Alex Sampaio Nunes é escritor, autor de “O manipulador: memórias de um falso poeta” e “Ressuscito na cidade suicida”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Adoro as manhãs, mas quase nunca as aproveito para a literatura. Geralmente durmo tarde. Na minha vida, acordar cedo sempre foi algo que eu tive que impor a mim mesmo. Sempre coloquei atividades “não artísticas” pela manhã, como cursos e período de trabalho. Se eu puder escolher o horário de alguma atividade relacionada a estudo e trabalho (“normais”, portanto), coloco pela manhã. Quando estou livre de alguma imposição de rotina e, ainda assim, acordo cedo (quando isso acontece, é algo natural, sem despertador), percebo a delícia da manhã (por isso comecei essa resposta dizendo que “adoro as manhãs”). Só produzo literatura pela manhã neste último caso.
Mas existe o lance dos sonhos. Quando eu acordo e ainda lembro de algum sonho que possa ser aproveitado na literatura, faço pelo menos alguma anotação para depois lembrar e usar na literatura. Você sabe como é: esquecemos mais dos sonhos do que da realidade e há algo de terrível nisso. Pra sonhar de novo (através da literatura) o esforço é muito grande. Fazer essas anotações é só uma pequena parte do esforço que é não perder um sonho.
Existe também o lance da inspiração. Se, ao longo da manhã, eu tiver alguma ideia, recorro à anotação para depois utilizar na literatura.
Ou seja, não tenho uma rotina matinal de escrita no sentido de produzir textos inteiros, mas, ao mesmo tempo, se você considerar que as ideias e anotações são importantíssimas, tenho uma rotina artística matinal muito fértil.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho na literatura a qualquer hora do dia, da noite ou da madrugada. Raro é ser pela manhã, mas nos demais turnos a produção acontece de forma intensa.
Quanto aos rituais, tenho vários. Um deles se relaciona ao local. Gosto de escrever no meu quarto, no meu notebook, rodeado pelos meus livros. Escrevo em outros lugares muito raramente. Quanto a ler, gosto de ler na sala, no quintal, na rua, ou qualquer ambiente (com o mínimo de calmaria). Outro ritual é revisar o texto antes de retomar a escrita ou mesmo revisar o texto anterior antes de começar um texto novo. Revisar o que já está feito me ajuda a entrar em sintonia com o projeto literário. Quando estou no início de um projeto, reviso as ideias na mente antes de começar a escrever. A revisão de ideias e de textos é um hábito, um ritual, um vício.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Há dias em que escrevo pouco e há dias em que escrevo muito. Não tenho um padrão quanto a isso. Não tenho meta de escrita diária. Minha meta é por projeto. Meu último livro levou três anos desde os primeiros textos até a publicação. O livro que atualmente estou escrevendo provavelmente levará dois anos até a publicação (já se passou um ano).
Gosto de colocar meta semanal: “Alex, toda semana você tem que produzir algum texto ou parte de um texto”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como trabalho com literatura de ficção, da pesquisa para a escrita o movimento é natural. Acontece também de, durante a escrita, surgir a necessidade de alguma pesquisa. O texto artístico possui uma maleabilidade maior do que o texto acadêmico.
Para começar um projeto, a ideia deve estar madura. Só depois de pensar bastante no projeto inteiro, de forma global, é que começo a execução.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Recebo todas essas travas como grandes amigas, converso com elas e entramos em um acordo. É mais ou menos assim, pensando nos sentimentos (todos, bons ou ruins) como personagens, que vou driblando essas travas. É uma espécie de meditação para decidir quando é hora apenas de pensar/refletir, ou de revisar, ou de ler, ou de escrever, ou de fazer qualquer outra coisa. Mas uma coisa é certa: o projeto fica permanentemente na minha cabeça, penso no projeto constantemente. E tudo vira etapa no processo de elaboração do projeto.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
São incontáveis as revisões. A cada vez que abro o arquivo do projeto, faço uma revisão. Às vezes mudo parágrafos inteiros; às vezes, apenas uma ou outra palavra; às vezes, apenas pontuação ou marcação de períodos e parágrafos; às vezes, nada. Creio que meu último livro (aquele que demorou três anos para ser produzido) foi revisado mais de uma centena de vezes.
Mostro para pouquíssimas pessoas. São pessoas que sei que possuem uma visão bem ampla da arte, não apenas da literatura. Gosto da crítica que elas fazem. São pessoas que não têm medo de dizer o que pensam. Isso me dá uma outra perspectiva sobre a minha produção.
Depois de publicado, adoro quando leitores vêm me falar sobre o que acharam do livro. Ali vejo que o livro não é mais meu, mas sim de domínio do público.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Em casa, escrevo direto no notebook.
Muitas vezes, uso meu celular para escrever algumas notas ou poemas. Acontece quando estou viajando. Viajo muito a trabalho. Sempre vou de ônibus. São viagens longas, de dez horas de duração. Muitas ideias surgem nessas viagens. Talvez sentir que me distancio da minha cidade me faça querer lembrar dela. Penso nos seus personagens, nas suas ruas, no seu clima. Muitos textos do meu livro “Ressuscito na cidade suicida” foram escritos ou pensados durante essas viagens.
Tenho alguns cadernos que também uso pra anotações, mas os utilizo menos que o celular e o notebook.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ser escritor é um movimento de vida. Meu maior hábito para a criatividade é a leitura. Quanto mais leio, mais ideias tenho.
O contato com outras expressões artísticas, como a arte visual, o cinema, o teatro e a música também geram ótimas ideias.
Mas há um fator que é essencial: o ser humano. Para estudar o ser humano, estou constantemente nas ruas, conversando e observando as pessoas. Elas são a maior fonte de ideias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos me tornei mais paciente, menos apressado na escrita. O texto precisa de um tempo para o amadurecimento. Ademais, quanto mais leitura você tiver, melhores serão seus textos; quanto mais experiência de vida, melhores os textos; quanto mais frustrações, mais vitórias, mais relacionamentos, mais problemas e soluções, quanto mais vida, melhores serão os textos. Isso leva tempo. É um movimento de vida. Ao longo dos anos acumulei vida e me tornei um pesquisador mais sólido.
Ao me encontrar comigo, um garoto de quatorze anos que achava incrível os textos que estava escrevendo em segredo (vergonha de mostrar para qualquer pessoa), eu pediria para ver o que estava escrito naquele caderno. O garoto diria que não estava escrevendo nada e teria coragem de rasgar as folhas, ou até de queimar aquele caderno, apenas para não mostrar seus textos para si mesmo. Eu entenderia. Até hoje é difícil enxergar a si mesmo em poesias e contos. Até hoje escrever é um rasgar-se perpétuo. “Por que não escrever um romance?”, eu perguntaria em silêncio a mim mesmo, sabendo que iria aguçar uma ambição literária que geraria muitas folhas rasgadas, muitas páginas eletrônicas delatadas. No final, não diria nada a mim mesmo. Conselho? Nenhum conselho seria compreendido pelo garoto. Ao contrário, eu, adulto, pediria um conselho, já que ele, o garoto, foi meu professor e maior mestre.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não tenho a habilidade/ousadia/abertura de Borges para escrever (e até produzir ensaios) sobre livros que ainda não escrevi. Mas, desde já, digo que tenho muitos projetos. São muitos os projetos e os considero, todos, iniciados. Já fazem parte do meu movimento de vida, ainda que tenham muita relação com a morte.
Há um livro que gostaria de ler e que ainda não existe. Pior. Nunca existirá. Refiro-me ao livro definitivo, àquela obra que faça uma correspondência perfeita com a vida real. Daí a impossibilidade porque a linguagem é apenas uma tentativa de simbolizar a realidade. A linguagem inaugura a maior crise humana: o corte civilizatório. Nós (tão animais), por meio da linguagem nos refugiamos, amedrontados pela realidade, na fantasia da arte, da ciência, da religião, enfim, da cultura. A cultura: uma caverna. A cultura: esconderijo da real condição humana (condição de bicho, não de humano).
E com medo dos nossos corpos, inventamos a roupa; com medo dos inimigos, inventamos o Estado e as leis; com medo da morte, inventamos a religião; com medo da dor, inventamos a medicina e a ciência; com medo do mundo real, criamos a linguagem e sua fantasia.
Com medo da nossa condição de bicho (selvageria), inventamos para nós uma classificação diferente da dos demais bichos. E assim fantasiamos: “não somos bichos, somos humanos!”. A linguagem é mesmo mágica, curandeira, milagrosa, tecnológica.
Queria tanto ler esse livro impossível!