Alaor Leite é doutorando em direito sob orientação do professor Claus Roxin na Ludwig-Maximilians Universität, Alemanha.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em geral, reservo as manhãs para ler e para escrever. Naturalmente, tudo depende dos compromissos e dos prazos agendados. A rotina é muito simples: Dirijo-me ao meu escritório em casa ou à universidade e organizo o dia. A biblioteca, hoje mais do que nunca, tornou-se um refúgio antitecnologia. Lá, não há interrupções e distrações e tudo conspira em favor do estudo. As prateleiras estão a nos vigiar, como quem nos recordasse ser a ciência um empreendimento maior do que o trabalho individual do cientista de hoje. A biblioteca resguarda o cientista.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo preferencialmente pela manhã. Preferencialmente, pois a quem vive da escrita não costuma ser concedido esse tipo de regalia: escreve-se quando se tem que escrever. Não revisto o ato de escrita de nenhuma liturgia eclesiástica. Escrevo no trem, no avião, na sala, na cozinha. Prefiro encarar esse processo de escrita de forma menos sacralizada, mais mundana. Afinal, escrevo literatura jurídica, cujo conteúdo é essencialmente técnico, e não prosa romanesca, de modo que dispenso todos os ademanes e excentricidades que só aos verdadeiros literatos são permitidos. Naturalizar o processo de escrita desincumbe o escritor do peso de ser sempre “genial”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando há encomenda – por exemplo, quando escrevo um parecer ou um capítulo para livros coletivos –, o ritmo é mais intenso, pois o prazo determina o método. Meu professor, Claus Roxin, ensinou-me que um cientista de verdade deve escrever sobre o mesmo tema em duas, vinte ou duzentas páginas, a depender da encomenda. Nas raras ocasiões em que escrevo livremente, por simples interesse ou gosto pelo tema, costumo concentrar o processo de escrita, como dito, pela manhã. As tardes e eventualmente as noites ficam para a leitura do material amealhado e para burilar o que fora gestado pela manhã. Burilar, no geral, equivale a cortar, a reduzir os excessos matinais – atividade em que nem sempre sou bem sucedido. O distanciamento do texto costuma revelar que uma construção mais direta era possível. Prolixo, pro lixo – como dizia o poeta José Paulo Paes.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não há como separar pesquisa e escrita. O texto começa a ganhar forma na cabeça a partir das leituras, de modo que esses dois processos acabam por se confundir. É sempre complicado começar um texto, mas como as primeiras frases raramente permanecem em seu estado original, não hesito em, desde logo, escrevê-las.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Uma boa e resoluta resposta seria: não tenho travas, não procrastino e não levo as expectativas em consideração. Seria uma retumbante mentira em dose tripla, que confortaria apenas o ego de seu rarefeito emissor. Os “nós” ao longo da escrita são recorrentes e, a rigor, necessários. Apenas quem não possui autocrítica acredita ser possível desenvolver um raciocínio refinado e correto do começo ao fim, sem percalços. Esses “nós” são, para mim, sinais positivos que indicam ser o problema mais complexo do que a minha vã ingenuidade imaginava. Assim, o “nó” é incorporado ao processo de escrita e a sua eclosão não é motivo para procrastinar, mas, ao revés, estímulo para desatá-lo. Quanto à ansiedade, creio que ela não atrapalha a escrita. Costumo ficar mais ansioso no torturante período que separa a entrega do trabalho da sua recepção pelo público ou, em caso de teses acadêmicas, de sua avaliação.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso o trabalho muitas vezes, como deve ser. Ainda assim, não consegui até hoje produzir um trabalho livre de defeitos e já desisti de um dia produzir algo perfeito. De todo modo, é preciso buscar a perfeição, doutra forma recai-se no desleixo – uma praga contemporânea causada pelo imediatismo. Costumo mostrar o trabalho para algumas pessoas, cuja escolha depende da pertinência temática. Há também os permanentes companheiros de jornada, que sempre estão dispostos a ajudar. No meu caso, sobretudo o Luís Greco, a Heloísa Estellita, o Adriano Teixeira, o Augusto Assis, o Gustavo Quandt e o Frederico Horta. Essa troca de ideias que antecede a publicação possui uma simbologia importante, a saber: a de que a atividade científica é um empreendimento coletivo. Há muitos autores em busca de uma originalidade a todo custo, de algo que os distinga da turba. Em muitas vezes, buscam só a frase de efeito, o mantra, o neologismo de impacto. Esses textos estão condenados ao destino que, no passado, se lhe reservava aos jornais velhos, que enrolavam peixe na feira.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Penso e rabisco à mão. Após, parto para o computador. O papel garante a autoria das ideias. Sempre que escrevo pela primeira vez ao computador tenho a impressão de que as ideias não são minhas, ou que já as tinha escrito em algum outro arquivo perdido em uma pasta remota.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Aqui, a resposta é simples: ler muito, sobre tudo. Em geral as respostas às perguntas jurídicas mais complicadas não estão na literatura específica sobre o tema e exigem uma perspectiva mais geral. Essa perspectiva mais geral e ampla decorre da formação permanente do cientista. É triste observar que há sedizentes cientistas que são um “samba de uma nota só”: não importa o tema a que se dediquem, as referências e conclusões são sempre as mesmas, decorrentes de uma enfadonha dedução preguiçosa da ideia de alguma autoridade. Se a autoridade for filósofa e falar alemão, melhor. Assim, produzimos cientistas que estão preparados para a escrever, amanhã, trabalhos sobre Hegel ou sobre compliance – afinal, tanto faz: “quem lê tanta revista?”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar aos seus primeiros escritos?
Quando se chega ao final de uma tese sempre há a sensação de que tudo poderia ser diferente. De todo modo, acredito que o sujeito não prepara uma tese: ele se prepara para escrever uma tese. Assim, não há motivos para arrependimento. O resultado da tese se confunde com o crescimento do cientista e o prepara para o seu melhor trabalho, que deve ser sempre o próximo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um Curso de Direito Penal. Contudo, não me julgo ainda preparado. Queria ter o desprendimento de alguns, mas creio que preciso enfrentar monograficamente alguns temas e amadurecer como cientista antes de partir para essa aventura.
Queria ler um livro do meu pai, que foi magistrado e me ensinou muito em nossas conversas, sobretudo a respeito de temas processuais. Ele, porém, nunca colocou em páginas as suas reflexões. Esse livro, hoje, é um registro borrado em minha memória, sem o português cortante e preciso de meu saudoso pai.