Adriano Eysen é professor, escritor e crítico literário.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes de adentrar de forma específica nas dez perguntas que norteiam esta conversa acerca do meu processo de criação e da minha rotina de trabalho no universo das Letras, gostaria de agradecer a José Nunes pelo convite e parabenizá-lo pela iniciativa de aproximar o(a) leitor(a) do(a) escritor(a) e da sua obra.
Manter a tripla face professor/pesquisador/escritor exige de mim uma disciplina diária para dar conta desses três eus que me acompanham com mais frequência. Certamente, eles dialogam em diversos momentos, mas é inegável que a docência e a pesquisa me demandam muita energia por causa, marcadamente, dos cronogramas e prazos institucionais aos quais essas atividades estão submetidas. Desse modo, geralmente produzo à noite ou nos intervalos das atividades do magistério. Com efeito, crio estratégias de isolamento para escrever ou organizar textos e livros.
Por certo, criar requer solitude, dedicação e muita leitura. Trata-se, em síntese, de um projeto de vida que construímos de forma gradual. Muito provavelmente, a vida de um(a) escritor(a) requer um saber estar consigo mesmo para daí extrair o máximo do seu próprio ser e do mundo transubstanciando percepções, sentimentos e pensamentos em literatura.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto-me mais produtivo à noite, pois é o momento no qual consigo ouvir a musicalidade do silêncio de onde surgem as palavras com toda sua potencialidade. Gosto da atmosfera noturna e por ela me percebo embalado enquanto penso e escrevo. A noite traz um mistério que pode ser associado a muitas sensações vividas por mim enquanto escrevo. Nesse contexto, já há um ritual pelo qual sou envolvido e do qual sou sujeito participe buscando entrelaçar palavras para ressignificar o mundo e reinventar a realidade insuportável em que muitas vezes vivemos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho um cronograma diário dedicado à escrita. Geralmente, são os desassossegos oriundos das experiências de vida que me impulsionam para o universo mítico da criação literária. Criar é uma necessidade de recolocar-me diante da vida a fim de encarar meus próprios fantasmas e medos. De vez em quando, há momentos de baixa produtividade, porque o meu propósito maior é explorar as camadas mais profundas da linguagem e dela extrair, seja na prosa ou na poesia, o aparentemente indizível. Tarefa às vezes árdua de dizer o não dito; de transcender o discurso comum com o qual as pessoas comunicam-se no dia a dia. O texto literário, na sua essência, descontrói a gramática da linguagem banal, desordena-a, fere-a e a transgride para lançar outras formas de expressões verbais capazes de embalar este mundo que carece do poético.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo quase sempre motivado por um fluxo muito forte de sensações e pensamentos. Talvez, por isso me identifico com a seguinte frase do Fernando Pessoa: “sou um universo a pensar”. Longe de ser um Pessoa (rs), sinto-me à vontade para dizer que o pensar e o sentir são forças motrizes que me impulsionam a escrever como uma forma de estar no mundo para além de um ser humano que trabalha, paga contas e vive sob um conjunto de leis e normas disciplinares.
Em relação à segunda pergunta, confesso que não enfrento nenhum obstáculo para começar a escrever. Noto que, em meio às minhas incompletudes, a escrita é uma maneira de estar comigo mesmo e lançar-me para a vida, consciente de que a minha liberdade está no fluxo da linguagem e no que sou capaz de fazer por meio de sua natureza comunicante. Desse modo, começar um texto em verso ou prosa não se caracteriza para mim como uma experiência difícil, todavia, como um trabalho que exige dedicação e persistência para se chegar a um resultado satisfatório. Escrever é um querer existir!
Por último, a fim de contemplar a terceira pergunta, gostaria de chamar a atenção para a importância da leitura no processo de amadurecimento do(a) escritor(a). Penso que todo bom escritor(a) é um(a) leitor(a) sempre em busca de livros capazes de elevar sua alma. Em nossa memória habitam muitos(as) autores(as) que potencializam escutas e olhares sobre o mundo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou movido, em especial, pela autocobrança. Isto significa que, enquanto não começo a dedicar-me ao que preciso executar, não consigo estar em paz comigo mesmo: meu cérebro fica emitindo sinais o tempo todo acerca do que preciso fazer, inclusive nas madrugadas. Nesse sentido, é uma perturbação capaz de colocar-me para frente, mesmo quando o cansaço mental e físico parece dominar-me. Então, organizo-me e dou início ao trabalho com o seguinte objetivo: produzir um texto que, em primeiro plano, atenda aos meus critérios de exigência. Por isso, procuro não submeter-me às pressões externas e só assumo desafios que acredito dar conta dentro de um tempo pessoal/mítico no qual possa encontrar um lugar em mim mesmo para escrever e maturar o texto livre das amarras do medo e da ansiedade capazes de nos ensurdecer e nos cegar. Tenho ciência que sou o maior obstáculo daquilo que procuro fazer, por isso busco o mergulho interior para que os projetos curtos e/ou longos possam nascer sem grandes imperfeições.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou adepto ao processo de maturação do texto na tentativa de trabalhar ao máximo a linguagem, extraindo os excessos que escapam durante a escrita. Assim, procuro revisitar o que escrevo atento à organização das ideias, às imagens, ao ritmo, quando existentes, e às estruturas linguísticas constituídas no movimento da escrita que, às vezes, desvencilham-se da razão.
Nesse sentido, a troca de experiência com outros(as) escritores(as) é essencial para o processo de amadurecimento da produção literária. Escutar a opinião de uma outra pessoa, sobretudo qualificada, proporciona-nos uma aprendizagem significativa. Contudo, precisamos estar abertos para a crítica sincera, porque as elogiosas nada contribuem para nosso aprimoramento estético. Portanto, é preciso despir-se das vaidades a fim de exercitar a escuta sensível e pedagógica.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As Novas Tecnologias são desafiadoras e estão presentes no nosso dia a dia nos impondo aprendizagens contínuas. Neste momento de Pandemia, precisei reinventar-me como professor e escritor. Passei a dar aulas, fazer laives, orientar, proferir palestras e cursos através de plataformas. Realidade esta que exige de mim tempo, paciência e adequações com o propósito de não sucumbir diante de um contexto histórico caótico. Nesse contexto, manter a conectividade com amigos, familiares, alunos e colegas é essencial para a manutenção das afetividades, laços amorosos, troca de saberes, conhecimentos e experiências que contribuem para a nossa evolução humana.
Mesmo com os avanços tecnológicos, a caneta e o papel integram-se ao meu fazer literário. A depender do lugar e do momento, as primeiras linhas delineiam-se na folha de papel em branco. Sou adepto aos blocos ou pequenas agendas para registrar os primeiros espantos que me tomam repentinamente. Por isso, sempre os levo quando viajo. Os fios da memória às vezes dão curtos-circuitos. É preciso anotar para que as sensações e os pensamentos não se percam logo em seguida em meio a um estado epifânico de criação. Entretanto, tenho escrito, quase sempre, no computador, apesar de imprimir o texto para revisá-lo e reescrever à mão o que for necessário. Daí, poderia dizer que há um processo de escrita híbrida: a caneta, o papel e o computador reunindo a tradição e novo em prol do fazer literário.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
A obra literária origina-se das mais diversas experiências do(a) escritor(a) consigo mesmo e com o mundo. Somos todos(as) filhos(as) da finitude numa caminhada repleta de incertezas e mistérios que nos movimentam na complexa teia do passado, do presente e do futuro. Dessa forma, as minhas ideias surgem da perplexidade desse estar no mundo no qual me encontro em permanente desassossego.
No tocante à segunda questão, confesso que não cultivo “hábitos” com o propósito de manter a minha criatividade em alta. O exercício da docência e a pesquisa acadêmica ocupam boa parte do meu tempo. Há fases que o professor/pesquisador e o escritor não se ajustam muito bem. Em verdade, gostaria de viver o tão sonhado ócio produtivo, mas essa realidade é para meia dúzia de autores(as) que bem ou mal ainda conseguem viver dos seus livros. Não podemos esquecer que estamos num país em que pensar e escrever parece ser algo inútil. Contudo, persisto e procuro trilhar caminhos para manter o eu/escritor vivo dentro de mim. Enquanto a vida espantar-me, terei a necessidade de fazer literatura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Aos quarenta e quadro anos de idade e vinte e um de literatura, ainda me encontro inacabado. No fundo, trago a consciência de que nunca estarei plenamente satisfeito com o que escrevo, porque sempre acho que poderia ter feito melhor. Algumas vezes pensei em silenciar o escritor e buscar outras formas de vida, porém, não tive êxito. Ocasionalmente, levo dias ou semanas sem escrever um verso, porém sinto que a poesia permanece dentro de mim em estado de permanente transubstanciação. E de repente, as palavras emergem do silêncio, entrelaçam-se, fundem-se, convergem e divergem entre si dando corpo ao texto. Escrever é uma estar em mim e no outro para ressignificar este grande espetáculo de mistérios que se chama vida.
O que escrevi nos anos iniciais da minha jornada literária não republicaria. São textos incipientes, com excesso de expressões verbais, sentimentos e inquietudes da juventude. Diria que são exercícios criativos impulsionados pela necessidade de externalizar minhas angústias, sonhos, rebeldias, anseios, medos e frustrações vindos de um rapaz de dezenove/vinte anos que pretendia mudar o mundo. Em suma, o Adriano do presente olharia firmemente para o garoto que escrevia à mão ou numa pequena máquina Olivetti e falaria: “há um escritor em você que não quer calar-se; leia muito e escreva como uma maneira de não enfartar nem aprisionar a alma”. A Literatura nos aproxima do humano e nos apresenta várias possibilidades de existir.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Faz anos que me toca recorrentemente o desejo de escrever um livro infantil. Penso em algo que entrelace poesia e prosa inundadas pela atmosfera mítica das narrativas orais nordestinas. Em especial, as histórias que ouvia quando viajava para o recôncavo e sertão da Bahia. Penso que será um trabalho para o qual precisarei explorar a fundo os recônditos da minha memória. Paralelamente a esse projeto, gostaria de retomar um livro de contos que permanece engavetado precisando de um olhar mais cuidadoso para aparar as arestas textuais.
Em relação à última pergunta, meu desejo é ver a população brasileira lendo mais! Temos obras de alto nível em língua portuguesa, por isso fico profundamente sentido ao saber que a maioria das pessoas não leem sequer dois livros ao ano. O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), revelou, em 2018, que o Brasil tem um dos piores níveis de proficiência em leitura da América do Sul. Ao compararmos com a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o nosso país expõe resultados ainda mais preocupantes.
Em síntese, o que verdadeiramente gostaria não é de ler um livro que ainda não foi escrito, mas de ter tempo para mergulhar nas páginas divinatórias de grandes livros que ainda não li, além de poder presenciar um país de leitores(as) “à mão cheia”. Pessoas tocadas pela alquimia das palavras e preparadas de mente e espírito para tornar este mundo mais humano respeitando as diferenças de gênero, raça, etnia, cultura, religião, etc., sem esquecermos do cuidado permanente com a Mãe Terra. Como seria mágico presenciar nas escolas uma Educação (Eco)literária capaz de democratizar o acesso aos livros e oportunizar uma formação crítica às pessoas.