Alexandre Araújo Costa é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meu processo de escrita envolve uma imersão muito grande e longos períodos de concentração ininterrupta. A estratégia de escrever um pouco todo dia não funciona bem. Funciona melhor escrever muito vários dias seguidos, intercalando os períodos de escrita com outras atividades. Creio que o principal motivo dessa estratégia é que eu demoro muito para entrar no grau de concentração no qual a escrita ocorre de forma eficiente. Quando eu fazia uma dissertação no ensino médio ou provas na faculdade, gastava metade do tempo escrevendo e reescrevendo o início, até encontrar um caminho, sedimentando os argumentos. Depois que encontro o caminho, pelo menos meia hora depois de iniciar o trabalho, preciso seguir o máximo possível nele, pois somente nesse momento imersivo é que consigo ter domínio sobre todas as questões de que quero tratar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Qualquer interrupção nessa primeira hora me devolve quase à estaca zero e, por isso, não consigo trabalhar em várias coisas complexas ao mesmo tempo. Depois que se inicia esse estado alterado de concentração, eu posso ficar assim várias horas. Por isso todos os meus trabalhos de mais fôlego foram escritos basicamente de noite, madrugada adentro: consigo trabalhar de tarde, atingindo uma concentração boa, faço um intervalo de noite que desconcentra um pouco, mas a retomada é mais fácil do que começar do zero, então dá para ir das nove às duas, sem muita interrupção.
Dependendo do nível de pressão imposta pelos prazos, o sono é só um descanso no qual as questões continuam no cérebro, e dá para ficar alguns poucos dias nesse sistema de imersão quase completa. Mas esse é um processo exaustivo, que depois cobra um tempo maior de descanso.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Com essa forma de escrever, as manhãs acabam sendo um período de leitura e não de escrita. Nunca fui uma pessoa matutina. Sem exigências impostas pelo ambiente, eu não acordaria antes das nove nem dormiria antes das duas da manhã. Esse é um estilo de vida incompatível com o cuidado das minhas crianças pequenas, mas um dia eu volto a ele.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu ando sempre em círculos. Para mim, é simplesmente impossível juntar todas as informações para depois escrever. Aqui eu sigo meu marco teórico hermenêutico. Só no processo de escrita é que as questões ganham corpo e densidade. Escrever é projetar significados e estruturas cujo desenvolvimento exige muitas voltas aos dados. Pode ser uma limitação da minha memória pouca, que não consegue carregar os dados e depois lidar com eles. Por isso mesmo eu começo a escrever desde o começo… isso me faz reescrever muitas das coisas que escrevo, o que pode ser entendido como uma falta de eficiência. Isso faz com que meus trabalhos sejam sedimentares: camadas de textos escritos em momentos bem diferentes e reescritos a todo momento. Ando em círculos até chegar a uma densidade que julgo suficiente, tecendo e retecendo a trama, escrevendo cinco versões da introdução, testando várias possibilidades de estrutura.
Creio que isso é estimulado pelo fato de que eu escrevo tão rápido quanto penso. Eu ainda sou do tempo em que se fazia datilografia, em que a gente chegava ao computador sabendo, no mínimo, escrever sem olhar para o teclado em uma velocidade maior do que 200 toques por minuto. E aí não consigo escrever no celular nem no tablet, pois o ritmo do pensamento tem de ser acompanhado pelos dedos. As palavras têm de aparecer na tela de forma automática, pois a escrita não pode ser um entrave. Difícil tem de ser escolher as palavras, e não colocá-las em um suporte.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
A minha educação foi analógica. Quando eu era criança, eu desenhava no verso de formulários contínuos dos computadores da UnB, pois minha mãe estudava computação na universidade e trazia para mim aquelas longas folhas que cobriam o chão. Mas, na minha infância, computadores não eram objetos pessoais nem domésticos. No ensino médio, comecei a ter acesso a microcomputadores, aprendi a digitar, mas os computadores pessoais daquela época eram sofisticadas máquina para escrever e jogar. Não eram instrumentos de pesquisa nem de comunicação.
Quando eu cursei a faculdade, as pessoas não tinham acesso à internet. Meu primeiro email é de quando eu estava no mestrado, mas toda a minha pesquisa sobre decisões do STF envolvia ir ao Supremo para ler as decisões nos livros gigantescos do ementário. Porém, eu nunca tive de escrever um texto longo fora do computador, e a minha forma de trabalho já foi desenvolvida com as facilidades dos processadores de texto: eu já comecei a faculdade livre da necessidade de ter de partir de um plano determinado porque eu podia alterar todo o trabalho ao longo do caminho. Para mim isso foi muito libertador, dado o caráter circular do meu pensamento. Essa plasticidade dos processadores de texto viabilizou meu modo de escrita.
Tudo o que veio depois, em termos de informatização, também ajudou muito uma pessoa com memória reduzida. Nunca consegui guardar textos de lei, números de artigo, números de processos, citações de autores, poemas longos… cada pesquisa para mim envolve duas dezenas de abas abertas no meu navegador, para eu poder consultar tudo ao mesmo tempo. A falta de memória é hoje uma deficiência muito mais contornável do que era há 20 anos, quando eu fiz o mestrado.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm do diálogo. Os bons textos todos são dialogados, revistos por outras pessoas, submetidos a grupos de estudo, testados junto com os alunos. Não conheci nenhum gênio isolado, capaz de ver melhor e escrever coisas maravilhosas. Em certos ambientes muito restritivos, talvez somente o pensamento individual possa levar a saltos criativos. Porém, em ambientes abertos, o diálogo pode levar a saltos muito maiores. A vantagem da universidade é que ela é um lugar de encontro, de contraposição, de conflito, e somente nesse ambiente é que novas ideias são gestadas e desenvolvidas. Os grupos de estudo e de pesquisa que servem para alguma coisa são espaços de afeto, em que as pessoas constroem relações de confiança que permitem que elas apresentem seus pensamentos mais ousados. A crítica dos amigos é mais dura e mas impiedosa do que a crítica amenizada da nossa academia, que pouco lê do que produzimos e dá pouco retorno sobre nossos trabalhos. Quando se passa pelo crivo de um grupo de pesquisa, resta pouco lugar para a insegurança frente à publicação dos trabalhos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro que eu queria ler, e não foi escrito ainda, é sobre a relação entre evolução biológica, psicologia e organização política. Eu gostaria de produzir algo nesse sentido, mas esse tipo de projeto exige um conhecimento muito vasto de muitas áreas, que ainda não consegui sistematizar ao ponto de produzir qualquer coisa relevante. Quem sabe daqui a 10 anos.