Alexandre Moraes é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não, não tenho “rotina”, mas poderia dizer que tenho uma forma rotineira de nunca me afastar do texto até porque, comigo, o texto é um pequeno inferno amigo que carrego. Drummond contava que às sete horas da manhã já tinha tomado café, pegava suas pastas e já estava escrevendo. Escrevo sobre o que não posso, de modo nenhum, me afastar; então, a “rotina” é diária, mas não tem pasta, hora certa, tudo varia ao infinito, embora pareça sempre da mesma maneira. Começo o dia tentando me afastar/aproximar do que me salta para o corpo, para os sons imaginários, as vozes que se confundem na cabeça. Fui professor universitário durante anos a fio e um dia um aluno me disse no meio de uma aula: “professor, o senhor hoje está como eu: não conseguiu sair do poema e, por isso, a aula está incrível”. O tal generoso aluno está ficando famoso, mas se a aula estava “incrível” ou não, eu não sei, embora não negue que isso me acontecia quando todo o policiamento do professor falhava… Pois é!… A vida cotidiana dá e atrapalha a poesia: ofertando, sonegando e multiplicando.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As manhãs e sempre todas as manhãs são as horas e horas em que trabalho melhor. Tudo que escrevi, ensaio ou poesia, foi sempre de manhã ou na madrugada ainda quase manhã. De manhã, acordo em estado de palavras ansiosas, podem elas conseguir chegar ao papel ou não, mas sempre as palavras me assaltam, me deixam quase surdo, me tornam intenso e tenso. Procuro um café, um cigarro, corro para um computador qualquer ou um pedaço de papel, mas as palavras não são assim fáceis… As palavras (re)lutam, lutas vãs e lutas cheias de uma vitória inacabada e provisória. Escrevo (poesia, quero dizer) para não morrer, mesmo quando fico bom tempo sem publicar livrinho qualquer, ando escrevendo e sempre de manhã ou ainda na noite interrompida da madrugada. Escrever é ato de forçar a barra para tentar deixar tudo fluir; então, escrever se parece com o dia, com os trabalhos do dia, com estar vivo e a dor e o prazer de respirar. Tudo começa ainda de manhã ou numa noite interditada, assim, uma espécie de manhã precoce que começa com o “ritual” infalível do café.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Estou sempre espreitando as palavras que me assaltam, e esse é um ato insuperável. Todos os dias sofro e fico feliz com as palavras, todo dia escrevo, mesmo que sem escrever em papel ou computador, ainda que apenas no corpo. As palavras, as sensações, as vozes, as imagens, os lugares, as caras e os corpos vivem flutuando e boiando num céu obscuro, inacabado e infinito; assim, tento ficar trabalhando para ver o que se passa. Também sou espectador do que trabalho, também sou aquele vê e aquele que transvive e respira o que escreve e vai se escrevendo. Por exemplo: acabei, depois de quatro anos sem publicar, um livro que, depois de editorado deverá ter umas 90 ou exatas 88 páginas. Nesse período de quatro anos escrevi uns cinco possíveis livros que dariam uma enormidade de 400 ou mais páginas, escrevia e escrevia. Sempre me perguntando se aquilo seria um “livro”, se aquilo tudo viria a ser algo que pudesse ser “livro” e entregue. Até que cheguei para um editor amigo e ele editorou o “livro”, um deles, claro! Desisti depois do livro todo pronto para ir para a gráfica. Fiquei achando tudo ruim ou não sentia um livro, tudo estranho, enfim, não gostei e voltava ao “livro” e aos livros sendo escritos. Até que daqueles livros todos sobraram essas 88 páginas, escritas e reescritas todo dia. Acredito que cheguei ao livro que, tem o nome de Quando você descobre que quebrou tudo. As outras páginas rumaram para um lixo eterno e foi sempre assim: escrevo loucamente um “livro” inacabado para sempre, até que chego a um livro que, de fato, teve de ser cortado e tive de parar. Nesse momento, sempre recorro aos amigos poetas/editores e peço socorro para poder parar o que nunca terá fim. Com a escrita da poesia eu me lembro sempre do Jorge Luiz Borges que dizia que “a gente publica para parar de escrever”.
Escrevo concentrado quando entro em desespero, mas escrevo sempre e de algum modo, na cabeça ou no papel, estou sempre pelas manhãs num estado de incompletude absoluta, andando pela casa ou por onde estiver, fazendo coisas para disfarçar a ansiedade até que sento e tento! Não tenho uma meta de escrita diária, mas uma impossibilidade diária de não estar ligado ao que não se conclui.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
As minhas “notas” são sempre infinitas para a poesia, leio e leio, mas o que poderiam ser as “notas”? Vivo o tempo todo tomando notas, anotando aqui e ali, até me perco de tanta “nota”. Não me pareço de jeito nenhum com aquele tipo de pessoa que escreve e é organizada, tem arquivos perfeitos, tudo bonito, enfim… Vivo tomando broncas dos amigos poetas organizados, mas nem consigo, desisto! Eu estou sempre em meio a alguma coisa, começo, descomeço e recomeço muitas vezes, uma espécie de “Penélope” de palavras! Continuar me é sempre difícil.
Para a poesia vivo pesquisando (farejando, fuçando), mas para o ensaio fico mais tranquilo, mais leve, faço com mais certeza de algum lugar de pensamento; fico mais, digamos, “acadêmico”. Para a poesia vivo procurando, retorcendo o que vejo. Tudo começa nos olhos. Explico: noutro dia um cara que trabalha comigo chegou morto de dor no aparelho digestivo e eu quase morri com ele. Veio aos olhos o sangue, veio a terrível injustiça social com os muito pobres, chegou toda a impossibilidade desafiadora. Procurei um médico para o cara e saí correndo. Papel: anotei, depois caí duro! Conheço uma escritora que um dia me contou que acordava com as brigas conjugais dos vizinhos e que anotava tudo. Era um inferno que ela não podia deixar de transviver e sofrer, escrevia, mas de manhã cedo estava cansada tendo que trabalhar. Eu, vez por outra, nem durmo, atravesso!
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando é a poesia, isso é “normal”; com o ensaio a coisa fica mais complicada porque sempre tive prazos. A poesia é um desafio, se não consigo escrever ou se quero abandonar a coisa toda, é algo que faz parte do processo. Escrever poesia é resistência, tentativa de reter o que se plurivive. As palavras se fazem num antes, durante e num depois, daí a infinitude da escrita.
Quanto ao ensaio, o fato de ser “acadêmico” suaviza o desafio e fico mais leve para a escrita e a reescrita. Embora isso não seja lá tão grandioso e fácil assim e nem a tranquilidade tão grande. Os projetos são sempre complexos, os maiores e os menores, então só me restar enfrentar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nem saberia dizer quantas vezes reviso, impossível no meu caso em que o texto vai se fazendo, tecendo e destecendo. Mostro para os parceiros amigos, sim. Ouço críticas e até críticas que já me mandaram “jogar tudo no lixo”. Eu joguei, escrevi outro livro, eu sentia algo estranho, mas não sabia o que era. Quando escrevo ensaios, tento não ficar enchendo a paciência das pessoas amigas, mas mostro aos parceiros poucos e generosos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uso computadores desde o tempo do “TK 3000”, ou seja, uso computador desde os anos 1980. Fiquei meio viciado e hoje tenho sempre um iPad ou um celular para escrever por perto. Mas se nada disso for possível, papel mesmo, guardanapo de bar, papel de pão, o meu braço, enfim, saio voando palavras por todos os lados. Rascunho mesmo faço no computador, mas as anotações em qualquer lugar. Sempre usei computador, mas não gosto muito, embora nem saiba mais viver sem um por perto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei exatamente, mas arriscaria dizer que vem das coisas e pessoas respirando, as ideias costumam me aparecer como sentidos, sensações, vozes e ficam me perturbando. Aparecem da própria literatura, da filosofia e da psicanálise, mas exatamente não faço ideia de onde surjam. Não tenho hábitos para cultivo de ideias, mas sei que vivo intensamente as coisas e pessoas, os lugares, os desejos, a dor, a respiração e o prazer.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Mudou mesmo foi a leveza – e digo isto pensando no ensaio. Quando tive de escrever minha dissertação de mestrado, preparei um calhamaço de texto com quase 300 páginas, muito pesadamente teórico; enfim, dureza que eu não tive paciência para rever inteiramente. Na tese de doutorado, a leveza já dava a ver uma brecha, a teoria ficou mais levemente dispersa, revi muitas partes para publicar. Sempre me dizia e ainda me digo: leveza, o que não é nada fácil. Com a poesia, mudaram a aceitação do processo complicado e da reescrita permanente e incessante. Fiquei sabendo o que eu não poderia mais pensar em fazer e como não poderia mais deixar de fazer. Acabando o meu último livrinho de poemas, a coisa ficou mais clara, inclusive para ficar mais leve com o próprio processo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Infinitos projetos, mas para a poesia nunca saberia dizer, afinal ela depende do que se passa no mundo e como esse mundo me faz passar por ele e eu me faço neste mundo ou mundos de intensidades e existências.
O livro que eu gostaria de ler é uma escuridão de idealidades. Sempre sonhei ler, por exemplo, os livros que Julio Cortázar escreveria. Não existem nem existirão, mas penso no que poderia fazer ainda Cortázar, já que morreu com “apenas” 72 anos. Eu sempre fico querendo ler o que escreveria Clarice Lispector, morta aos 57 anos. Esses livros impossíveis tencionam o que está escrito por Cortázar e Clarice, mas não existem, ficam para um infinito reler de intensidades que procriam sentidos infinitamente.