Alexandre Gil França é escritor, diretor de teatro, pesquisador e músico, autor de “Arquitetura do Mofo” (2015).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo com um copo de alguma coisa que eu considere saudável, uma fatia de pão com requeijão para forrar, e depois uma xícara de café. Em silêncio. Tento não conversar neste período (que pode ou não ser realizado na parte da manhã – depende da época do ano). Tomado o café, aí sim dou uma olhada nas redes sociais, travo um diálogo com a Iamni (minha namorada), e começo a ver os compromissos do dia. O café em silêncio é sempre a catedral: em reforma.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu ritual é não ter ritual. Relaciono muito a escrita com ação. Sento e escrevo. Miro o que tenho para cumprir pensando em extrapolar os limites. É assim que faço para a fogueira vingar. Claro que prefiro não ter nenhuma distração. Se existe algum ritual (ou algum hábito relacionado a isso), penso que é fruto do recolhimento. Escrever é uma ação recolhida. Assim, vou de acordo com um certo chamado da cabeça ou de uma certa vontade consciente de agir. Isso pode se dar a qualquer hora. Mas é sempre uma ação que me proponho a realizar até o fim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Depende muito do período em que estou da vida. Por exemplo, quando acumulo uma carga grande de aulas e obrigações mais burocráticas, geralmente, o modo escritor fica restrito a lampejos que me vem em momentos diversos de distração. Quando percebo que algum desses lampejos tem chance de virar algo maior (de um lampejo, para um solzão do meio-dia), me empenho em encaixar o desenvolvimento deles entre uma obrigação e outra. Se fico sem dormir pensando nisso, então me volto para a escrita da tradicional página diária. Isso se torna quase como uma repescagem para a etapa maior que é “tenho um projeto de livro”. Assim, se o lampejo sobrevive por tanto tempo, me sinto “chamado” a terminá-lo em uma grande estrutura.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como disse, relaciono muito a escrita com ação. É necessário fazer quando somos convocados, não só pela cabeça, mas pelo corpo inteiro. É corporal o negócio. E independe de notas colhidas ao longo do tempo. Pode que uma nota gere um estardalhaço e mil não sirvam nem para acender a churrasqueira. Uma espécie de charme nos sequestra em uma ou outra ideia anotada, em alguma sensação aleatória ou imagem, numa lembrança recente ou antiga, e até mesmo no esquecimento. A questão é entender um certo galope que um determinado estimulo irá nos impor. Depois, quando estou enterrado na escrita até o pescoço, me vem um sentimento de suspensão que me sinto compelido a cultivar; ficar aéreo, em modo avião. Entrar na viagem que é sempre um retorno ao que não conhecíamos da gente. Sabemos quando a coisa tem potencial de incêndio e quando é apenas uma performance, uma ceninha para o nosso público ideal e imaginário (algo que precisou ser expressado, com o intuito de cumprir algum papel simbólico do inconsciente). Penso que as duas coisas devem ser postas em prática: tanto a ceninha quanto o galope. Botar pra fora mesmo. A ceninha também faz parte do processo. Mas é claro que existe um certo gozo singular na captação do galope, pois isso torna a escrita especial. Charmosa. Quando entendemos e gozamos com a singularidade da coisa, quando percebemos, principalmente, que esta singularidade sempre esteve com a gente, daí mergulhamos nela para nunca mais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido (risos). Não sei muito se a palavra “lidar” se encaixa aqui. Às vezes, a trava é um processo da própria escrita, um tempo vazio que precisamos atravessar para entrar em outro cenário de ação. Procuro ter paciência sabendo que irei fracassar em tê-la. Geralmente, me machuco bastante nesses períodos (e não sei como isso poderia ser diferente). Sou bem ansioso e, antes, descontava em cigarros e bebidas (parei de fumar há uns quatro anos). Hoje, desconto em guloseimas variadas. Tenso. Mas eu tenho conseguido sobreviver.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Hoje, reviso milhões trilhões zilhões de vezes (já me ferrei muito por não revisar o suficiente, se é que existe “o suficiente”). Até me dar uma sensação de esgotamento. Até eu sentir que deu. Mas olha: nunca está bom o bastante, essa é a realidade. Parar de revisar é abandonar o material. E não o abandonar é revisá-lo para todo sempre. Então…
Quanto a mostrar para outras pessoas: sim. Costumo mostrar para pessoas de confiança, amigos íntimos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antes escrevia bastante à mão (principalmente poemas). Mas com os quase quarenta chegando, comecei a sentir dores por isso. Atualmente, só escrevo à mão se não tiver outros meios. O celular tem me ajudado bastante neste sentido.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acredito que as ideias vêm da vida que vivi, das minhas memórias, de como elas me afetam e de como me relaciono com elas. Não tenho hábitos para me manter criativo. Mas tento me manter ligado. Vivo no melhor sentido que esta palavra possa ter. Tenho uma terrível tendência ao afundamento. Ao encastelamento. Ao enclausuramento. Quando chego na beirada do fosso, ligo logo um alerta vermelho na cabeça. Geralmente, o que me faz sair dali são ideias, nem sempre boas. Mas essas ideias carregam um gosto de alívio sempre diferente para mim.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu não diria nada (risos). Se eu dissesse alguma coisa, poderia atrapalhar o que eu vivi, o que escrevi. Quero continuar não tendo controle sobre o que virá daqui pra frente em termos literários (isso não significa que eu não me arrependa de uma porrada de coisa que fiz, por não ter experiência suficiente).
Quanto aos processos de escrita, aí eu te diria que a perspectiva mudou. Percebi com o passar do tempo que nem sempre as questões estão “lá fora”. Há esta lenda romântica que diz “vai viver a vida e volte para contar” (no sentido do “desregramento dos sentidos”, da aquisição de experiência e da quebra de ideais). Penso que sim, isso é fundamental. Mas a noção de que as coisas se constroem com paciência e dedicação, eu não tinha. Eu tratava isso com displicência. Achava que era só me atirar do alto e pronto.
O desenvolvimento de novas percepções, a gente adquire vivendo, mas também construindo; nos construindo (não sei se me faço entender: claro que construção e vida andam juntas. A vida é uma construção. Talvez eu esteja querendo dizer no sentido de uma construção artística mesmo, trabalho que a gente almeja deixar pro futuro, enfim). Certamente, eu era muito mais intuitivo do que sou hoje. Gosto de lembrar de como eu era, mas gosto de saber que posso ainda mais com o que aprendi.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de terminar meu novo romance. Ainda não sei para que lado vai. Tenho menos de vinte páginas e uma disposição de urso adormecido que cultivo diariamente. Aguardo a torre de comando me ordenar o pouso. Estou feliz e ansioso para o que virá. É sempre uma excursão pelo corredor da vida a escrita.
Tenho uma fila imensa de livros para ler. O livro que ainda não existe vai ter que ficar para depois.