Agostinho Torres é escritor e historiador.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o meu dia tentando anotar o sonho ou a sequência de sonhos – se eu tiver sorte de lembrar – mais marcante da noite anterior. Não precisa ser anotar literalmente, com papel e caneta, às vezes eu só acordo e mando uma mensagem de voz pra alguém em algum aplicativo de comunicação, pra infelicidade dos meus amigos que nunca entendem nada. É uma maneira que desenvolvi pra sempre ter algum material bruto guardado, que posso revisitar depois e transformar em algum conceito de personagem ou história. A maior parte dos meus contos de literatura fantástica ou de literatura de paranoia surgem assim.
No entanto, eu sou um sujeito irregular, dependendo do que estou considerando como a minha prioridade atual posso acordar desde sete da manhã até duas da tarde. Há coisas que faço melhor pela manhã, outras que faço melhor pela tarde e há ainda outras em que o meu desempenho é melhor de madrugada, então a minha rotina depende do meu foco atual.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que a manhã é o melhor horário para escrever ficção e a tarde é o melhor horário para se dedicar a atividades científico-acadêmicas.
Entre 8h e 10h da manhã eu ainda estou bastante letárgico. Nesse período específico do dia meu cérebro ainda não está funcionando dentro dos eixos ‘corretos’, então minha mente está mais propensa a ideias abstratas e conceitos que eu posso usar em alguma obra literária. Talvez seja algo que faz mais sentido quando você escreve ficções que envolvem questionamentos sobre o tecido da realidade como eu. Algo que tem mais essa conexão com o subconsciente e com as forças psíquicas que se rebelam contra o princípio de realidade (o Thanatos das pulsações freudianas).
Já como historiador e pesquisador eu prefiro escrever no período da tarde. Sinto que esse é o momento em que tenho mais certeza de quem eu sou e como o mundo é. Digamos que é o período em que o princípio de realidade se torna quase inquestionável para mim e a racionalidade tradicional toma conta dos meus processos intelectuais. É um período que pra mim é solar, ou seja, organizado, a antítese da noite, em que estou cansado, difuso, vagante.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como dito anteriormente sou um sujeito irregular, e tudo depende do meu objetivo no momento. Se eu quero um romance escrito em doze meses crio metas mensais e organizo minha rotina ao redor disso. Se se trata de escrever contos ou trabalhos orgânicos, sem nenhum impulso de controle/prazo, aí escrevo em períodos concentrados.
Às vezes passo meses estudando um tema e suas especificidades para ter uma boa base de experiência para escrever um conto/novela e num período curto de uma semana escrevo entre trinta e cento e vinte páginas.
É algo que não funciona com um romance, por exemplo, em que a trama precisa de continuidade e coesão maior. Mesmo que você escolha uma rota fragmentária os personagens precisam seguir certo delineamento e lógicas internas. Por isso quando tenho em mente um romance trabalho num ambiente mais controlado, mas esse também é um dos motivos pelos quais atualmente tenho pouco interesse em histórias longas: para escrevê-las preciso domar alguns dos meus instintos fundamentais e não gosto muito disso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Certa vez li William S. Burroughs dizer que só devemos escrever sobre aquilo em que temos alguma experiência. Achei isso curioso já que os livros escritos por ele falam em geral sobre entidades cósmicas, deuses, drogas e vírus que controlam a mente humana. Com o tempo eu fui entendendo que o que ele queria dizer de fato é que os detalhes são o que tornam uma boa história agradável de ler. A maneira como ele falava de suas trips, de seus deuses e de espiões cósmicos tem muito a ver com os anos em que ele morou em terras estrangeiras e foi viciado em heroína.
Em geral os meus contos são sonhos meus ou de amigos que passam por um processo no qual se transformam em mitos simplificados. Nesse processo eles se desprendem da psique individual e viram uma trama universal e inteligível, porém os detalhes do universo em que eles se passam acabam exigindo que eu estude exaustivamente alguns temas e discussões. A melhor exemplificação desse meu método de trabalho é o meu futuro romance. Como o enredo se passa num futuro não tão distante, com o surgimento de inteligências artificiais autônomas, eu comecei a estudar programação e eletrônica para entender como funcionava a programação de uma máquina básica e ter uma real dimensão da complexidade das partes eletrônicas que comporiam um suposto robô inteligente. Não acho que isso é necessário para escrever histórias em que robôs inteligentes existam, mas com toda certeza eu aprender mais sobre transistores, placas embarcadas, circuitos e correntes elétricas me deram um background para descrever com mais detalhes certas cenas. Tirando o fato óbvio de que essas leituras (e prática também, pois criei alguns dispositivos) me fizeram explorar com mais profundidade as contradições daquele universo em que eu estava trabalhando.
A trama principal do romance nasceu de um sonho; já a ambientação e discussões secundárias vieram dos meus estudos e práticas para contextualização da obra. Então eu diria que meu método de trabalho é essa conexão do onírico com o verossímil, que vai resultar em personagens paranoicos com a realidade que habitam.
Quanto a começar a escrever, essa é sempre a parte mais difícil de qualquer obra. Ao menos pra mim, que só começo quando sei o ponto em que vou parar. Não é algo bem planejado e organizadinho, mas se eu sentar pra escrever algo quero parar apenas quando atingir um ponto específico que surgiu em minha mente. Quando me sinto travado, sem ideia de como começar, abro algum livro do Philip K. Dick ou Edgar Allan Poe e reescrevo o seu parágrafo inicial de uma maneira diferente. Acho que aprendi isso ouvindo alguma entrevista do Bukowski, não tenho certeza. O que importa é que funciona, com a primeira linha escrita o resto se desenrola sozinho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Hoje em dia eu não tenho mais muito interesse em romances, nem como leitor e nem como escritor, porque eles exigem um comprometimento que é maior do que estou disposto a fazer. Sempre me interessei mais por histórias que começam do nada e terminam do nada, onde o recorte já é diretamente o que interessa pro enredo chegar ao seu fim. Por isso atualmente me assumo primordialmente como um contista, gosto de trabalhar com recortes definidos na vida de personagens e com uma temática norteadora, não com um quadro inteiro de personagens com várias subtramas e temporalidades.
No passado saí um pouco do conto e passei a tentar fazer romances mais por uma questão de mercado. O leitor e o mercado editorial brasileiro preferem romances a contos, porque supostamente no romance se cria uma conexão emocional maior entre quem lê e os personagens. O que na prática significa explorar continuações, filmes e merchandising de algo que por acaso caia na graça das pessoas. O conto costuma ser um gênero muito direto ao ponto, em que você não sabe de tudo da vida do personagem, sabe apenas da situação em que ele se encontra no momento e vê como ele lida com aquilo. Do nada tudo acaba e você vai para o próximo. É perfeito.
Eu enfrento a procrastinação tentando escrever e falhando miseravelmente como todo mundo. Não adianta, não existe fórmula mágica, escrever é trabalhar e trabalhar é sempre desconfortável e ruim. Se você ganha dinheiro com aquilo, mesmo sendo sofrimento você provavelmente vai ter um melhor desempenho e rotina. Se você não ganha nada, se você só quer contar uma boa história, sua psique vai criar mil e uma artimanhas para te manter longe desse trabalho chato e cansativo. Não existe glamour em escrever, é só mais um trabalho.
É legal criar conceitos de histórias em sua cabeça, mas executar isso, preenchendo pedacinho por pedacinho de uma folha em branco, é um inferno.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Acho que o exemplo atual, já comentado anteriormente, responde bem a essa pergunta: faz três anos que reescrevo um mesmo romance. No fim parece que mudei tanto ele que acabei retornando à escrita original, então foi tudo apenas uma grande perda de tempo.
Hoje tenho consciência de que nenhum texto vai ser publicado perfeito, você só precisa estar atento para o momento em que as somas das partes boas superam a soma das partes ruins. Uma boa obra é isso, até os grandes escritores estão cheios de defeitos que perdoamos porque o que eles trazem de bom compensa a falta de coesão, de continuidade lógica ou de alguns trechos fracos de suas obras.
É óbvio que você deve tentar aparar erros graves, pagar uma boa revisão, pedir para leitores betas (profissionais ou amigos, dependendo da sua condição financeira) avaliarem a obra e ficar atento para obter uma boa editoração final por parte da editora. O que quero ressaltar é apenas que tem uma hora em que você tem que largar o osso e deixar o seu filho literário crescer e ganhar o mundo sozinho, mesmo que ele não seja perfeito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não escrevo nada a mão. Excetuando-se características psicológicas particulares, poucos escritores tirariam algum proveito objetivo de anotações manuais, para a maioria seria apenas uma grande perda de tempo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que nas respostas anteriores isso já foi bem respondido.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Se eu pudesse encontrar o Agostinho de 2009 discutiria com ele os seguintes tópicos:
- Ignora tudo ao redor e só escreve.
- Ser bem-sucedido é concluir o projeto e nada mais.
- Não existe obra perfeita e não é a perfeição que as pessoas buscam na literatura.
- Falhar é parte do processo, não tente apressar as coisas.
- Cuidado as editoras, só tem macaco velho nessas árvores.
Mas sendo bem sincero, tirando a parte dos pilantras das editoras, de alguma maneira insana o Agostinho de 2009 tinha mais consciência dessas dicas do que os Agostinhos dos anos seguintes. Acho que começar a publicar livros por editoras foi poluindo minha mente e só hoje novamente vejo com clareza o que me fez começar a escrever.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O tema central das minhas obras é que a realidade não é o que os nossos sentidos alcançam. Essa coisa que temos como algo inquestionável e irrevogável é algo muito mais bizarro e complexo. Por isso entro com tudo em discussões da física contemporânea, do ocultismo e da tecnologia.
É como se de uma maneira mística e insana a minha literatura aos poucos estivesse criando um universo com uma mitologia própria. Nessa mitologia existem cidades-vivas que se comunicam com pessoas; entidades de outras dimensões que se transformam em roupas; pichações com encantamentos mágicos; planetas a milhões de anos-luz de distância que de alguma maneira têm o seu destino conectado ao nosso.
Por isso digo com orgulho que os meus livros já são o que eu gostaria de ler e se não fosse por mim ninguém jamais os escreveria.