Alexandra Lopes da Cunha é escritora, doutoranda em Escrita Criativa pela PUC-RS.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o meu dia muito cedo, pelo menos de segunda à sexta. Tenho duas filhas em idade escolar, de modo que, a partir das 6:30, já estou de pé. Um horário que me é imposto, digamos assim, e que exige doses de cafeína ou não desperto por completo.
Ser mulher e mãe exige de mim uma boa dose de organização. Para tudo. Principalmente para a escrita. Não tenho horários rígidos de trabalho porque não consigo. Se tenho algum compromisso, meu planejamento desaba, mas posso dizer que sempre começo o dia com leitura, principalmente de poesia. Sempre tenho alguns livros de poesia sendo lidos. Posso levar meses lendo um único livro porque, para mim, a leitura de poesia, é feita em pequenas doses. Se estiver a ler um romance, posso ler um capítulo ou dois, ou um conto. Leio vários livros concomitantemente, pois julgo que apenas assim posso tencionar suprir falhas da minha formação, dos anos durante os quais li menos literatura que deveria.
Depois, escrevo. O que vou escrever depende muito. Estou escrevendo um romance no momento. Já tenho onze capítulos escritos, mas deixei o desenvolvimento da narrativa suspensa por julgar precisar de pesquisa para continuar. Então, edito. É impressionante quanto trabalho há de edição, de aprimoramento. Mas não é só. Por vezes, pedem-me um conto e escrevo-o, ou leio um livro que me empolga e preciso escrever uma resenha. A escrita é a forma como penso. Se não escrevo, não penso, ou penso muito mal.
Tento concentrar o trabalho criativo pelas manhãs, quando tenho silêncio ao meu redor, mas, se não é possível, não tem problema. Jogo com o que tenho disponível.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Talvez eu renda mais pela manhã, mas não sei ao certo. É o texto que me pede o tempo e a dedicação. Se estou a escrever algo e não me sinto satisfeita, vou dedicar a ele todo o tempo que eu encontrar. Quando estou empolgada, posso trabalhar por horas a fio sem me dar por conta. Tento retirar das proximidades elementos que possam me distrair – telefones, por exemplo. Entretanto, como só consigo escrever no computador, as distrações volta e meia saltam na tela, mas faço o possível para reduzi-las.
Não tenho rituais para nada. Gosto de ter uma xícara de chá ou café ao lado. Ou preparo uma durante um intervalo. Não escuto música, não faço yoga ou meditação. O escrever é o meu processo meditativo e reflexivo. Por vezes, principalmente se escrevo um poema, gosto de sair para caminhar e vou buscando a palavra que me falta no compasso das minhas passadas. Tenho de estar sozinha. As melhores coisas que escrevi, ou, pelo menos, as que mais gosto, escrevi na mais completa solidão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Isso é variado. Gosto de escrever todos os dias, mas pode que não tenha tempo por alguma razão, mas acho que sempre estamos escrevendo. Tem um texto do Vila-Matas nos diários dele, em que discorre sobre a definição do início de uma viagem. Ele (e eu por tabela) faz uma analogia com a escrita. Quando começa a escrita? Não creio que seja quando alguém se senta diante do computador ou empunha uma caneta diante de uma folha em branco. Nunca estamos sozinhos. As nossas experiências, as nossas leituras, o nosso humor no dia, enfim, tudo isso está ali conosco.
Quando escrevi o Demorei a gostar da Elis, meu primeiro romance (finalista do SESC e do Açorianos), eu escrevia todos os dias. Algumas páginas, um parágrafo. Ou pensava no desenrolar da trama, fazia entrevistas, escutava músicas – o livro é recheado de referências musicais das décadas de 78, 80 e 90-, com o intuito de mergulhar no mundo da história.
Quando escrevi o Bífida e outros poemas, meu livro de poesia, lia muita poesia durante meses e sentava todos os dias com a intenção de escrever um poema. Havia dias perfeitos, mas, outros, desanimadores. Mas, ao final de seis ou oito meses, eu tinha um conjunto de poemas para trabalhar e o livro nasceu.
Assim, a meta é variável. Se me pediram um conto e tenho uma data para envio, tento cumpri-la (os que me conhecem sabem que eu não descumpro prazos). Se não tenho, escrevo até me sentir satisfeita. Pode ser uma hora, uma manhã ou quinze minutos. A escrita é parte do que sou, então faço sempre e sempre que tenho vontade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu não sei se sou organizada. Funciona no meu caso em particular, mas não tenho pastas ou esquemas colados pelas paredes da casa. Para mim, o processo começa quando as personagens começam a falar comigo. Não é algo mediúnico, mas sim eu imaginando uma cena, ou um diálogo. A partir deste ponto, começo a pesquisar. Por vezes, perco tempo, ou acho que perdi, pesquisando coisas que nem usarei, mas que me ajudam a pensar a história.
Acho mais fácil falar do Demorei a gostar da Elis, meu romance de estreia. Eu não tinha ideia de que poderia escrever narrativa longa. Até então, tinha escrito apenas contos. Já tinha publicado meu primeiro livro e o segundo, o Vermelho-Goiaba, prêmio do IEL em 2014, logo sairia. Fui fazer uma oficina na extinta Palavraria com o Ruffato. Só quando cheguei lá foi que soube que se tratava de uma oficina de romance.
Eu não tinha nada: ideia, ou sinopse. Todos os alunos deveriam apresentar uma. Pedi para apresentar a minha no último dia do curso (durava uma semana). Contava conseguir pensar em algo até lá.
Efetivamente, pensei. Ao chegar em casa, praticamente toda a ideia começou a se formar na minha cabeça. Foi uma noite durante a qual quase não dormi. Eu soube que teria duas personagens principais, um homem e uma mulher, que se encontrariam na infância e que tornariam a se encontrar na idade adulta. Eu soube que ela seria fisioterapeuta geriátrica e que atenderia o pai dele, vítima de um AVC. Soube que usaria a música e que a epígrafe teria de ser parte da letra da música Como nossos pais, do Belchior.
Eu não sou fisioterapeuta. Fui me informar a respeito. Entrevistei profissionais, acompanhei sessões de fisioterapia em casas geriátricas, em clínicas, na casa de pacientes. Entrevistei vítimas de AVC, falei com médicos. Passei um ano pesquisando para poder escrever. O mesmo vale para a personagem masculina que defini em determinado momento que seria quadrinista. Entrevistei profissionais, li muitos quadrinhos.
Assim, foi a história que imaginei que foi definindo as minhas linhas de pesquisa. Foi fascinante, trabalhoso, mas muito enriquecedor. Quando terminei a história senti duas coisas: felicidade e melancolia. Eu teria de me separar delas, das minhas personagens.
É assim que funciono. Cada história me leva por caminhos distintos. Vou pesquisando e escrevendo, reescrevendo. A escrita alimenta a pesquisa e vice-versa, até me sentir satisfeita.
Sentir-me satisfeita não quer dizer que esgotei as fontes de pesquisa, mas sim que as personagens e a história, para mim, sustentam-se por si mesmas. Acho que a pesquisa é necessária, claro, mas não que seja a história. De nada adiantaria eu haver me tornado uma especialista em doenças neurológicas, escrever páginas e páginas a respeito, se não conseguisse associar a ocorrência do AVC aos princípios da narrativa que desejava contar. O que importa, no fundo, é a história. Sempre.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu sou ansiosa de nascença, de modo que aprendi a lidar com a ansiedade. Ou não, apenas sofro as consequências dela. Quanto à escrita… Eu não sei, na verdade. Desde que resolvi que a escrita seria a minha última vida (uma frase que roubei de Roland Barthes na Preparação do Romance), eu nunca tive travas ou bloqueios. Eu posso não ficar satisfeita com um texto, mas escrevo. Posso passar dias, semanas, meses, ou até anos me debatendo sobre a forma de narrar a história, sobre como desenvolvê-la. Se fico desanimada, saio para caminhar, vou tomar um cálice de vinho, vou fazer outra coisa. Sei que chegará o momento em que tudo se resolverá, mas isso envolve trabalho. Não espero inspiração nenhuma: sento, escrevo, reescrevo, tenho vontade de xingar o mundo, mas estou lá, diante da tela. Eu sou muito persistente.
Não me preocupa a extensão do trabalho e sim a qualidade final. Com persistência, com constância e disciplina, qualquer trabalho é realizável.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Incontáveis vezes. Hoje, reviso mais que antes e, tenho certeza, se voltasse a textos publicados, incorreria no desejo de modificá-los. Sim, tenho leitores que admiro e nos quais confio para ler os meus textos. Por vezes, empolgada, mando a primeira versão sem edição nenhuma, apenas para ver se a história funciona (ou poema) e vou eu mesma editando depois. A edição só termina se alguém estabelece um limite. Se não, é um trabalho interminável.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu adoro escrever utilizando o computador, não gosto de manuscrever, excetuando poemas, vez que outra, e só se, por exemplo, estou escrevendo um poema e tenho de sair. O que faço então é imprimir o já feito e levar para onde eu for para trabalhar a mão na falta do computador. Se, algum dia, desejarem fazer crítica genética nos meus textos, creio que será uma tarefa inglória.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não tenho uma única fonte de ideias. Algumas parecem brotar do nada, mas sei que não é assim. Surgem de leituras que fiz, vivências, demandas específicas. Participei de uma antologia organizada pelo professor Dr. Ricardo Barberena da PUC-RS. A premissa do livro: os escritores deveriam escrever contos usando como inspiração pertences do Caio Fernando Abreu que se encontram no acervo do Delfos. O que me tocou foi o laptop do Caio que, coisa interessante, depois da morte do seu dono, nunca mais voltou a funcionar.
Eu tinha uma tarefa específica e, a partir dela, escrevi.
Acho que todo o escritor deve ler muito. Literatura, claro, principalmente, as obras canônicas. Não sou eu original em pensar assim. Qualquer escritor que se preze vai recomendar o mesmo, mas não é só: o escritor deve ler muito e de tudo: jornais, revistas, artigos acadêmicos, deve ler sobre ciência, biologia, história, botânica. Em resumo, deve ser um curioso.
Outra coisa, um escritor é um observador: de tipos humanos, de costumes, de paisagens. Os seus olhos e ouvidos devem estar sempre alertas. Passar o tempo todo com a cara colada ao monitor do celular vai reduzir as oportunidades de ver a vida acontecer.
E ser alguém capaz de se espantar. O Ferreira Gullar dizia que o poema nasce do espanto. É verdade. Se não nos deslumbramos ou nos espantamos com o mundo ao nosso redor, como poderemos espantar ou deslumbrar leitores com a nossa escrita?
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu quero crer que amadureci, que melhorei a minha escrita com os meus esforços, com as minhas leituras. Eu me tornei mais humilde e conhecedora das minhas falhas e tento, sem cessar, corrigi-las.
Eu sempre quis ser escritora, mas, durante muitos anos, achei que não estava pronta, até que chegou o dia em que me apercebi que nunca estaria e deveria começar assim mesmo, ou não deixaria nada.
Se pudesse, eu seria menos afoita. É preciso paciência para depurar uma ideia, para aprimorar a linguagem, para perceber o que funciona e o que não funciona. Hoje, eu sei. Quando comecei, não. Era muito pretensiosa.
A escrita me fez melhor, eu acho. Ainda sou um ser humano falho, mas procuro tornar-me melhor: escritora e humana.
A escrita é a minha última vida. É a minha vida. Sem a escrita, eu não existo. Não acho uma afirmação dramática. Acho libertadora e verdadeira. Parafraseando a Simone De Beauvoir: ninguém nasce escritora, torna-se.
Eu me tornei escritora. E sentir-me escritora me faz muito feliz.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Nossa, tenho muitos projetos pensados e não realizados, mas não gosto de falar sobre o que não comecei, talvez por superstição. Não me faltam ideias, mas tempo. Espero poder contar com alguns anos produtivos pela frente para torná-los realidade. O tempo dirá.
Eu não sei se há livros que eu gostaria de ler por serem escritos. Talvez o tenham em outro ponto do globo, numa língua para mim desconhecida. Posso falar dos livros que gosto de ler e dos motivos.
Gosto de livros desafiadores, que exigem de mim atenção, daqueles que jogam com o leitor, ludibriando-o, de certa forma.
Gosto de escritores irônicos, que sabem nos fazer rir ou mesmo gargalhar. Fazer rir com inteligência é uma arte dominada por muito poucos.
Gosto de livros escritos por escritores interessados em narrar uma história e não em aparecer, o tempo todo, pairando sobre as obras. Não aprecio a vaidade autoral, aborrece-me profundamente. Como já escreveu George Orwell, a boa prosa deve ser transparente. Não quero ver o fantasma de um autor pairando sobre o livro, distraindo-me do texto.
Alguns dos livros que li recentemente e que me causaram profunda impressão:
Jamais o fogo nunca, de Diamela Eltit, uma escritora hábil em borrar o tempo narrativo e a mudança de foco e de narrador. A tradução é do Julián Fux. Sensacional.
Releitura: Sangue no olho, de Lina Meruane. Outra chilena. Soberbo. Uma história simples, mas cheia de camadas de significação.
Outra releitura: Formas de volver a casa, de Alejandro Zambra. Outro grande escritor chileno.
Léxico Familiar: livro que li por indicação do Zambra, da autora italiana Natalia Ginzburg. O que encanta: a prosa fluida e fácil, as histórias familiares que nos fazem pensar nas histórias das nossas próprias famílias.
São as últimas leituras, mas há livros aos quais sempre quero voltar: O Amante de Marguerite Duras, Lolita, de Nabokov, Guerra do Fim do Mundo, do Vargas LLosa, a obra de Modiano, de Shakespeare, de Tchecov, os épicos… Enfim, muitos. Melhor parar por aqui.