Alexandre Gennari é escritor e roteirista, autor de “Nossa Senhora dos Fracassados” e “A Onça eu Engoli inteira”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo tarde e não tenho muita hora pra acordar. Há pouca rotina. Tanto de manhã quanto em qualquer outra hora do meu dia. Meus dias começam e terminam de forma meio orgânica.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de noite. Muitas vezes madrugada a dentro. Não só trabalho melhor, mas tudo em mim funciona melhor. A descoberta destes mecanismos do corpo muitas vezes leva tempo. Respeitá-los nem sempre é possível. Sobretudo quando os horários do corpo contrariam aqueles nos quais o mundo à nossa volta funciona, como no meu caso. Levei um século pra descobrir que sou um animal de hábitos noturnos. E mais um século pra respeitar essa característica e conseguir adaptar isso às demandas do mundo exterior.
Não tenho rituais propriamente, mas preferências. Prefiro escrever escutando música, com volume baixo e repertório tranquilo. Importante que seja instrumental, sem letras, sobretudo em português. Palavras roubam minha atenção. Ouço jazz predominantemente. Adoro saxofone. Adoro metais. Prefiro ambientes arrumados e simples. Prefiro estar só e em lugares calmos. E gosto de janelas. Procuro sempre colocar minha mesa de trabalho de frente pra uma delas. Uma espécie de respiro pra alma. Se do lado de lá houver natureza, melhor, ou alguma beleza, mas já escrevi muito em janelas que enquadravam paredes de outros prédios ou centro urbanos. Mas nisso também há beleza. Mas cuido para que preferências não se tornem “regulamentos.” Que não engessem a criatividade e a produtividade. Costumo me isolar pra realizar projetos maiores, que demandem mais tempo. Não necessariamente durante todo o trabalho, mas estrategicamente, para iniciá-lo, concluí-lo ou fazê-lo ganhar corpo. Romper com a rotina, viajar e me instalar em lugares diferentes daqueles do dia-a-dia é estimulante e producente pra mim.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quase que diariamente mesmo quando não há obrigatoriedade ou projetos em andamento. Detesto clichês mas sou adepto do “nulla dies sine linea (nenhum dia sem uma linha).”
Quando há projetos maiores, um romance, um texto teatral, um roteiro cinematográfico, multiplico o volume da escrita e o tempo que dedico a ela por períodos concentrados. Mesmo assim não estipulo metas diárias. Detesto metas. Basta-me o propósito de escrever tal projeto. Mas isso não serve para textos sob encomenda. Aí procuro uma equação adequada de horas/dia de acordo com os prazos. Vejo o fluxo da escrita como o das ondas, ciclos que aumentam e diminuem naturalmente por meio de processos que nem sempre dominamos completamente. Esses ciclos acontecem dentro de uma mesma semana, de um mesmo dia até. É preciso entendê-los, respeitá-los e aproveitá-los. Como sou ciclotímico, a questão pra mim é de vida ou morte. Mas entendo que os não-ciclotímicos tenham seus ciclos produtivos também. Há projetos que demandam mergulhos profundos e atenção total. Não pode ser diferente. Quando escrevia meu primeiro romance me deparei com dificuldades por ter que interromper o trabalho inúmeras vezes para atender demandas de textos por encomenda. Retomava para, logo em seguida, encarar uma nova interrupção. Lia que o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, quando trabalhava em jornal, escrevia à noite. Tirava férias para escrever. Depois de um mês, tinha mais um livro pronto. Eu não conseguia fazer dessa forma e me culpavapor isso. Estive a ponto de abandonar o projeto. A janela só se abriu quando li o japonês Haruki Murakami. Em “Do que eu falo quando falo de corrida,” Murakami traça um paralelo entre correr maratonas e escrever romances. Diz: “Sou o tipo de pessoa que precisa se comprometer totalmente com seja lá o que fizer.” Também sou esse tipo de pessoa, pensei, não sou incapaz nem uma anomalia. Simplesmente “funciono” desta forma. Larguei tudo o mais e escrevi dois romances de uma vez. É extremamente contraproducente, estar mergulhado em uma narrativa, – só com os olhinhos de fora quando muito – com toda uma estrutura, muitas vezes complexa, na cabeça – e ter que sair da água a cada pouco. Secar-se, trocar de roupa… O tempo necessário pra voltar ao ponto da parada – com o volume de informações e ideias correspondentes fervendo na cabeça – é enorme, e a energia dispendida é absurda. É preciso estar imerso por inteiro naquela ideia, naquela atmosfera e aí nadar pacientemente fechando ciclos menores. Estes ciclos nem sempre são determinados pelo autor, mas pelo fluxo natural de ideias e energia, a serviço de uma estrutura ou de um contexto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Começo por criar uma estrutura (e com ela uma estratégia). Mesmo que seja para um conto, uma crônica ou um roteiro curto. Mesmo que o ponto de partida tenha sido um fragmento de texto criado sem intenção nenhuma. Mas estruturas podem (e devem) ser alteradas de acordo com o desenrolar das narrativas. Criar estruturas que de fato funcionem, que sejam originais, mas acessíveis ao mesmo tempo, me parece a parte mais difícil.
Começar depois e logo deslanchar é fácil, porque à medida que faço as pesquisas, algumas vezes entrevistas, etc, as informações já vão se encaixando na estrutura e algumas ideias vão se desenhando mentalmente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Creio na inspiração na escrita ficcional. Mas apesar de ver a escrita criativa como resultado da quebra de rotinas e regras, não acredito que aquilo que entendemos por inspiração deva reger o ritmo do trabalho. Muitas vezes o encontrar caminhos, saídas e inspiração para determinado texto ou projeto, depende da concentração do escritor naquele tema, naquele universo e isso requer, paradoxalmente, disciplina. A principal ferramenta para romper travas é não temê-las, respeitá-las como ciclos que precisam de maturidade para passar à etapa seguinte. O medo da trava é a trava em si. Mas que em nome do respeito a tais ciclos não nos fascine a doce rede esticada junto a uma janela para a praia, mas um estado permanente de alerta para a ideia em si, para o todo. O escritor que diz que não teme a rejeição de seu leitor, que escreve para si, é um rematado mentiroso. Entretanto, quanto menos temor tiver desse leitor fictício, menos travas encontrará.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Vejo a escrito como puro artesanato. Entendo que há um momento de registrar livremente os relatos da forma que vêm e outro de dar forma, polir, caprichar no acabamento. Sou Graciliano, não Kerouac. Mas há uma hora também de dizer: Está pronto. Chega. Se não corremos o risco de ficar o resto da vida burilando.
Hemingway era contra submeter textos a outros escritores. Dizia que escritores são invejosos e competitivos e que detestava qualquer texto de outro escritor. Se fosse ruim, dizia, detestaria porque detestava textos ruins. Se fosse bom, detestaria porque sentiria inveja. Embora ele tivesse sua parcela de razão, coletivos de escritores oferecendo suporte uns aos outros é uma boa opção. Dizem também que familiares e amigos podem gostar de você, mas não necessariamente do seu texto. É um fato. E pode libertar a parentada dessa saia justa e evitar uma série de constrangimentos. Mesmo assim, durante um século, submeti meus textos primeiramente à minha mulher (hoje ex-mulher). Tenho uma espécie de guru literário que me acompanha e aconselha. É meu “captain my captain,” costumo dizer, parodiando “Sociedade dos poetas mortos.” É um homem bem mais velho do que eu que, quando jovem, foi escritor, editor, depois livreiro. E um leitor contumaz. Está comigo desde meu primeiro livro, uma coletânea de contos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Me dou bem com a tecnologia. Nunca resisti às novidades.
Sempre escrevo no computador, embora use um bloco de notas pra registrar aquelas ideias que vêm muito rápidas. Quando era garoto as pessoas faziam curso de datilografia para usar máquinas de escrever. Depois virou digitação. Fiz os dois. Cada um a seu tempo. Digitar pra mim é rápido e fácil. Marçal Aquino escreve seus livros à mão e diz que o ritmo da nossa mente produzindo literatura é mais compatível com papel e caneta do que com a digitação. Talvez seja mesmo verdade.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A maioria, se não todas as minhas obras, têm como matriz o real. Fatos, pessoas, vivências, notícias do jornal. Muitos atribuem esse movimento ao fato de eu ter estudado jornalismo, embora não seja jornalista. Mas não há nada mais fantástico do que a realidade.
Rotinas não favorecem a observação do mundo, os fluxos de ideias e pensamentos. É preciso deixar abertas as janelas, olhar através delas e mudar aquilo que vemos através delas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Os métodos interiores se tornaram mais claros. E os externos mais funcionais.
Diria: Compreenda e Respeite seus ciclos criativos e produtivos a partir do conhecimento do seu corpo, dos seus processos, da sua forma de se organizar.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de adaptar meus romances “Descaminho – O sorriso do gato” e “Descaminho – A boca do cachorro” para cinema ou série. Cheguei a vender os direitos mas a coisa não andou.
Gostaria de ler um livro que retratasse de forma ficcional os tempos obscuros que estamos vivendo no Brasil com a ascensão do conservadorismo, do reacionarismo, mas sem ser panfletário ou raso. E que o foco fosse pessoas vivendo estes tempos e não apenas os fatos em si.