, que lidam com lados muito obscuros, acabam sempre se valendo do apoio de substâncias que dão prazer. No caso dele, era o álcool. No meu caso, gosto das ervas. Em todo caso, o objetivo maior é continuar, acreditar na relevância da coisa, no brilho da vida, mesmo nesse mundo cheio de palavras. O que importa é o que vem por trás delas, um recado silencioso de que está tudo bem. Então, na hora da escrita, toda aquela pesquisa prévia, a estrutura arquitetônica, se torna apenas uma bússola tosca. O que move é o mar e a lua, os fluxos em geral, que mudam de seus lugares as montanhas e outras paisagens.

Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?

Olha, procuro respeitar o tempo. Posso aguardar o amadurecimento de uma ideia por anos, com resistência. Tem livros que escrevo há mais de dez anos. Tem material no meu último romance “Itinerários para o fim do mundo” com quase quinze anos, que comecei a escrever bem jovem. Não tem que pôr livro no mundo à toa. As travas são portas fechadas dentro de nossa própria existência. A maior parte de nossos buracos são virgens. A boa escrita atravessa esses lugares. Não consigo me jogar assim todos os dias.

Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?

Reviso bastante, até o último minuto, e nunca fico contente. Tento ser menos racional e mais intuitivo e entrego para o mundo com o consolo de que nada nasce pronto. Esse lance de mostrar é complicado, ler na tela não tem a mesma magia do objeto-livro, ninguém quer. No caso dos “Itinerários”, amigos leram trechos pontuais, mas a sequência toda só o Edu Lacerda, meu editor, a Ariadne, que preparou, e a Cris Judar, que prefaciou. Essas duas me sugeriram cortes e acréscimos. Cheguei a fazer um novo capítulo final por causa dessas leituras. Fui incentivado a ter coragem de dar um passo a mais.

Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?

Escrevo à mão em cadernos especiais que vivo comprando, depois dito para o celular, num app de notas, e envio por e-mail parar revisar no computador. Existe um lapso de tempo entre essas três etapas. A primeira é mais monástica, a maior parte do trabalho. Já ditar é verificar a música da coisa, o sopro vivo. Revisar é conscientizar e aparar a forma, remodelar. É um tempo artesanal, de respeito ao natural, na contracorrente da ideia de produtividade.

De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?

As boas ideias vêm das mentes livres. O duro é ser livre. Para ser escritor, tive que inventar um modo de vida que me permitisse ficar a maior parte do tempo em casa sem interagir com a rotina do trabalho formal, que consome o ser inteiro em suas exigências predatórias. Drummond conseguia, mas era atormentado. Pago um preço muito alto por ser assim, me faltam muitas coisas básicas ainda, mas isso me deixa a rua livre apenas para me aventurar e criar minha própria comunidade e minha própria narrativa de existência. O caminho para mim é rimbauldiano, viver a transgressão poética cotidianamente, como forma de desregrar os sentidos já fixos pelas pressões sociais. Tento ser um olhar da rua e também das alturas.

O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?

Acho que hoje eu tenho mais coragem de me enxergar, e expressar esses monstros de forma mais lúdica, sem sofrer tanto, chamando o leitor para uma ciranda entre crianças. Acho que hoje eu me amo mais, então procuro me perdoar e ter paciência. Eu não mudaria nada em meus primeiros textos. Eram camadas necessárias e estudos de estilo a partir de grandes leituras que me influenciam até hoje. Se tem uma coisa de que não me arrependo nunca é do que a literatura me deu ou tirou.

Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?

Tenho projetos para os próximos dez anos, os quais prefiro manter em segredo, pois ainda fogem ao meu controle e podem ser roubados. Mas quero cada vez mais entrar na seara dos romances históricos que misturam o relato jornalístico e o realismo fantástico com a síntese da poesia, até como forma de pensar a tradição de fabulação do homem branco europeu, autoproclamado herói. É um momento de democratização de narrativas. Tem muita coisa boa para surgir ao sul do Equador. Quero pensar a espiritualidade ecumênica do brasileiro, as novas formas de sexualidade, afeto e comunidade. Quero revolucionar o mundo numa roda de conversa ao redor de um fogo sagrado, com todo mundo registrando sua versão em celulares com telas brilhantes de última geração.

Filed Under: Entrevistas

Sobre o autor

José Nunes (@nunescnt) é doutorando em direito na Universidade de Brasília.

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O como eu escrevo revela os bastidores do processo criativo de escritores e pesquisadores.