Alberto Lins Caldas é poeta, autor de A Pequena Metafísica dos Babuínos de Gibraltar.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
passei, pelo menos a partir dos 8 anos lendo todo o meu tempo e a partir dos 11 escrevendo o tempo inteiro. esse é o começo de todo escritor, de todo funcionário da escrita de todo oficio de escrever. é algo q começa na infância. no brasil esse começo, até a “crise” (se houver), é idiota, nacionalista, estatal, heterossexual, branco, crente numa religião (o q não é meu caso q a questão deus-religião nunca se impôs), gramatical, português, cria imbecil dos escribas dos senhores, externos e internos, uma máquina de reconhecimento servil e coisa de trabalhador do ano. é uma longa luta pra destruir esse conjunto nefasto q cria uma escritura falsa, um legitimo escrivão da língua-estado-mercado do senhor: todo escritor é um servo. sabendo disso, pensar numa “rotina matinal” ou uma “rotina diária” para um escritor apenas confirma seus gestos de carlitos e sua função escrevente duma trama estatal mercantil de criação, manutenção, reprodução daquilo q é chamado brasil, língua portuguesa, literatura brasileira, pequenas maquinas coloniais (o brasil inda não existe, sendo apenas uma fantasmagoria dos capitais mercantis, industriários e latifundiários: não há “povo brasileiro” porq jamais essa massa distinta e impotente pra se criar fez alguma coisa pra se tornar um povo e um cidadão).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
“trabalhar melhor” e “ritual de preparação para a escrita” põem a escrita como uma “coisa do patrão”, ou “escrita ordem”, do “ritmo do trabalho” e do “corpo dominado”, do “corpo fascista”, q tanto se dominou q agora se tornou um sargento, sacerdote, servo dum trabalho q não sabe sua função e poder – a escrita é uma arma da guerrilha contra o estado, deus, a família, a língua, o capital, o horror, o real, o natural, o trabalho – algo q cria seu tempo, suas maquinas de destruição, sua atividade contra o q imobiliza a vida, o q torna nazista o existir e entorpece saber precisamente disso: todo escritor crê piamente na natureza, na história, no corpo, nas raças, nos sexos, nas fadinhas em papai noel, em toda fixidez q esconda a multiplicidade, nossa criação do existente, a grande positividade contra as negatividades travestidas de positividade.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
“o funcionário do mês”, “o trabalhador do ano”: Só há uma escrita q não seja a escritura de um escrivão quando se sai da fábrica do senhor, da gramática do senhor, do tempo do senhor, do corpo-olhos-sexo-língua-pés do senhor: longe e contra essa armadilha a escrita começa a se tornar sua grande possibilidade desmobilizadora e criadora de possibilidades políticas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
a pergunta se refere a uma escrita acadêmica (pesquisa) para fazer uma monografia, dissertação, tese ou artigo (deformações do escrever, sempre inserido em instituições e tendo sua meta dirigida não por ela). uma escrita guerrilheira não faz notas (isso apenas cria realismos onde palavras se tornam espelhos do real, numa versão bíblica entre autor-realidade, onde a palavra diz a coisa), não escreve para ser medido e avaliado nem ganhar pontos nem dinheiro (quem vive da escrita é apenas um tolo enganado, mesmo os “melhores escritores”: sintoma dum mundo dissolvido e q não consegue mais enfrentar seus torpores, medos, ignorâncias fascistas). seu caminho não é metodológico, mas “filosófico”, livre e contra, expondo as “figuras do horror”.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
não se escreve para um leitor. o leitor é uma criação ridícula do mercado de livros e da leitura de livros religiosos. o leitor, e antes dele o mercado de livros-educação-religião, tornam o livro uma inutilidade, um objeto masturbatório e q faz o tempo passar ou q ensina alguma coisa. um objeto pequeno-burguês, domado, entorpecido. uma escrita não parte de um projeto nem envolve sentimentos de professor ou padre: é uma arma de guerrilha q é exigida conforme a luta, montada segundo as periculosidades envolvidas. “madame bovary” não é um livro realista sobre um momento da “realidade francesa”, mas um brutal enfrentamento de uma classe ridícula, vazia, ociosa e inútil. nele não há um momento de seriedade, mas de riso pelo ridículo criado. não um espelho ou uma fotografia, o q seria cair na classe q ele cria exagerando, tornando minúsculo, deformado, expondo suas perversidades e falsidades: flaubert cria o horror vindo do horror. torna tudo muito mais perverso do q o viver. quem faz guerrilha com a escrita inventa o mundo, não conta uma história. daí porq a morte de emma é uma patetice enquanto o crente tolstói faz sua anna morrer como numa notícia de jornal.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
ele precisa atirar ou cortar ou explodir corretamente, profunda e geometricamente. não é para o mercado (o mercado é usado como lugar do guerrilheiro, do libertino; do poemata – encontrar suas armas, seus instrumentos), mas contra o horror. se em três vezes está construído, basta, mas se antes de trinta vezes não está q se continue até o fio ser absoluto. uma escrita-arma é uma síntese entre política-ética-filosofia – isso é literatura, uma luta, jamais a isca contar-história nem a história.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
tanto faz. às vezes começa num caderno e vão para o computador ou é escrito diretamente no computador, e voltados às primeiras respostas desse questionário. literatura não é um oficio, não é feita com horários e instrumentos, mas uma perspectiva, um jeito de dizer e olhar, de não aceitar, de construir uma arma, como rizoma, como quem sonha nesse sonho dissolve o monstro, ilumina o horror.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
a literatura q não seja “contar uma história” não nasce de “ideias”, da consciência/inconsciência, mas de fluxos de linguagem, de nódulos em luta. não há autor. apenas uma pessoa q dá polimento a um desses nódulos q conseguiu se plasmar com mais violência e periculosidade. o autor é uma lenta criação da polícia, do mercado quando começa a separação com as musas, da inspiração, sendo um bode expiatório, o culpado pelo texto. sem isso a quem prender, louvar, transformar em elemento moral, religioso do texto (deus escreveu o texto sagrado e ele é a verdade: é criado ao mesmo tempo a relação entre as palavras e as coisas, como se as palavras dissessem as coisas. as diversas intensidades e fluxos de linguagem, q são resultantes dos viveres, é q se tornam patentes, visíveis: saindo da moral, da religião, da polícia, da lei, da ordem, para uma luta livre contra o horror nazista da nossa tribo).
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
na “literatura” mudou de repente, ser brasileiro, respeitar uma escritura falsa, contar historias, ser um escritor, um autor, um responsável jurídico por uma escrita, respeitar uma língua e achar q escrevia em português e não numa língua necessariamente pessoal, singular, com seu peso especifico dado não por mim, mas pelas potências dos fluxos de linguagem: não há literatura q não tenha essa dimensão esquerda, enviesada, impessoal: o resto é passatempo.
quanto à minha monografia, à dissertação e à tese não mudaria nada. são escritas do estado, da ciência, da normose e nada terá a dizer “se voltasse no tempo”: como escrever cada uma delas já faz parte do que está nos livros “como escrever um trabalho acadêmico”, q tem horror à criação radical, ao novo, exigindo a imbecilidade esperada. eu diria q não aceite esse limite vergonhoso e crie com o desejo, o corpo, o sonho, o mais perfeito possível, mas com a devida liberdade – porq se escreve numa e para uma instituição e a liberdade não pode ser absoluta (logo, não é liberdade), como é na literatura q além de ser absoluta é contra si mesma e o mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
nenhum projeto. como estou aposentado, projeto apenas na universidade; na literatura essa pergunta teria q ser feita aos nódulos e fluxos de linguagem, o q eles gostariam ainda de fazer comigo. o resto da pergunta se responde pelas respostas acima.