Alexandre Ferreira Ramos é professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha primeira atividade é tomar um bom café. Enquanto preparo o café, gosto de tocar violão. A música acaba colocando meu cérebro em funcionamento de uma maneira que as emoções se tornam positivas. Em geral, após essa etapa, saio para o trabalho, de bicicleta ou metrô, dependendo do local para onde vou (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo ou Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP). Eventualmente, prefiro ficar em casa e fazer uma caminhada para estruturar alguma ideia que já está suficiente maturada e em condições de implementação, seja escrita ou uma apresentação. Isso também ocorre quando desejo concluir algum cálculo cujos pontos centrais ainda não foram amadurecidos o bastante. Aos finais de semana, gosto de fazer “o que der na telha”.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto muito de trabalhar de madrugadinha, em torno de cinco da manhã. Nem sempre consigo, pois pode acontecer também de eu ter compromissos durante a noite (no semestre atual, minhas aulas são noturnas). Após o horário de almoço, realmente sou pouco produtivo. Diria que os bons horários são da hora em que acordo até o almoço. Do final da tarde até a hora do jantar. De madrugada pode ser bom se eu acordo no meio da noite com uma ideia que alcançou maturação inconsciente durante o sono. Não tenho consciência de ter qualquer ritual.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Trabalho principalmente com redação de artigos científicos, em especial sobre física aplicada à biologia, ao câncer ou arquiteturas de supercomputadores. Para isso, é necessário antes de tudo saber sobre o que pretendo escrever. Para saber o que quero escrever, necessito de uma longa etapa de pesquisa, em que realizo cálculos, encontro soluções de equações, construo diversos gráficos ou tabelas e discuto esses resultados com meus colaboradores. Nessa etapa, busco atingir um grau de entendimento suficiente para iniciar a redação de um artigo.
Na redação, sigo um fluxo que aprendi com meu orientador de mestrado e doutorado: primeiro escrevo os resultados, em seguida os discuto, por fim, mostro os métodos que utilizei para obter esses resultados. Em seguida, vou escrever as conclusões e, por último, a introdução. Começo a ler e reler, para depurar o texto e encontrar pontos para adição e remoção de conteúdos, referências e verificar se o que eu “gostaria” de ter dito é, de fato, aquilo que “consegui” dizer em meu texto. Nessa fase, muitas vezes acabo por compreender alguns detalhes conceituais cujo entendimento ainda não era fino o bastante. Durante a depuração, é essencial pensar como se fosse meu leitor em potencial, e não como um indivíduo totalmente familiarizado com o tópico sobre o qual escrevo. Essa etapa de redação em geral é realizada diariamente. Acho que isso é crucial para manter a mente ligada naquele conjunto de ideias.
Quanto ao fluxo de redação apresentado acima, ele permite que, durante a redação da introdução, eu foque exclusivamente em introduzir de fato o assunto que pretendo abordar no restante do artigo. Ao escrever os resultados antes dos métodos, eu posso também limitar-me a definir e descrever, na seção de métodos, apenas os conceitos que serão necessários ao entendimento dos resultados e sua discussão. Caso contrário, se começo a redação pela introdução e métodos, posso querer falar de tudo que li, gostei e que, não necessariamente, introduz o que virá depois. Sendo assim, pode tornar a escrita um processo interminável e, caso o texto seja concluído, tornar sua leitura enfadonha.
Quando vou redigir outros tipos de textos, destinados a um público não especializado, a abordagem é muito similar. Primeiro, tento entender com a máxima clareza possível sobre o que pretendo escrever. Após ter uma ideia suficientemente clara sobre isso, passo à redação. Em seguida, faço uma depuração exaustiva, que considero estar finalizada quando a leitura é fluida, isto é, feita sem “solavancos” que chamem minha atenção para incongruências, erros e falta de clareza na exposição das ideias. Mesmo assim, espero uns quinze dias até uma próxima leitura, correções e divulgação – ainda ciente de que há possibilidade de correções. Mas há um momento em que é melhor parar de vez. Prazos fazem isso muito bem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A fase da escrita ocorre quando consigo apresentar o material de pesquisa como um conjunto uno de resultados que conseguem demonstrar com clareza alguma ideia para uma pessoa aleatória, incluindo um bêbado no boteco. O meu guia é que cada artigo deve apresentar uma ideia e (como aprendi com meu supervisor de pós-doc), em cada artigo, há aproximadamente quatro resultados que demonstram essa ideia com clareza. Ressalte-se que a despeito dessa fórmula básica, há ocasiões que fogem desse tipo de regra.
Compartilho duas experiências recentes e interessantes que vivi. A primeira foi o convite para redigir um review sobre minha pesquisa. Aos meus colaboradores, disse que levei vinte anos para escrever aquele documento, pois, de fato, somente agora após vinte anos de vida dedicada à formação superior (na academia), é que tenho condições de escrever um texto com aquele conteúdo. A qualidade da escrita ainda pode melhorar, pois gastei aproximadamente quinze dias para colocar tudo no papel. Uma segunda experiência foi quando um de meus artigos foi criticado e elaboramos uma resposta aos autores da crítica. Esse documento foi escrito de sopetão e sob forte carga emocional que quebrou toda a rotina previamente estabelecida. Depois, passamos por uma longa fase de revisão de texto e debate com o editor do jornal e seu revisor antes que o trabalho fosse aceito e publicado. Concluindo, embora eu busque algumas diretrizes, evito me apegar a elas ferrenhamente pois há circunstâncias que saem da regra.
Outro ponto relevante é que, durante a pesquisa e coleta de material, tento fazer a partir de um projeto guia, que já tenha a projeção de como contarei o “causo” posteriormente. Isso possibilita que eu encontre e gere resultados que garantam a apresentação de minhas ideias com uma qualidade que me satisfaça. Essa qualidade requer buscar com igual entusiasmo o que confirma e o que contradiz minhas expectativas (vulgo hipóteses) iniciais. Seja como for, evito me apegar à hipótese e sim ao que de fato observo, para que não contamine meu pensamento por um viés potencialmente incorreto. Quando consigo reunir esse conjunto de material e dar a ele um fluxo com início, meio e fim, começo a formular uma estrutura que possibilite a escrita. Destarte, me trava ter a sensação de que não tenho material o bastante e quando não sei como começar. Em outras palavras, o importante é saber sobre o que quero escrever. Se não sei, travo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A pior trava é a do perfeccionismo. Contra ele, procuro ligar o botão do “pouco importa”. Em geral o faço no momento limite. Mas não gosto disso e estou me treinando para manter o “pouco importa” ligado constantemente, para que possa começar a trabalhar o quanto antes e, assim, chegar a um resultado que me satisfaça. Aqui, são importantes os colaboradores, que auxiliam na organização da agenda de trabalho. Confesso que me organizar ou não me deixar travar por culpa de perfeccionismo é difícil, e até mesmo análise estou fazendo para conseguir evoluir nesse tópico.
Trabalhar em projetos longos para mim é um deleite. Gosto de longas jornadas que sei que exigirão muito de mim. Gosto de fazer longas trilhas e isso, de certa maneira, já estrutura meu cérebro para lidar com longas jornadas até a chegada de um certo objetivo. Também ajuda a lidar com os percalços do caminho, para manter a ansiedade sob controle e para não me deixar guiar pelos inevitáveis medos. Todavia, há dificuldades outras, que aparecem em tópicos que me são mais estranhos ou desagradáveis em grande intensidade, em geral associados a solenidades ou questões administrativas que me travam sobremaneira. Essas são dificuldades que tenho que aprender a lidar e que ainda não consegui superar por completo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso meus trabalhos uma grande quantidade de vezes e não há um número fixo. Já tive textos que bastaram duas revisões e outros que demandaram mais de vinte. Cada um depende de sua complexidade, do quão longo é o texto, o quanto a estrutura pensada inicialmente é boa, meu grau de domínio sobre o assunto, de quantos coautores e como eles auxiliam e revisam. Em geral, gosto de ouvir uma opinião ao final, quando estou satisfeito, para saber se já devo encaminhar o documento ao grande público e/ou a uma revista para revisão por pares.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Amo o computador, mas não sou correspondido e gosto de brincar que tenho um toque de midas invertido para computadores. Invariavelmente, minhas máquinas sofrem panes espetaculares. Utilizo rascunhos feitos à mão e feitos no computador. Gosto de esquematizar meus textos à mão. Gosto de escrever e diagramar no computador. Gosto de corrigir no papel. Gosto de calcular no papel, na lousa e no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tento interagir até com o poste da praça perto de casa. Amo ler de tudo. Amo música, arte, literatura. Amo falar bastante e, portanto, amo as palavras e a maneira como elas se combinam e motivam em nós emoções e ações. Uma de minhas diversões favoritas é associar ideias, conceitos, imagens oriundas de diferentes ramos do conhecimento ou da cultura humana. Amo a capacidade humana de criar. Me esforço ao máximo para compreender meus problemas de pesquisa com a máxima profundidade possível, enfrentando as inevitáveis dificuldades que me desanimam e assustam o quanto antes. Ao agir assim, tendo a criar um entendimento mais refinado, pois me defronto com perguntas que ainda não sei responder. Ou então perguntas que ainda não foram respondidas e, para respondê-las, necessito criar novas soluções. Assim, desenvolvo minha criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Hoje eu compreendo a escrita como um processo de criação de imagens mentais que possibilitem uma interlocução com quem me lê. Entendo que essas imagens precisam atingir as emoções de uma maneira que meu leitor ou leitora se sinta interagindo comigo de maneira profunda, isto é, entendendo exatamente o que digo. Com isso, esse leitor ou leitora terá a chance de apreciar, concordar e contestar tudo o que penso. Na escrita científica, esse paradigma é de suma importância. Em literatura, eu escreveria de forma mais livre, visando um diálogo em que meu interesse seria também suscitar a livre interpretação de quem me lê.
Para o Alexandre do mestrado, eu diria para ter sido mais focado e menos deslumbrado e medroso. Para o Alexandre do doutorado, eu diria que gostei da tese. Diria também que poderia ter sido mais organizado e para ter redigido os artigos dela derivados antes. Todavia, como dois deles foram escritos, isso facilitou a redação da tese deveras. E daria os parabéns por ter escrito um texto breve e rico em desdobramentos em potencial. À todos os Alexandres de todas as fases de minha vida, eu digo “seja mais organizado, rapaz, divirta-se com esse texto, mantenha sempre duas cópias de segurança em dois HD’s externos e, ao invés de travar, ‘não entre em pânico’ e solucione com rapidez todas as dificuldades administrativas que surgirão no caminho”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Em 2006 fiz uma grande viagem, passei por La Paz, Macchu Picchu, Lima, Iquitos, Tabatinga, Manaus, Belém, Teresina, São Raimundo Nonato, Dom Inocêncio, Petrolina, Remanso. Reencontrei a família de minha avó em Dom Inocêncio, 65 anos depois de ela ter saído de lá, casada com meu avô, e nunca mais ter tido contato com os seus. Foi, depois da “gastrulação”, a coisa mais incrível que já fiz! Gostaria de relatar essa experiência para outras pessoas, e o quanto ela me afetou.
Recentemente, comecei a ler um livro sobre o mito de Prometeu em que um analista apresenta sua interpretação do mito. Gosto bastante dessa interpretação e penso que, a despeito disso, essa mitologia ainda não atende às necessidades psíquicas e sociais de uma sociedade como a brasileira, cheia de misturas e absolutamente complexa. Os livros que ainda não li e que ainda não foram escritos apresentarão a nós, brasileiros, esses mitos e uma nova mitologia. Com isso, seremos auxiliados na construção de uma identidade que nos permita compreendermo-nos como um grande grupo social capaz de ser solidário consigo a despeito das grandes diferenças. E mais, nos auxiliará a compreender que essa diversidade é uma de nossas maiores riquezas. E também nos possibilitará compreender que a originalidade de nossa geografia, de nossa história, de nossa biodiversidade, exige soluções originais que somente a tradicional criatividade brasileira será capaz de dar forma final. Sem isso, não nos afirmaremos como nação soberana mesmo que saibamos incorporar tudo que já foi criado por outras culturas.
Por fim, escreverei alguns artigos científicos dedicados à descrição teórica de fenômenos coletivos ocorridos no interior celular. Com isso, espero compreender mais claramente o funcionamento da célula e dos processos vitais. Escreverei alguns artigos de caráter matemático sobre supercomputação e sobre a física da fusão nuclear. Escreverei alguns artigos de divulgação sobre física nuclear, sobre fenômenos biológicos e sobre o método científico, ainda pouco compreendido por uma ampla fração da sociedade brasileira. Nesse interim, minha maior satisfação será realizar esses trabalhos enquanto formo estudantes que se tornem cientistas capazes de manter a “nau da ciência” navegando no “mar aberto” da cultura humana e brasileira. Desejo escrever algum livro de conteúdo literário e algumas letras de música que sejam divertidas e de profundo significado para a alma humana.