Alexandre Brandão é escritor, autor de Contos de homem (1995, Aldebarã), Qual é, solidão? (2013, Oito e Meio) e O bichano experimental (2017, Patuá).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou funcionário público, então começo meu dia com a intenção de chegar ao trabalho. Em períodos de maior disposição, caminho ou mesmo corro no Aterro do Flamengo, entre seis e sete da manhã. Não leio nem escrevo, nem mesmo nos sábados, domingos, feriados e férias.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não me dou ao luxo de trabalhar na melhor hora, nem sei se existe essa hora. Por ter a rotina de um trabalho distante da literatura – sou economista e produzo estatísticas –, escrevo quando dá, não raro no final do expediente, quando a repartição fica quase silenciosa. Os trabalhos mais rotineiros, as crônicas publicadas quinzenalmente, primeiro na revista eletrônica Rubem, depois em meu blog No Osso – muitas delas reunidas em livro, como o recém-lançado O bichano experimental (Editora Patuá) –, são feitas nessas sobras de tempo. Escrevo-as de pouquinho a pouquinho durante dois, três, às vezes quatro dias. Mendigando o tempo para escrever, não tenho ritual algum, a não ser fazer-me invisível.
É verdade que há trabalhos que exigem mais, escrever um conto, organizar um livro. Nesses casos, meu cantinho em minha casa é meu bunker, e nele me protejo das tarefas domésticas menos urgentes e das tentações que estão por toda a casa, em particular na cozinha. O ritual é a disciplina, a disciplina focada daquela hora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas, acho mesmo que, se tivesse o tempo todo para escrever, não estabeleceria metas. Sou muito indisciplinado, não consigo me avassalar à literatura. Aliás, uma das coisas que me levaram a escrever foi a busca por algo que não me cobrasse nada, que me oferecesse a liberdade. Uma ilusão, bem sei, mas meu casamento com a literatura é aberto, com traições.
Desse modo, não escrevo todos os dias. Leio todos os dias. Leio os outros, principalmente, mas também leio e corto e emendo e acrescento algum texto que esteja desenvolvendo. Diria que convivo com a literatura todos os dias. Quando nem a escrita nem a leitura me bastam, invento coisas para me ocupar. Por exemplo: há um ano, desenvolvi, no meu blog, o espaço “E tome palavra”. Nele, peço a alguns escritores (mas não só) que produzam um texto de no máximo 280 toques a partir de uma palavra que escolho.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Dificilmente pesquiso. Sou escritor de arrancar de dentro, pouco cerebral, em certo sentido, e, sem dúvida nenhuma, intuitivo. Gosto de esgarçar as coisas próximas, não à toa escrevo sobre homens, nós, esses que estamos vendo as mulheres percorrendo um lindo processo de mudança. Que estamos assustados. Que estamos felizes. Que viramos um prato cheio para a literatura. Minha pesquisa então é me olhar, é sacar meus amigos. Nada formal, portanto.
De todo jeito, tenho dois processos distintos. Para escrever a crônica, que tem dia e hora para ficar pronta, não posso esperar por nada, corro atrás dela. No dia que defino como aquele no qual vou começar a escrevê-la, sento-me diante do computador e digo: “Agora vai”. E vai, bem ou mal, vai. Já para aquela escrita sem destino muito claro, o início pode se dar por muitos motivos. Durante muito tempo era um título. Do nada, via-me com um título e então tratava de desenvolvê-lo. Agora já não é assim, mas uma frase que surja em horas impróprias pode ser o detonador da história, que nem sempre vem tão claramente e que, muitas vezes, quando se concretiza, faz com que aquela bela frase vá catar feijão noutra freguesia.
Desde que lancei em 2013 meu último livro de contos, Qual é, solidão?, não tenho escrito muitos contos. Escrevi poucos, e eles foram encomendados. A encomenda, nesse sentido, me remete ao processo da crônica. É preciso terminar o trabalho, logo é preciso iniciá-lo de alguma forma. Não é fácil, é desafiador. Minhas experiências foram boas e, nesses casos, alguma pesquisa acaba sendo necessária. Foi assim quando escrevi textos bíblicos (para a Reader’s Digest) ou a história que se passa no Peru (para a coletânea Nosotros – 20 contos latino-americanos, da Oito e Meio). No primeiro caso, a Bíblia foi a fonte, e ponto. No segundo, tive que recorrer a fotos, Google Street, Vargas Llosa, Julio Ramón Ribeyro e Susana Baca. Tudo bem novidadeiro e prazeroso e intelectualmente estimulante.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não temo não escrever. Sei que posso passar algum tempo sem produzir nada, mas escrever é forte demais, me dá serenidade, me estimula, enfim, depois de mais de trinta anos no ofício (estreei no Suplemento Literário de Minas Gerais, em meados da década de 1980, e meu primeiro livro é de 1995), não deixarei de escrever. Volto à imagem de casamento aberto, com traições.
Dei sorte no sentido de que, ainda que não tenha tido grande projeção – no mercado ou em termos de prêmio, por exemplo –, meus livros foram resenhados e elogiados. Assim, a grande ansiedade foi quando lancei o segundo livro, dez anos depois do primeiro, mas, desde então, fico apreensivo com os lançamentos. Será que os amigos vão? Se o livro será bem-recebido não me atormenta. Sei que não escrevo a grande obra do meu tempo, mas até aqui tenho conseguido dialogar com várias pessoas a partir dos meus textos. Isso é muito para um sujeito tão silencioso quanto eu sou.
Em relação ao projeto longo, não sei o que é isso. Uma vez escrevi um conto. Normal, como sempre. Depois escrevi outro. Como sempre. Aí vi que poderiam ser a primeira e a segunda partes de uma coisa maior. Pensei: estou escrevendo meu romance. Avancei então para a terceira parte (os personagens da primeira e da segunda história se encontram). Sim, um romance. Depois fui cortando. Alguns amigos leram, poucos gostaram, e todos apontaram a necessidade de cortar. Pois bem, o romance virou o que chamo de contão. E, até hoje, não o publiquei. É um projeto longo, pois trabalho nesse texto há pelo menos doze anos, com idas e vindas. Imagino que nos dois últimos anos não abri o arquivo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito. Toda vez que abro o texto, modifico alguma coisa. No caso das crônicas, é um sofrimento. Como trabalho, naquela sobra de tempo, por dois, três ou quatro dias, a cada vez que volto ao texto mexo nele, mexo muito. Um inferno. Gostoso, mas infernal. Nessa hora você vira um leitor, um leitor imensamente crítico, ímpar. O leitor e o escritor travam uma luta, e o escritor deve ganhá-la, e ele a ganha. Depois, texto pronto, publicado… bem, o escritor dirá: por que não ouvi tudo o que aquele maldito leitor dizia? Acontece também com os contos, sem o bafo quente do tempo curto. Mas é a mesma coisa, e o sofrimento aumenta quando, contos organizados para um livro, começa aquela leitura atenta, que analisa não só cada um deles, mas também a sinergia do conjunto, outra camada de prazer e sofrimento. Como não bastasse, depois há o diálogo com o revisor. Minhas experiências com os revisores têm sido boas, mas nessa hora, se o escritor não tiver calçado com o tamanco da humildade, o caldo entorna.
Comecei a escrever em oficinas literárias. Portanto o caminho natural é pedir que amigos leiam o que escrevo. Da oficina, nasceu o Estilingues, grupo de sete autores que está junto há trinta anos. Trocamos nossos textos, ouvimos uns aos outros. Tenho outro grupo, mais jovem, uns oito anos de existência, e com ele também há essa troca. Por fim, minha irmã, que trabalha com revisão de textos, lê tudo que escrevo. Corrige erros, mas opina também (menos do que devia). Escrevemos para ser lidos, portanto não posso confiar somente naquele leitor ranzinza, que luta com o escritor, aquele que mencionei há pouco, ou seja, eu mesmo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sei escrever à mão. Não é piada, nem eu nem ninguém entende minha letra. Adeus anotações, caderninhos etc. e tal. Meu lugar é na frente do computador, teclando com todos os dedos. E com o e-mail aberto e com as redes sociais abertas. Enfim, não sou o melhor exemplo para os filhos em processo de alfabetização, que, segundo dizem, precisam passar pelo domínio do lápis.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias, eu acho, vêm mais do assombro, do meu silêncio. Falo pouco, por isso quero escrever, quero falar por meio da escrita. Minhas ideias só podem nascer daí, não vejo mais de onde viriam. Não sou um erudito. Não sou um pensador. Logo, é dessa minha frustração de pouco falante que devem vir minhas ideias. Bem, se é assim, não diminuir muito meus graus de ignorância e mudez é o suficiente para me manter criativo. E o hábito que cultivo para isso é ler. Quanto mais leio, mas ignorante me torno. E mais calado fico. Estou lendo Os irmãos Karamazov, vocês não sabem como está repercutindo em mim – e da minha boca é que não saberão de jeito nenhum.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sou menos ansioso. Conheço alguns truques. No mais, é a tarefa árdua de sempre. É ver uma luz, jogar-se nela e perceber que não passa de um vaga-lume e não serve para muita coisa (talvez para um verso, que, aliás, é mais que muita coisa). Numa crônica intitulada Falando do zero, afirmo que a escrita “é um suicídio que se repete, êxito e fracasso simultâneos”. Que é mais ou menos o que o Fernando Sabino dizia. Para ele, escrever é muito simples: o sujeito senta em frente à máquina de escrever, corta os pulsos e então escreve.
Apesar de um pouco calejado, o processo não muda nada. Nesse sentido, se pudesse voltar à escrita inicial, eu diria para mim mesmo: faça qualquer coisa, mano; daqui a trinta anos, você continuará sem saber se o que fez é bom. E, como consolo, completaria: continue desse modo despretensioso, é assim que deve ser.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho um projeto. Tem aquele fantasma do romance, tudo bem, quem sabe? Meu amigo, os livros já existem, todos, a gente insiste porque cada um é cada um, e só ler não satisfaz o sujeito que quer gritar na praça. Sendo assim, sempre quero ler aquele livro – feito agora, feito um século atrás, dois – que sirva de combustível para mim, que, como eu disse, açule minha ignorância e meu silêncio.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Na realidade, meus projetos nascem a partir de um material pronto. Tendo vários contos escritos, olho para eles e pergunto se formam uma unidade ou algumas unidades. Se a resposta é positiva, elaboro o livro. Isso acontece também com as crônicas, embora essas tenham um diálogo temporal, com o hoje, mais direto, logo a unidade de certa forma já está dada. Por fim, este ano, lanço um livro de poesias (Nenhuma poesia: uma antologia, Editora Patuá) e, de novo, o livro reúne poemas de várias épocas, alguns com mais de 30 anos, outros recém-feitos.
Acho mais difícil escrever a última frase. No meu caso e na maioria das vezes, a primeira impulsiona o texto, então a primeira, se é difícil, não se parece difícil, porque um dia me encontrei com ela, e ela deu início ao conto, à crônica, ao poema. Agora, encerrar é mais difícil, você não pode esfaquear (ou até pode, mas tem de saber manejar uma faca e estar consciente do crime) tudo que veio antes.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Tenho uma rotina de escrever crônicas quinzenalmente (para publicação na revista digital Rubem — rubem.wordpress.com). Tenho muito medo de não conseguir escrever o texto, assim, mal publiquei a crônica de uma quinzena, começo a escrever a outra. A escrita leva uns três ou quatro dias. No primeiro ou nos dois primeiros, fico caçando o tema. No tempo restante, dou tratos à bola, acho o jeitão de transmitir a ideia. Outros textos, “sem compromisso”, vêm ao acaso. Tenho buscado escrever poesias, então passo algumas horas do dia (à noite, nos domingos) com o editor de textos aberto, forçando uma ideia. Às vezes, o poema vem pronto, é um ajuste aqui, outro lá. E tem os dias em que não chega nada, nem uma tediosa rima. Derrotado, vou fazer outra coisa, principalmente ler, que é a melhor coisa a fazer, derrotado ou não.
Não é uma questão de gostar, mas sempre estou metido em mais de um projeto. Bem, não chegam a ser projetos, mas trabalho vários textos ao mesmo tempo.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Não me lembro bem de quando decidi ser escritor. Sei que desde criança eu me via com pendores para a arte. Inventava musiquinhas, fazia números de circo para os vizinhos. Na adolescência, influenciado pela música e encantado com as primeiras paixões, comecei a escrever letras e a compor. Daí veio, um pouco mais tarde, a poesia. Quanto ao conto, por volta de 1983, escrevi uma história sobre um funcionário da Petrobras que tinha de lidar com uma sujeira esquecida em sua casa por longas semanas. Sei que o conto tinha essa história, mas o perdi, não sei como ele era escrito. De todo modo, foi o primeiro, logo vieram outros.
O que me motiva como escritor é buscar um diálogo (estranho, indireto) com o meu tempo. Sou muito calado, não tenho tarimba para a fala, assim a escrita supre essa falha — ou tenta.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não vejo muito claro que algum escritor tenha me influenciado. Algumas pessoas que sabem que meu primeiro livro (Contos de homem, livro esgotado) foi prefaciado pelo João Gilberto Noll fazem essa relação da minha literatura com a dele. Acho um equívoco. Bem, mas os leitores sabem mais que a gente, não é? De todo jeito, eu gostaria de ter sido influenciado pelo Noll, pela Lispector, pelo Borges, pelo Hemingway, pela Anais Nin, enfim, por tanta gente que escreve barbaramente. E eu gostaria, em particular, de ser Victor Hugo.
Estilo próprio? Devo ter, devo ter burilado ao longo do tempo, mas não sei muito bem quando. Até hoje sofro, meu estilo é a insegurança.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Já que eu gostaria de ser Victor Hugo, começo indicando Os miseráveis. Victor Hugo é um artífice da frase (Machado bebeu dali), seus personagens não nos passam indiferentes e suas histórias prendem nossa atenção.
Li apenas um livro do Valter Hugo Mãe, A máquina de fazer espanhóis. O grande barato do livro é criar personagens que estão no rescaldo da vida e assim mesmo estão cheios de vida. A presença de Esteves sem metafísica, personagem do poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, torna o livro ainda mais interessante.
Minha última indicação é Carta à Rainha Louca, da Maria Valéria Rezende. Um livro bem localizado na história (Brasil, século XVIII), mas que fala dos nossos dias, particularmente da mulher atual. A personagem central, ao pedir ajuda à Rainha Louca, dá voz a angústias femininas que só hoje estão à luz do dia. Um achado dessa autora tão criativa e inspiradora.