Alex Sens é escritor, autor de “O frágil toque dos mutilados” (Autêntica, 2015), “A silenciosa inclinação das águas” e de “Corações ruidosos em queda livre” (Penalux, 2018).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia respirando fundo, deixando os olhos fechados, retomando pela memória o último sonho. Se o sonho incomoda, se ele perturba, vira nota num caderno para algum dia se tornar ficção. Eu costumava ter uma rotina matinal, escrever sempre por duas horas depois do café da manhã e da meditação, mas hoje escrevo mais à tarde, das 14h até às 18h. Isso quando estou trabalhando em algum livro novo, um conto, uma ideia. Às vezes escrevo de manhã, quando posso, então não existe uma regra.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Penso que trabalho melhor de manhã e à tarde. Nunca tive o hábito de trabalhar no escuro silencioso das madrugadas (consigo ver o copo de vinho ou de uísque e um cigarro ardendo num cinzeiro de vidro) ou mesmo à noite, quando prefiro ler. Costumava precisar do silêncio, de um ambiente isolado; hoje consigo escrever em lugares cheios, cafés, bibliotecas e até no ônibus. Qualquer pessoa que passa na sua frente pode cair dentro da história, qualquer gesto observado ou palavra ouvida pode iluminar uma sentença. O isolamento também é produtivo, mas não fundamental.
Não tenho rituais que me preparam para a escrita, sei que preciso sentar diante do computador e me concentrar, longe do celular, com a internet desconectada. Quando existe algum bloqueio, ouço uma música instrumental, uma ópera, puxo um livro da estante, folheio, leio passagens, bebo um pouco de café. Disso tudo, alguma coisa arde e faísca, e então posso fazer o fogo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever um pouco todos os dias quando estou trabalhando num livro. É dessa disciplina que ele se desenvolve e acontece. Quando não estou escrevendo, estou pensando e anotando e criando ideias para o livro ou para outras histórias, impossível manter qualquer distância da criação, mesmo quando a cabeça pede por isso. Os estímulos estão aí o tempo todo e eu completamente refém deles.
Quando escrevi “O frágil toque dos mutilados”, meu primeiro romance, eu tive um prazo para conclui-lo porque havia ganhado uma bolsa como prêmio do governo mineiro, mas não tinha uma meta de escrita diária, apenas precisava escrever todos os dias. Isso me ajudou muito a não fugir mais dos livros como eu vinha fazendo, dando início a muitos romances que nunca foram terminados. Com a escrita do segundo romance, “A silenciosa inclinação das águas”, eu criei uma meta diária de duas mil palavras a partir de um programa de edição de textos chamado Scrivener. É esse programa que há alguns anos me ajuda a organizar os capítulos e a estrutura do livro. Gosto de pensar no tamanho aproximado que o livro vai ter, quantas páginas a história pede, porque é sempre ela que pede, a demanda é toda da narrativa, eu só obedeço e vou. Com o livro de contos, “Corações ruidosos em queda livre”, foi algo mais orgânico, espaçado e livre, sem planejamentos muito fechados.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita depende muito da história. Alguns contos não precisam de pesquisa nem de notas, surgem do jorro, e geralmente são retrabalhados depois. No entanto, a maior parte do meu trabalho começa, sim, com muitas anotações, toda uma decupagem das ideias, esboços, desenhos e às vezes gráficos. Eu preciso dessa imersão visual para entender a narrativa toda, do começo ao fim. Depois vêm as pesquisas, quando necessárias, de texto e imagem, e finalmente a escrita per se. O começo do caminho é sempre tomado pela neblina, pelo risco de estar escrevendo no tom errado, com a pessoa errada na voz errada, mas é só na experimentação, na elaboração da palavra, que essa neblina se dissipa e o trajeto se torna visível – até certo ponto. Da pesquisa para a escrita me movo como quem dança tango de muletas, porque ainda falta segurança, ainda falta saber se outras coisas se revelarão e quantas delas, quais delas, precisarão de novas pesquisas, novas leituras, novos mergulhos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas da escrita são necessárias. Nada, no campo criativo, se desenvolve com muita naturalidade, com muita facilidade, porque a angústia de passar para o papel o que está no corpo sempre vai existir, e o quão próximo da realização final está o desejo é o que realmente importa. Já lutei diversas vezes, e ainda luto, com a procrastinação, mas penso que ela seja necessária em dado momento, em pequenas doses para não viciar e acabar comprometendo o trabalho. Sobre o medo de não corresponder às expectativas, ele é sempre muito mais presente em relação a mim, à minha autocrítica, do que ao outro. Eu preciso estar satisfeito com o meu trabalho, estar feliz com ele; o resto é festa, sorte, aceitação. O mesmo vale para projetos longos, com os quais estou mais acostumado. Gosto de permanecer mais tempo numa mesma história, isso me dá um certo controle sobre ela, um conforto diferente, então a ansiedade surge mesmo quando os trabalhos são menores, e cuja concisão precisa ser respeitada.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu costumo fazer uma primeira revisão enquanto escrevo. O trabalho de escrever, parar, reler e continuar, pulando assim de uma tarefa para outra, acontece naturalmente, e torna a revisão seguinte menos cansativa. Com o texto pronto, reviso mais uma ou duas vezes, não apenas para encontrar erros, mas ecos, ruídos, repetições, sentenças inteiras que podem ser cortadas ou aprimoradas. Tenho feito isso com diálogos, algo sobre o qual sempre trabalho com mais cuidado porque me sinto engatinhando nessa área. Diálogos são difíceis: precisam parecer naturais, mas não formais, diretos, mas não robóticos. E antes da publicação costumo mostrar para uma ou duas pessoas nas quais confio muito e cujas opiniões têm um peso especial.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre acompanhei a tecnologia, através de programas de texto, aplicativos de notas e de organização de dados. Gosto dessa possibilidade prática, tão à mão sempre, numa era em que o tempo está acelerado. Ao mesmo tempo, não abandono o lápis, o grafite, a caneta, o papel, os cadernos, os bloquinhos. Ando sempre com vários, anoto neles quando posso; quando não posso ou não os tenho comigo, vai tudo para o celular, em notas divididas em pastas identificadas pelo livro que estou escrevendo ou que pretendo escrever. Os rascunhos, as primeiras ideias, sempre começam no papel, continuam até a organização dos personagens, da linha narrativa e só fica no computador o texto final mesmo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias não vêm, eu é que vou até elas, são elas que me seduzem. A sedução pode estar numa conversa de uma pizzaria, numa senhora atravessando a rua e deixando cair uma maçã verde, num parque com um carrinho de bebê abandonado, numa bexiga boiando num rio, numa matéria de jornal sobre um enforcamento dentro de uma igreja. Tudo que é estímulo seduz; mesmo a exceção, mesmo a pedra, fria e quieta, pode dar uma boa ideia se nela se abre uma cabeça ou se uma criança se senta para ver o mar. O que procuro fazer é sempre observar, estar atento, ouvir músicas, assistir a filmes, viajar e tentar perceber sempre algo precioso no ordinário.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mais mudou no meu processo de escrita foi a disciplina, com sua organização, suas demandas, a consciência de que um livro precisa ser concluído, de que por mais que dê trabalho, que seja um labirinto de surpresas boas e más (como quando você seleciona um trecho sem querer e o exclui com a velocidade da luz), o prazer de se livrar da ideia, da sedução, pode ser tão bom (e às vezes maior) quanto foi lá no começo do trajeto, quando ainda havia a neblina.
Se eu pudesse voltar à escrita dos meus primeiros textos, eu diria: seja paciente. Explore. Experimente. Deixe descansar. Faça silêncio sobre o que foi escrito. Eu mesmo ainda estou aprendendo a ouvir o tempo e a respeitá-lo, embora nem sempre seja fácil.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uma dúzia de projetos que sempre me seduzem. Eles se transformam e se consomem, se descobrem, eu vou só observando, anotando, calculando quando devo colher as primeiras tâmaras. Um desses projetos é um romance epistolar bastante ácido e, social e politicamente falando, muito arriscado, mas que vem tomando forma na minha mente nos últimos anos. E mais não digo.
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe? Aquele que ainda não escrevi.