Alexandre Guarnieri é poeta e historiador da arte, autor de Corpo de Festim, livro ganhador do 57º Jabuti.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho rotina de escrita. Escrevo em qualquer hora ou lugar. Faço anotações em papéis que estão à mão, no celular, no bloco de notas dos computadores que uso em casa e no trabalho, gravo áudios no celular e depois transcrevo já alterando palavras, fazendo ajustes em todas as fases do processo, mando e-mails para mim mesmo com esses fragmentos e depois vou coligindo, ao longo de semanas, meses, anos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
As ideias, imagens e sons que me estimulam a escrever não têm hora para acontecer, não sou desses poetas que criam rotina, para o bem e para o mal. Apesar de não ter essa disciplina, sinto que meus textos podem transparecer um alto grau de organização e disciplina e se isso acontece creio que seja resultado do tempo. O tempo pode ser um antídoto poderoso contra o desejo de expor. Ter amigos de confiança que dominem a arte também ajuda, de modo que possam ler e sugerir alterações que melhorem o poema.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como não sou prosador e não estou sob nenhuma exigência contratual, não tenho metas impostas. As minhas metas são internas, auto impostas, e podem variar muito. Posso passar meses sem escrever um único verso, apenas vivendo, consumindo e organizando estímulos os mais diversos (filmes, músicas, paisagens, exposições, conversas, pensamentos, sensações). Também posso passar dias escrevendo novos poemas sem parar, obsessivamente. Geralmente quando antevejo a possibilidade de um conjunto de poemas que conversem entre si, ou seja, quando fica clara a visão de que esse conjunto pode evoluir para um livro, crio margens dentro das quais vou comprimindo meu esforço e meu investimento estético, essas margens geralmente estão condicionadas ao tema que se impõe aos poucos. Escrevo livros monotemáticos. O que preciso para produzir é cultivar a consciência de um tempo estendido. Não há pressa, mas pode haver extrema ansiedade para resolver um par de versos, para achar o ritmo certo num pequeno fragmento e, neste sentido, um mesmo poema pode decantar por anos e anos, entre outros escritos, outros podem se resolver mais rapidamente, dependendo do apuro formal que este ou aquele poema peça. Gosto de pensar que meu domínio é sempre relativo e depende do acaso, das descobertas que vou fazendo ao longo do caminho. Talvez por isso a métrica nunca tenha me interessado tanto. Gosto das sonoridades estranhas e quebradas, num movimento que talvez seja mais de dentro para fora, do que de fora para dentro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Dependendo do grau de complexidade do projeto de um livro específico, pode ser doloroso começar. A percepção do tempo se altera no momento anterior ao salto. Na arte a temporalidade pode se sobrepor ao tempo. Gosto de pensar no capacitor (eu estudei eletrônica no ensino médio), um dispositivo eletrônico que vai acumulando energia até determinado ponto e depois descarrega tudo de uma só vez. Experimento várias vezes esse fluxo alternado que vai do vagaroso ao vertiginoso e vice-versa enquanto vou bolando um poema ou pensando no projeto do livro. Ou de uma imagem embaçada e fugidia no início para uma imagem mais definida e detalhada com o decorrer do trabalho. Para pesquisar, gosto dos dicionários analógicos, dos dicionários de sinônimos e da internet para pesquisar termos técnicos dos universos que visito nos livros, a mecânica, a anatomia, a astronomia, claro que com bastante liberdade e licença poética.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com muita naturalidade, entendendo que os longos períodos de silêncio podem ser bastante importantes na vida de um escritor. O autor precisa aprender a aceitar que há momentos em que a vida se impõe e que certas experiências nos roubam da literatura, erguendo muros. No entanto há outras experiências que oferecem túneis ou pontes que nos lançam da vida para o texto num piscar de olhos. Mas como disse antes, me refiro à escrita enquanto arte, não à escrita profissional atrelada às linhas de montagem de quem precisa escrever para pagar as contas. Aí entendo que a coisa pode ser bem cruel e a qualidade da escrita pode ser a primeira a pagar o preço pelas cobranças do capital.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tantas vezes que sempre perco a conta! Sim, sim. É fundamental contar com a escuta dos pares, com leituras que respeitamos, de escritores que admiramos. Nem sempre é fácil essa abertura e há receio de que o juízo alheio, quando exacerbado, atrapalhe o desenvolvimento do trabalho e a fluência do andamento, mas acho que o preço a pagar quase sempre vale o resultado. Considero inestimável a colaboração dos amigos do peito. O escritor precisa aprender que toda obra é coletiva, afinal ninguém inventou sozinho o dicionário e a língua materna é um código que já estava dado desde o nosso nascimento, é simplesmente o resultado do acúmulo de séculos e séculos de mutações culturais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto da tecnologia. Infelizmente o reconhecimento vocal ainda não se firmou totalmente e quando estamos na rua ou em ambientes barulhentos, fica complicado para o aparelho produzir um resultado impecável. Mas faço uso sempre que posso, usando o aparelho celular. O computador e o celular são suportes como quaisquer outros, portanto não tenho preconceito algum.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
No meu caso, consumir arte é fundamental. O chamado “ócio criativo” é importantíssimo, um ócio produtivo, em que posso me permitir apenas desfrutar dos pensamentos e sensações, sem cobranças exageradas do intelecto, para que esses estímulos possam “capacitar” (como os capacitores), novas ideias. Ler poesia também é um hábito que eu não me permito abandonar. Nunca se sabe onde uma ideia nova pode brotar, se num solo de guitarra, numa cena de cinema, numa obra de arte, numa página de história em quadrinhos, num sonho, num muro grafitado, numa paisagem urbana, na observação de um pássaro, etc. Enfim, a matéria bruta deve poder encontrar nos cinco sentidos um terreno favorável à transformação, e daí para uma espécie de “transubstanciação”, do chumbo para o ouro, da vida para a arte. Para mim, toda arte guarda essa relação com a alquimia. Nenhuma arte nasce do zero, estamos sempre manipulando elementos que já existiam muito antes de nós, até se quisermos romper com eles. No meu caso é a língua portuguesa, o verso livre, o branco da página, os estilos, os poetas que li e reli, os poetas novos, vivos ou mortos, que ainda vou descobrir, a ideia mesma do livro enquanto dispositivo, etc. A novidade nada mais é que um novo arranjo de coisas antigas. Não creio numa novidade tão radical a ponto de prescindir do passado, da história, das tradições. Não acredito que seja assim que esse nosso mundo funcione.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como seres humanos sempre em mutação (como os taoístas acreditam), eu sinto que mudei bastante ao longo do meu percurso produtivo, sobretudo desde o meu primeiro contato com o universo da poesia. Acredito que fui chegando a um determinado entendimento do que é a poesia para mim e do que escolho perseguir ao construir um poema, ou um livro de poemas. Ou seja, tenho mais claro para mim hoje em dia o tipo de poesia que gosto mais, sem com isso deixar de entender que a arte é aberta e traz a polissemia desde o seu centro mais secreto. Não existe verdade. Existe a arte que aprendemos a apreciar e caso não consigamos evitar nos tornar artistas, a arte que desejamos produzir. Isso também não é garantia de sucesso, que fique claro. Para mim, o que me conduz ao poema é um abalo sísmico, um rearranjo das placas tectônicas da linguagem. O poeta precisa manter calibrada sua aparelhagem para monitorar cada pequena fratura ou trepidação na malha que conecta o dentro ao fora. O poema nada mais é que o registro dessas alterações, um gráfico das conexões entre a malha da língua e de como o próprio poeta percebe a realidade, por vezes reafirmando a força da gravidade, noutras remendando como pode, criando pontes e suturas entre o real e o fantástico, flutuando na liberdade da gravidade zero. A descoberta desse campo mágico (ao mesmo tempo material e imaterial) em que a arte se constrói, foi subsidiando a minha persistência pela escrita poética. Esse tipo de descoberta necessita de tempo de maturação. Algo que percebo que dei a mim mesmo, com bastante generosidade.
Olhando para trás, sinto que continuo concordando com algumas de minhas escolhas: jogar muitos textos no lixo (muitos mesmo), demorar a estrear em livro, conviver o máximo possível com a minha própria voz antes de decidir qual o tom usar para me comunicar poeticamente, aprender a me ouvir, experimentar ao máximo essa auto escuta antes de publicar o primeiro livro, experimentar o texto em seu campo ampliado, nos limites com outras linguagens artísticas. Quase todas foram escolhas intuitivas. Mas me sinto confortável e satisfeito com elas. Porque me permiti errar muito, sem sofrer com isso. Ainda assim não foi fácil, e demorou muito mais, sobretudo hoje em dia com as novas tecnologias de impressão e o barateamento dos meios de produção do livro, com o advento da internet para publicizar a própria produção em tempo real (se for essa a escolha). Então acho que diria a mim mesmo o seguinte: “aguente firme que a coisa vai ser demorada, confie em si mesmo, se desafie sempre e nunca desista”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de me desafiar a escrever um livro de poemas que privilegiasse a primeira pessoa, algo de que tomei certa distância (que julguei suficientemente segura) ao longo dos anos. Seria um desafio necessário, ainda que doloroso. Eu gostaria de fazer muitos outros livros muito diferentes entre si, me permitir a reinvenção sempre, sem ter medo ou apego às fórmulas que descobri e pelas quais sinto segurança. Gostaria de criar livros em formatos novos e muito estranhos, cujos textos estivessem intimamente ligados aos seus funcionamentos e formatos. Gostaria de formar parcerias com músicos e escrever letras. De ter um heterônimo poeta transgênero, outro sexualmente imerso na não-binaridade. Talvez experimentar transferir a minha consciência para um módulo de inteligência artificial e pedir com carinho para que escrevesse um novo livro de poemas. Talvez fossem poemas de amor na contramão da Casa das máquinas (meu primeiro livro). Gostaria de… Gostaria de…
Que livro eu gostaria de ler que ainda não existe? Acho que eu gostaria de ler cada vez mais da poesia com a qual me identifico, e ao mesmo tempo me permitisse admirar cada vez mais a poesia que não entendo. Porque todo entendimento passa pelo aprendizado do novo. E todo aprendizado dá trabalho, requer tempo e investimento íntimo. Abandonar a zona de conforto pode ser algo custoso e difícil. Enfim, temos que estar disponíveis para testar constantemente os nossos limites. Só assim é possível ir além. Pessoalmente, e criativamente.