Adriano Scandolara é pesquisador, poeta e tradutor, autor de Lira de Lixo e PARSONA.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Depende, minha rotina muda muito a cada ano. Nos últimos tempos tenho acordado umas 9h. Aí olho a internet, vejo se o mundo não acabou ainda, ouço música, respondo e-mails, dou uma arrumada no que tiver que arrumar da casa, vou me aquecendo mentalmente, almoço cedo, lá pelas 11h, e só então começo os trabalhos de verdade. Tinha uma época em que eu trabalhava mais pela manhã, e outras, de madrugada, acordando meio dia. Sinto que o esquema atual tem sido bom, porque tenho uma tendência maior a procrastinar de manhã cedo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Varia de acordo com o trabalho. Para tradução, por exemplo, acho que eu trabalho melhor de noite, depois que todos os afazeres do dia foram terminados, já jantei, não tem mais nada para atrapalhar, e aí dá para trabalhar de forma mais ininterrupta. Mas faz uns meses que não posso mais ficar trabalhando até de madrugada. Para a tese eu prefiro trabalhar de dia, e com poemas qualquer hora é válida, contanto que eu tenha algum tempo livre sem maiores perturbações. De ritual, só o banimento menor do pentagrama.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Poemas são em períodos concentrados, na época que eu era mais produtivo podia acontecer coisa de quatro poemas numa semana, por exemplo, e depois nada por um tempo. Eu também tentava manter alguma assiduidade em minhas postagens no escamandro, mas fiquei relapso e faz um tempo que estou ensaiando um retorno. Ultimamente, por conta da tese, creio, e uma crise criativa pessoal que acompanhou o processo (não referente a um bloqueio ou coisa do tipo, mas a um questionamento do porquê de se fazer poesia), eu fiquei um longo período sem escrever mais nenhum verso, mas acho que estou começando a superar. A escrita acadêmica e a tradução são mais regradas (com a tese eu visava pelo menos umas 2, 3 páginas por dia para manter o ritmo), porque tem o elemento do prazo que ajuda muito a “se inspirar”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando compilo as notas que é quando a coisa começa a andar. Faz um tempo que os meus poemas pararam de ser um processo de inspiração (nunca escrevi um poema que me agradasse no estilo “veio pronto e só precisei anotar”) e passaram a ser mais um processo de edição: sentar na frente do computador, ver o que vai entrar, como fica a estrutura geral, onde quebro um verso, que palavras que eu mudo, etc. Antigamente (bons tempos), como o Guilherme Gontijo Flores comentou na entrevista dele, nós do escamandro tínhamos o hábito de nos reunirmos num bar ou café para lermos nossos poemas e nos criticarmos até cortarmos tudo que não prestasse (teve encontros no começo em que nenhum poema se salvava, foi muito libertador). Isso ajudou a gente a meio que encontrar uma voz própria, cortando o que era supérfluo, imitação vagabunda, etc. Esses encontros já não são mais possíveis, mas eu acabei, em algum grau, internalizando o tipo de comentários que fazíamos – “a sonoridade deste verso está horrível”, “isso aqui está brega”, por aí. Assim já tenho uma ideia de como lidar com os versos que eu produzo num primeiro esboço, como transformar essa matéria mais bruta num poema razoável.
No mais, tenho trabalhado muito com uma coisa mais apropriativa, citação, comentário e tal, e para isso às vezes as notas em si já são quase o poema todo. Tem um poema, por exemplo, da série “poemas enciclopédicos”, que começou quando eu li um trecho em Heródoto sobre os enterros dos persas (um assunto, diz ele, “secreto e contado de forma obscura”) e fiquei pensando nessa questão de choque cultural. O morto ser devorado por animais era o pior destino para um grego, afinal, mas era o costume do zoroastrismo, pelo menos como relatado… e isso me lembrou também da prática dos enterros celestiais do Tibete e o problema, bem mais prosaico, de que os abutres, que comem a carne dos mortos, estavam sendo dizimados pelo uso de diclofenaco potássico (que é usado como anti-inflamatório, mas é tóxico para eles). O ato de juntar essas notas já rendeu o poema.
Para a escrita acadêmica também acho que a parte de compilar as notas é a mais interessante, reunir as citações, montar a estrutura do texto. O resto é só preencher, e é nisso que mora o tédio. Acho que a graça toda está nisso de encontrar as relações entre as coisas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é um problema para a escrita acadêmica, porque, na hora que você abre o arquivo, de repente o tuíter se torna muitíssimo atrativo, bem como a louça suja na pia, etc. Se eu tenho mais tempo, decido que vou procrastinar até enjoar, e aí o trabalho começa a parecer interessante (eu respondi este questionário procrastinando para entregar a tese, inclusive).
Mesmo no caso da tese (que já chegou às suas 500 páginas), a ansiedade de projetos longos nunca me afetou muito, exceto pelo vago receio de morrer antes de concluir o trabalho, mas não tem muito o que se fazer quanto a isso. Não, minto. Quando traduzi o Prometeu Desacorrentado, veio uma ansiedade sim, porque quando a água bateu na bunda eu percebi que precisaria dar conta de pelo menos 30 versos diários, metrificados e rimados, se quisesse terminar a tradução em tempo, e isso foi um pouco desesperador (o poema tem 2.500 versos, e o mestrado só 2 anos, é uma péssima ideia). Mas não tinha muito o que fazer quanto a isso, de fato. Só sentar e trabalhar. Na poesia, estou tocando um poema longo (em 11 ou 12 “cantos”, dos quais fiz uns 4 até agora) desde 2015, mas num ritmo tranquilo, com uma pausa nos últimos 2 anos, e há pouco tempo tive de repente a ideia de como organizar a estrutura da segunda parte. Não sinto que preciso me cobrar nesse caso.
Quanto ao medo de não corresponder, se for se orientar por isso a gente acaba nunca mais fazendo nada na vida. Você faz o melhor que consegue, e as pessoas julgam a partir daí. Expectativa é uma coisa doida. Sempre me causa surpresa ver como um ou outro poema que me parece mais singelo ser um que as pessoas gostam mais. Não dá para prever.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Para os textos acadêmicos e traduções eu reviso tanto quanto a paciência e o prazo permitem. Meu padrão costuma ser produzir uma primeira versão muito suja no bloco de notas do windows (sim, bloco de notas). Depois eu dou uma primeira revisada ao formatar e mais uma relida parcial toda vez que for abrir o arquivo para continuar, o que já arruma algumas coisas e serve para refrescar a memória. Uma vez eliminados todos os pontos problemáticos (eu deixo muita referência para colocar depois, por exemplo), dou uma lida geral. A relação é mais prazerosa no caso dos poemas, que eu gosto de reler para ver se ainda passam no meu crivo, mas acaba que, quando tem algo para arrumar, nunca é só uma revisão… quando você começa a alterar uma coisa, você se sente tentado a mexer no poema inteiro. Textos acadêmicos eu mostro para o orientador, e bizarramente volta e meia aparece alguém que diz que quer ler minha tese, por diversão (tem todo tipo de tara nesse mundo, não julgo). Os poemas e traduções poéticas eu costumava mostrar para o pessoal do escamandro e mais uma meia dúzia de amigos, mas, como disse, tenho produzido quase nada. É muito importante ter amigos que são bons leitores e que confiem que podem dar opinião sem arriscar a amizade. Ego de poeta é uma coisa infame, às vezes a pessoa diz que quer opinião, mas só quer ser elogiado e se ofende se você aponta qualquer coisa. O ideal para mim era voltarmos com as reuniões do escamandro, porque tinha esse retorno ao vivo, aquela reação imediata que não é o “beleza, vou ler depois”, mas ninguém mais tem tempo livre, e eu agora moro em outra cidade também.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Contraditória. Fui fascinado por computadores quando criança, mas, adulto, peguei raiva, sou sempre um late adopter de tudo (fui ter um smartphone só no ano passado, e ainda uso um nokia antigo para ouvir música), e fico enojado com o ritmo aceleracionista da tecnologia e sua obsolescência programada. Ironicamente, escrevo tudo no computador. É, eu sei, mas editores de texto são tudo menos tecnologia de ponta. Ao mesmo tempo fico um pouco frustrado também, porque gostaria de aprender a editar vídeo para usar em performance ao vivo (admiro muito o pessoal que trabalha com isso). Mas enfim. Os primeiros rascunhos às vezes são coisa de meia dúzia de versos que eu consigo decorar até sentar e ver como vou organizar o poema. Se eu ficar com muito medo de esquecer, como quando a ideia vem antes de dormir ou no meio de qualquer coisa (uma aula, em viagem, etc.), anoto em papel.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As boas vêm dos deuses, quando eles estão de bom humor. As ruins também, quando querem rir um pouco da minha cara. Eu funciono muito pelo ímpeto do “quero fazer algo assim também”. Vejo um poema que eu gosto, quero escrever poemas, leio um romance, fico com vontade de escrever um romance. Meu segundo livro, o PARSONA, eu escrevi depois de traduzir O Gênio Não Original, da Perloff, por exemplo. Se eu sinto que às vezes me vem uma ideia para um poema que ainda não se traduziu em versos de fato, há uma percepção muito clara de que eu preciso alimentar a maquininha com outros poemas, ler outros autores, etc. Isso não quer dizer que eu queira imitá-los, que eu acorde e pense algo como “hoje vou fazer um poema à moda do Ashbery”, mas para mim é isso que faz o mecanismo girar. Acho que o importante é manter o contato com a poesia por prazer, o que a gente acaba perdendo às vezes no meio acadêmico.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Na poesia mudou tudo. No começo eu era um baudelairiano chato. Hoje continuo chato, mas menos baudelairiano. Eu novinho ainda era muito apegado a uma estética do século XIX, e o escamandro me ajudou muito a abandonar isso (ou, senão abandonar, pelo menos focar esse linguajar de dândi oitocentista nas traduções). Mas, se vejo os meus poemas de 2013, por exemplo, no Lira de Lixo, também me parece muito claro que quem os escreveu era outra pessoa. Não me arrependo deles, mas eu não escreveria esses poemas hoje, o que deve ser um bom sinal, né. Não diria nada a mim mesmo, porque acho que o processo que me levou do século XIX ao Lira aos meus inéditos de agora foi necessário. No máximo, recomendaria que eu relaxasse mais quanto a perder ou jogar fora certos poemas. Nada disso trouxe desastre.
Academicamente, dá para notar um amadurecimento também. Se eu comparo meus textos de 2016 para cá, por exemplo, com o que fazia antes, dá para notar bem que eu tinha muito problema de deixar aparecer as costuras – texto acadêmico é sempre um trabalho de colagem –, e acho que melhorei nisso. Com a tradução é a mesma coisa, a gente vai melhorando conforme pega experiência.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Queria começar a experimentar com prosa. Tenho feito muita pesquisa sobre Bakhtin e o romance, etc., e comecei a esboçar alguma coisa já, algo meio farsesco sobre gnosticismo, ufologia e malucos de teoria conspiratória. Meus interesses andam se voltando para línguas semíticas também – comecei a estudar hebraico por conta um tempo atrás, agora quero ter aulas de fato, e aprendi um pouco de babilônico em 2018, com um curso na USP. Gostaria de mexer com traduções desse meio no futuro, e uma vez cheguei até a esboçar o começo de uma tradução poética do livro de Jó. Não sei que livro quero ler que não existe ainda. Acho que, se eu soubesse, já estaria escrevendo ou importunando quem escreve melhor do que eu para fazer isso por mim.