Agnaldo de Assis Nascimento é escritor e vocalista da banda Versus Mare.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começa aos trancos, porque sair da cama é um puta incômodo pra alguns seres regidos por signos de terra. Mesmo assim, eu boto os pés no chão e tento entender como é que se começa o dia. Aí eu dou uma volta pelo bairro com meu cachorro, chamado Dionísio. Ele vai meio que abrindo os caminhos da manhã com suas quatro patas curiosas. Cheira os postes e as encruzilhadas. Moro num reduto de muita vida noturna e isso transparece para o bem e para o mal, nas calçadas cheias de despojos da noite. Geralmente tenho que desviar as rotas do Dionísio por causa de cacos de garrafas, pinos de cocaína & outras oferendas da noite. Sempre voltamos um pouco intactos. Ele com a bexiga esvaziada, eu com o cérebro cheio de manifestações que podem ou não ganhar vida em textos literários.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Desde que vim morar no Centro de São Paulo, e isso tem uns 6 anos, passei a sofrer um pouco com meus horários. Sempre funcionei melhor de madrugada, mas as obrigações de acordar cedo me privaram dessa zona avermelhada em que eu me sentia tão bem. Quando não tenho que assistir aulas do curso de Letras, eu aproveito brechas de horário noturno para escrever. Quanto a ter um ritual: sempre com música, porque crio ambientações em meus livros e a música é o alicerce.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Atualmente como exercício me meti a escrever todos os dias alguma coisa, menos para “forçar” a escrita, e mais para entender alguns mecanismos do meu texto. Falando assim, parece coisa de literato, mas é bem mais simples e orgânico. De início eu ia guardar esses escritos diários só pra mim, mas daí pensei, porque não compartilhar? Não perco nada com isso. Está tudo lá no meu blog “carneorquestra”. Pretendo fazer esse exercício durante um ano (comecei em junho). Depois, se eu não estiver botando sangue pelo nariz ou coisa parecida, talvez eu continue. Parece que o Artaud condenava isso de se colocar as necessidades da vida na frente da criação e lamentava que grandes artistas tivessem tão poucas obras em comparação ao tempo de vida que tiveram pra criar. No meu caso, esse exercício de criar todos os dias me bota numa frequência de atenção e concentração contínua frente à criação. Pode chamar de transe, misticismo ou o que quiser. Eu chamo dor de cabeça mesmo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Leio, assimilo, copio (quem não?), depois reformulo, depois desconstruo, depois reviso (não necessariamente nessa ordem). Anoto ideias para personagens, caracterizações como vícios de linguagem, entonações ou gírias, mentalizo lugares, cenas, músicas, tudo que puder ajudar de base pro relato. Sou incapaz de medir a dificuldade de um começo. Parece que tudo depende de uma frase luminosa que puxa as outras e, quando vejo, tenho um parágrafo e esse parágrafo está arfando por continuação. Não me movo da pesquisa para a escrita, talvez na pesquisa eu já esteja escrevendo, embora a folha permaneça em branco. Escrever não é só encher o papel, começa quando a cidade se move na janela do ônibus, quando o café chega no balcão do bar, quando você tem que desviar da pessoa que tá dormindo na calçada, quando você manda mensagens pros seus amigos perguntando se eles chegaram bem em casa, essas coisas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu evito criar monstros como “travas de escrita” ou “procrastinação”, sofro de ansiedade, e criar mais mitologia que os gregos pode me levar pro hospital. Por isso, vou fazer outras coisas quando não consigo escrever. Esse negócio de ficar na frente da folha em branco esperando sabe-se lá o quê é meio angustiante. Eu evito. Vou cuidar dos meus freelas sempre atrasados, vou ler um livro, vou lavar louça, invento faxinas, essas coisas. Meu livro “Horses” foi um projeto longo (mais de 400 páginas), exigiu muito, só que um capítulo puxou o outro, então não tive tantas travas ao longo do processo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tem hora que é preciso parar de lamber a cria, mas sim, sou obsessivo até certo ponto. Mostro tudo pro meu amigo Marco Gomes. Em “Horses” tivemos dois encontros de cerca de duas horas em que ficamos discutindo o livro. Foi bem ao estilo mesa de bar (inclusive lembro de caipirinhas em algum momento da conversa). Gravei isso, talvez um dia eu transcreva esse relato que me foi muito útil, pois eu tinha acabado de parir o livro e não conseguia enxergá-lo como um todo. Conversar com o Marco ajudou. Ainda havia muita poeira nos olhos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As ideias eu anoto em cadernos. O texto, só no computador. Penso em tentar voltar a escrever à mão, porque a gente pensa diferente quando escreve à mão.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Música e literatura são as fontes primordiais. As experiências de vida só se transformam em arte quando sofrem algum tipo de reformulação. Uso essas duas formas de arte para dar estofo a essa transformação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Nos meus textos antigos havia menos isso que chamam de “voz própria”, e mais reflexos dos autores que eu lia. O exercício constante da escrita ajudou a encontrar a voz. Eu não diria nada ao eu do passado. Ele já tinha problemas demais e pouca maturidade pra conselhos de gente que passou dos trinta.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Isso eu só vou descobrir quando: abrir as janelas ao amanhecer ou quebrar um copo não for simplesmente abrir janelas ou quebrar copos. Existe um momento em que a rotina ganha tons, movimento e aura, algo que precisa ser filtrado de alguma forma. É assim que se inicia, no meu caso, o momento de escrever. Provavelmente eu vou abrir pastas e ver até onde cheguei com meus últimos textos. Sempre quero fazer algo diferente do que já criei. Quanto ao livro que não existe. Ele nunca vai existir, é a teimosia em tentar torna-lo real que vai mover o ato de criar.