Alessandra Martins Parente é psicanalista, pesquisadora e autora de Sublimação e Unheimliche (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho nenhuma rotina matinal específica. Meus dias são muito diferentes uns dos outros. Há dias em que tenho que ir ao consultório cedo para atender e há dias nos quais as manhãs são um pouco livres de compromissos fixos, mas sempre há pendências e burocracias a serem resolvidas. Também tenho manhãs com meus filhos. Acordo muito cedo e é uma alegria se tenho tempo livre para me dedicar à escrita. Nem sempre acontece e nem sempre o tempo dedicado à escrita se reverte em um produto a ser publicado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto das manhãs e das noites para escrever. Durante anos, a escrita e o trabalho intelectual tiveram lugar clandestino na minha vida e aconteciam sobretudo nas madrugadas. Foi uma conquista considerá-los com direito de cidadania e dependeu de um movimento vagaroso e persistente.
Seja como for, continuo muito inconstante, mesmo depois de ter assumido uma posição mais enfática em relação ao meu trabalho intelectual. Se estou envolvida com alguma produção escrita, qualquer intervalo é hora de voltar ao texto – a escrita domina. Tenho um medo permanente de que esses momentos intensos não se repitam. E não espero que eles aconteçam naturalmente. Vou forçando a barra, sempre com a escrita na cabeça, tentando algo.
De outro lado, e pensando agora, devo confessar que também tenho um pouco de receio de que esses episódios intensos voltem e que me veja diante dessa entrega ao processo de escrita, pois, quando ele ocorre, entra-se em um outro universo e coisas também importantes da vida são esquecidas ou negligenciadas. Para quem tem filhos e outras atividades é assustador ser tão dominada mental e corporalmente.
Ainda espero, entretanto, conseguir administrar melhor essa intensidade de afetos para que a escrita seja cada vez mais regular – tenho muitas ideias e muitos projetos. Essas travas não são boas.
Mas há ainda um terceiro aspecto a ser mencionado aqui: o olhar do leitor. Ele é absolutamente central. Na minha experiência, o texto só está realmente pronto quando publicado. Isso traz coisas boas e ruins. Percebo, por um lado, que algumas coisas já comuns em meus próprios pensamentos são inteiramente novas para os outros. De outro prisma, alguns erros ou reflexões diferentes só saltam aos olhos quando você já colocou o trabalho para circular. E isso gera angústia. Se o veículo no qual o texto foi publicado tem grande alcance, fico bastante perturbada – daí que não publique tanto quanto gostaria. Sempre fico muito tomada nos primeiros dias de circulação. Imagino que pessoas que publiquem regularmente não sofram assim, mas comigo ainda acontece de modo muito forte. Daí que haja, ainda, certo recuo defensivo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever com certa regularidade, mas, como disse, a verdade é que, na minha experiência, a escrita não é nem um pouco regular. E quando ela ganha vida, não posso impedi-la. Ela se impõe. É um mundo paralelo, aquele dos pensamentos, das ideias, das concatenações de palavras e frases. Gosto muito quando acontece, mas nem sempre tenho controle do processo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita é um processo muito difícil em algumas etapas e muito prazeroso em outras. Ler, pesquisar, inventar caminhos são sempre momentos de entusiasmo. Em seguida é um processo de perda, pois essas ideias tão vivas não se mantêm. No confronto da imaginação com a preparação e a redação do texto é preciso saber sacrificar partes, renunciar, rever, abrir mão de iluminações que pareciam preciosas e, por outro lado, ter a coragem de embarcar por caminhos imprevisíveis. Algumas vezes, ideias que pareciam geniais não são tão fecundas e outras, que pareciam bobas, se mostram férteis e novas.
Talvez seja interessante ressaltar um outro aspecto: a escrita é uma atividade sobretudo corpórea – há afetos que afloram no processo, há uma exaustão do corpo pela atividade da escrita e há também uma transformação que tem efeitos muito concretos na vida – um reposicionamento que não ocorre com a simples leitura de livros e textos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Fazendo – a solução é sempre agir ao invés de pensar. No gesto concreto de escrever é que aparecem os reais problemas a serem enfrentados e saídas efetivas. Mas até que esse gesto seja possível em meio aos afazeres corriqueiros da vida ou em meio a medos mais sombrios – que já expus anteriormente –, há períodos nos quais não existe produção… E isso aflige um pouco. Sinto como se tivessem ideias penduradas pelo meu corpo todo e que elas me chamam insistentemente, pedindo a conversão em carne.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes. Sou completamente obsessiva e gosto muito das palavras – em alguns textos, chego a pensar uma a uma. Outros não acontecem assim. Simplesmente escrevo, reviso algumas vezes e publico – uma forma de me livrar da coisa. De todo modo, penso muito sobre a forma como uma questão, sem que tenha muitas certezas sobre minha posição a respeito dela.
Em alguns casos, acho que a forma se torna tão rebuscada e lapidada que o conteúdo perde sua força mais visceral, vital. Quando esses traços mais rudimentares do processo são perdidos, ou completamente escondidos, não se vê bem a força que conduziu o autor à escrita. Não gosto disso (não digo que não o faça, pois não sei avaliar os resultados de meus trabalhos). É também verdade, que, em outras vezes, fico absolutamente encantada por textos formalmente bem-acabados – e a leitura que está sendo feita influi na minha escrita do momento.
Trocando em miúdos: uma paixão por um(a) autor(a) impacta decisivamente o texto que está sendo redigido. Isso significa que quando você está lendo alguém que admira, sua produção carrega essa seiva identificatória para o coração do trabalho.
Esse aspecto – entre outros que não serei capaz de destrinchar aqui – revela que há algo completamente circunstancial em cada texto escrito. Por isso, ele tem um traço perene, que necessariamente supera o instante da escrita, mas tem essa outra faceta que o circunscreve a um gesto preciso, feito num determinado tempo da vida do autor.
Ainda sobre a revisão, queria frisar que, a certa altura, a capacidade de fazê-la também se esgota. Torna-se impossível enxergar o trabalho. Ele ganha feições tão familiares, que parece impossível recuperar a distância necessária para olhá-lo de frente e de maneira crítica. Quando isso acontece, sei que é a hora de publicar. Depois disso, volto a tomar distância e, se o releio, vejo-o com outros olhos – tem vezes em que me decepciono, outras que me alegro.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Já faço tudo no computador. Uma ideia ou outra pode ficar anotada no papel como um item a ser lembrado. Há vezes em que também apelo para notas ordenadoras. Nesses casos, trata-se de uma tentativa conceder forma a pensamentos vagos que emergiram quando eu não tinha a máquina diante de mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tenho muitas ideias. Acho que não vou dar conta de todas nesta vida. A açãoé mais problemática do que ter ideias – gosto muito dos percursos da minha imaginação e das construções possíveis para as ideias que tenho. Colocar tudo no papel é que é mais difícil.
Sou muito curiosa – esse é meu problema, inclusive. Existem pessoas com foco e rigor quase naturais. Eu me interesso por quase tudo e vou conectando as coisas mais distantes umas com as outras. E esse interesse geral me conduz às mais diversas relações com pessoas e temas – meu problema definitivamente não é com as ideias e nem preciso cultivar o hábito para me manter criativa. Quando você é curiosa (o), o hábito deve ser o de manter-se focada (o) em projetos que precisam de dedicação e tempo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Reconheço um processo evolutivo de autoria e que ainda avança. De resto, isto é, depois que a autoria foi pensada como algo que queria assumir, não vejo progresso, uma linha ascendente, mas diferentes momentos de uma vida intelectual – não gosto de alguns velhos textos pelo estilo ou conteúdo tratado, mas eles testemunham desdobramentos de meu percurso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Comecei a escrever um livro sobre a História da carne que quero terminar e preciso fazer meu livro sobre o “Moisés e o monoteísmo” de Freud. Fora esses dois projetos, mais urgentes, tenho outros infinitos que vão acontecendo paralelamente – sobre artes visuais, feminismo, clínica psicanalítica, meu trabalho no Projeto Causdequê? com adolescentes LGBTIQ+ etc.
Existem muitos livros que quero ler – não preciso falar dos que ainda não existem. Agora, queria terminar o Fausto II do Goethe, que abandonei no começo do ano passado e sigo sonhando com ele, e queria começar em breve José e seus irmãos, do Thomas Mann – estou esperando uma brecha maior nas leituras cotidianas de trabalho para reintroduzir o Faustoe começar o de Thomas Mann.