Adriano Messias é escritor e pesquisador acadêmico.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não tenho uma rotina. O dia começa a partir de um agendamento prévio de atividades que eu tenho para desenvolver. Muitas vezes, nós, escritores, somos interpelados por demandas outras, e a escrita é apenas uma delas. Acho muito romântico pensar em um autor trancafiado em um quartinho com vistas para um jardim florido, a rabiscar papéis invocando sua musa inspiradora. Isso faz parte de velhos estereótipos. A maioria de nós trabalha em outras profissões, desenvolve muitas atividades e precisa conciliar o ato de escrever com outros verbos que também são importantes. A vida é repetitiva, burocrática, midiatizada, ludibriante. Por isso, mais do que ter ou não uma rotina, ater-se a escrever representa uma atitude de resistência perante um mundo raso. A escrita tem de nos levar para além da superfície das coisas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho rituais de preparação para a escrita. Em geral, tendo a trabalhar melhor na parte da tarde e de noite. Gosto do silêncio, da meia-luz, de uma música clássica baixa ao fundo. São hábitos que trazem conforto e concentração, mas não são ritos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária. Todos os dias, passo uma boa parte de meu tempo escrevendo. Quando não estou escrevendo, estou reescrevendo ou revisando meus textos. Ou traduzindo. Entretanto, não entendo a atividade da escrita separada da leitura e do estudo. Um escritor tem de ser um estudioso. Noto em mim períodos de intensa produção literária e/ ou acadêmica, os quais coincidem com finalizações de estudos, pesquisas, experiências de vida. É como se houvesse um momento mais forte de “abastecimento”, de descobertas, de provocações e de estímulos, os quais podem desencadear fases posteriores de muita escrita. Mas as duas coisas também ocorrem. Não há como se ter controle de tudo na vida e, de alguma maneira, é bom que o escritor se sinta um pouco à deriva no processo criativo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca achei difícil começar. Ideias são formas. As palavras nos arrebatam. São elementos do êxtimo, daquele lugar que não é nem do íntimo, nem do externo. Tudo se passa em um entre-lugar: por isso, anotações às vezes valem de alguma coisa, mas, em outros momentos, de chofre, vêm-nos uma ideia pronta, aquela frase que nos atropela, quase que materializada. Para mim, isso é fruto da produção incessante do inconsciente. Seja na escrita literária, seja na escrita acadêmica, não se produz a partir de um nada. A racionalização é só uma parte do processo. Muitas vezes, pensamos que um texto nos levará a um determinado lugar e, no final das contas, rumamos para outro caminho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não encontro travas ou sinto procrastinação. Estudo, leio, pesquiso, escrevo. Essa é minha vida. É o que faço melhor. O que me caracteriza como sujeito é um movimento muito intenso, transbordante até, de produção na escrita. Tenho uma inquietação que se traduz em texto, independentemente de expectativas ou de ansiedade. É claro que sempre se supõe um “Outro”, outro leitor: “quem me lerá?”. Isso, entretanto, faz parte do imaginário daquele que escreve. Por isso, não há sentido em temer. E o tempo do escritor não deve obedecer ao tempo cronológico: um projeto breve ou longo é sempre algo relativo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas vezes. Guardo um texto. Esqueço-me dele para trabalhar em outros. De repente, ocorre de o primeiro me vir à cabeça. Retomo, releio, modifico, reduzo. Escrevo vários textos ao mesmo tempo e, ainda que não pareça em um primeiro momento, acho que eles se correspondem de alguma forma. Quando venho a mostrar algo que escrevi a outras pessoas, sempre o faço de maneira mais profissional. Não costumo pedir que alguém dê uma opinião do tipo “veja se está bom”. Acho muito interessante ler em voz alta partes de um livro no qual estou trabalhando. Nesses momentos, percebe-se o resultado da escrita de outra maneira, e modificações aparecem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo quase tudo diretamente no computador. Porém, textos para crianças bem pequenas me surgem a partir de brincadeiras com palavras. Estes, sim, costumam ser feitos em uma folha de papel, a lápis, e depois transcritos no computador. Creio que são tipos de texto que pedem isso. No geral, entretanto, tudo é no teclado do computador, salvando e arquivando o tempo todo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Leio intensamente tudo aquilo que me interessa. Tenho estantes com muitos livros em casa. Em volta da cama, há uma pilha daqueles que estou lendo no momento. Não consigo ler apenas um livro por vez, se bem que o término de cada um venha a ser algo fundamental. Os livros que leio são rabiscados por mim e recebem anotações, marcações, sinais e indicações que venho criando desde a adolescência. São meus marcadores pessoais. Também sou muito ligado ao mundo audiovisual, sobretudo ao cinema. Vejo filmes praticamente todos os dias.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no processo advém de um ganho em maturidade como escritor. O escritor iniciante tende a ser muito afoito: quer logo ser publicado e sai espalhando textos daqui e dali. O importante é começar por meio de uma escrita bem avaliada, encontrar uma editora séria e passar a entender, pouco a pouco, como funciona o mercado editorial. É importante saber que este tem vários nichos e sofre grandes reviravoltas no decorrer do tempo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Projetos na cabeça todos têm aos montes. Porém, não é questão de somente dizer “quero fazer isso e aquilo”. Um projeto necessita de consistência em variados aspectos. Não adianta alguém falar “vou escrever uma saga” e passar um tempo enorme debruçado sobre personagens e enredos que não saem do lugar, mastigando um texto que muitas vezes só vai melhorar a partir de leituras e do estudo de autores e obras. Uma grande ilusão de quem se propõe a ser escritor é acreditar que tudo brotará ou fluirá e, de repente, um excelente editor irá descobrir aquela pérola que o autor crê ser a própria obra, ainda no anonimato. Neste aspecto, notam-se muitas reminiscências de pensamentos do romantismo nas idealizações literárias.
O trabalho de um escritor é árduo em todos os sentidos: escrever não é uma ação simples. Não basta querer. O escritor se forma a partir das leituras e dos numerosos textos que vai escrever, muitos dos quais lhe servirão apenas como experiência. Também é preciso estudar muito. Um escritor é um sujeito das letras, e não faz sentido que a leitura lhe seja periférica apenas. A leitura é o eixo de um escritor. Ser publicado pode parecer fácil, já que, hoje em dia, é possível a alguém financiar a própria edição mediante tiragens pequenas. Não é isso, entretanto, o que dá sentido ao ato de escrever. A escrita é muito mais um sintoma do sujeito escritor do que “dom”, “dádiva” ou fruto da “inspiração”. Mais do que pensar em projetos ou livros que não existem ainda, o autor tem de entender que a escrita é uma outra volta do parafuso. O sintoma diz do sujeito. Daí, um escritor pode se perguntar: “o que a escrita diz daquilo que, em mim, não cessa de se mostrar?”