Adriano Codato é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Com uma enorme xícara de café, a leitura de três dezenas de e-mails, respondendo aos recados no Messenger e passando os olhos pelas notícias no Facebook. Isso implica em ver desde gifs de gatinhos até o post mais recente do World Values Survey ou do Pew Research. Enfim, mais ou menos a definição do que é o Facebook e para o que ele serve. Assinei a notificação de alguns diários do estrangeiro, a edição brasileira do El País e meios que são apenas eletrônicos, como o Nexo Jornal, que permitem uma leitura mais rápida. Alguns outros, como o Mediapart, seria preciso dedicar uma manhã inteira, o que eu não tenho. Mas salvo tudo para ler depois. De sorte que já tenho mais ou menos 100 mil notícias ou colunas de opinião muito importantes para serem lidas, um dia. Por último, vejo os blogs com ênfase em jornalismo de dados (para invejar seus gráficos e a capacidade de sintetizar informação). Porém, como em alguns dias dou aulas, em outros há reuniões, despachos administrativos (sou chefe de departamento), bancas, etc., eu não diria que isso é uma rotina, porque não há um horário fixo para essas coisas acontecerem, nem essa sequência estilizada que eu fiz parecer de início.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Quando estou concentrado em terminar um projeto apenas (em geral um artigo ou um trabalho a ser apresentado em um congresso científico), trabalho melhor de manhã, desde bem cedo até o horário do almoço e sem interrupção alguma. Para escrever consigo uma concentração de místico tibetano, mas abandonei qualquer ritual, como arrumar obsessivamente a mesa, guardar os livros que já usei, apontar o lápis com canivete, essas coisas que, creio, só se vê em filmes. Descobri, depois de um bom tempo e muitas tentativas, que a desordem da mesa não exerce qualquer influência sobre a ordem do texto ou a sequência de ideias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não, não há uma meta sobre a quantidade de palavras ou a extensão de parágrafos a produzir. Quando estamos comprometidos com um trabalho que demanda um investimento de longo prazo (uma tese, uma dissertação, um livro), penso que isso faria mais sentido. Já usei essa estratégia, mas há dias em que se escreve apenas um bom parágrafo, ou, com muita sorte, uma página inteira com começo, meio e fim. Isso foi muito angustiante durante muito tempo. Até que eu li uma entrevista do Saramago em que uma jornalista fazia mais ou menos essas mesmas perguntas. Ele contou então que ficava muito feliz quando conseguia fazer uma página por dia. A entrevistadora perguntou se não era muito pouco para quem vivia da escrita. Ele respondeu com o pragmatismo dos portugueses: “ao final do ano serão 365 páginas…”. Penso que em períodos concentrados, pensando sobre apenas um assunto, lidando com apenas um banco de dados e, claro, tendo o deadline como melhor inimigo, a coisa ande melhor.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Aqui, eu separaria a resposta em duas partes. Há um método, uma dinâmica e uma dúzia de manias quando se escreve sozinho. E há uma forma muito diferente de se relacionar com a escrita quando se elabora um artigo com mais dois, três ou quatro companheiros. Escrever sozinho, literalmente sozinho, como na dissertação de mestrado (publicada em livro como Sistema estatal e política econômica no Brasil pós-64) ou na tese de doutorado (um despautério de 300 e tantas páginas em espaço entre as linhas 1 e em tipo Garamond 11), impõe um modo de produção artesanal que, pela minha experiência, nem existe mais (ou nem deveria existir mais). Hoje, em nosso grupo de pesquisa, entre a dezena de orientados, as dissertações e teses são, ao final, escritas pelo seu único autor, mas o trabalho é bem mais, ou incomparavelmente mais, coletivo, pois as ideias agora são pensadas em voz alta, as versões dos capítulos circulam já como papers mostrados em congressos e cada tese ou dissertação está, na minha experiência, ligada a um grande projeto de pesquisa do qual ela é uma parte muito importante. Os meus estudos de formação (o mestrado e o doutorado), e mesmo o livro Marxismo como ciência social, em parceria com o Renato Perissinotto, foram trabalhos rigorosamente solitários, de escrita artesanal, a partir de muitas notas soltas, dezenas de leituras (às vezes do mesmo livro…), centenas de quilômetros percorridos atrás de um único documento. Os textos foram depois compostos, de forma completamente amadora, como são as iluminuras. Eu nem desconfiava, mas hoje eu tenho certeza que esse “método” é um tanto bizarro. Assim, meu processo de escrita hoje envolve: ter uma ideia, procurar um colega ou um estudante, discutir com ele, convidar um terceiro, ou quarto, planejar a coleta de dados de forma realista e factível, dividir o trabalho, assumir e cumprir a tarefa para a qual fui incumbido ou me incumbi, ler a literatura científica específica, compartilhar com os outros colegas um artigo obscuro ou completamente desconhecido, mas revelador, e fazer dezenas de trocas de e-mails ou de recados no chat do Messenger do Facebook. Ao final, prefiro eu mesmo ficar responsável pela redação final do texto, mesmo sendo o terceiro ou o quarto autor. E aí o reescrevo muitas vezes. Há uma outra sequência, mas só o início é alterado: quando eu leio algum artigo com uma ideia excitante ou um teste estatístico muito legal, adapto mentalmente ao projeto no qual estou envolvido, testo com os meus dados, e as etapas são mais ou menos as mesmas descritas acima. Há, por fim, ideias que eu não tive, técnicas que eu não conheço bem (quase sempre nada), textos a serem escritos para os quais sou convidado por colegas muito generosos para participar. E a rotina é mais ou menos a mesma.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinação, c’est moi. Adio tudo, sempre. Isso significa que o que eu poderia escrever com calma, organização, planejamento sai sempre em cima do prazo e com um enorme esforço de última hora. Mas também o meu perfeccionismo na escrita atrapalha. E tudo isso vale para projetos longos ou um plano de aula. Talvez o desespero da última hora faça o texto, enfim, se escrever.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso-os bastante. Muitas vezes. Reviso inclusive as provas do artigo ou livro e reescrevo uma boa parte, tantas quantas o editor da revista permitir. Acho que um artigo não fica pronto antes de uma centena de emendas e prefiro mostrar, para um colega ou amigo, uma versão mais acabada do texto. Estou tentando, hoje, superar o fetiche pela forma, pelo texto “bem escrito” em nome de uma prosa mais direta, mais seca e completamente objetiva. Para isso, faço muitos cursos on line de redação científica e estou realmente empenhado nisso. O diabo é que, nos anos da minha formação, li, ao invés de estudos empíricos da minha área, muitos ensaios sobre literatura, psicanálise, história, filosofia e isso acabou exercendo uma grande influência no modo como eu gostaria de escrever (não que eu tenha conseguido, evidentemente). Alguns livros que li lá pelos 20 anos me marcaram pelo conteúdo, mas também pela forma. De memória, poderia citar: De fato e de ficção, do Gore Vidal (Companhia das Letras), Passeios ao léu, do Gerard Lebrun (Brasiliense), Pensadores russos, do Isaiah Berlin (Companhia das Letras), Homens em tempos sombrios, da Hannah Arendt (Companhia das Letras), e coisas do gênero. São ensaios eruditos e essa forma implica, portanto, erudição…; e implica uma escritura em que mais vale o insight, a grande ideia, o ponto de vista inusitado sobre o assunto do que a demonstração metódica de um problema científico muito específico ou o teste de uma hipótese. Ou seja, as coisas seriam hoje bem mais fáceis se ao invés das lembranças do Victor Serge (Memórias de um revolucionário), ou da biografia do Freud pelo Peter Gay, eu tivesse lido com empenho a American Political Science Review.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador e apenas no computador. Às vezes no iPad. Um bom notebook, com uma tela grande e um processador muito rápido são o que bastam para trabalhar. Acho bacana demais quem usa aqueles blocos de notas importados e caneta ou lápis com borracha na ponta. Mas não tenho mais paciência para suportar o timing da escrita à mão. Digitando vai mais rápido e num caderno teria que, depois, passar tudo aquilo a limpo. Investi uma fortuna em moleskines e canetas (as melhores, eu acho, são as da Spalding), mas nunca mais toquei nisso. E olho para essas coisas com uma enorme culpa pensando que, talvez, a coisa andasse melhor com esses apetrechos de “escritor”. A minha produtividade, já que estamos confessando tudo, melhorou muito com um programa de gestão bibliográfica. Eu uso o Mendeley para estudar, anotar nos textos, grifar, organizar os artigos, renomear os arquivos, etc. E para administrar as referências bibliográficas e citações. Isso, para quem já escreveu na máquina de escrever, parece quase mágico.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tento ler a literatura “clássica” da minha área – Ciência Política – e estar atualizado nas publicações mais recentes dos principais periódicos, nacionais e estrangeiros. O fato de ser um dos editores da Revista de Sociologia e Política ajuda também a saber o que se passa no campo, principalmente as pesquisas dos jovens autores. Mas como o volume de artigos publicados por ano é insano, só consigo acompanhar uma ou duas subáreas de estudo. Assim, minhas ideias vêm dos outros, principalmente a forma de categorizar variáveis, a escolha do teste estatístico, a formulação de um índice de mensuração, etc. Por outro lado, como ainda não há uma saturação dos temas na ciência política brasileira (há muitas e muitas e muitas coisas que ainda não foram estudadas), o espaço para a imaginação e a proposição de problemas de pesquisa é enorme entre nós. Inclusive para replicar aqui o que já foi feito pelos clássicos da área, nas grandes monografias. De sorte que, para quem trabalha com ciência política empírica, a cada enxadada, uma minhoca.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Diria: “Não seja ridículo. Uma tese não é uma catedral gótica. Seja econômico na escrita, focado em um único problema e realista na coleta dos dados”. Diria mais: “Escreva três ou quatro bons artigos, publicáveis nos periódicos mais bem qualificados, analisando, sob diferentes pontos de vista, um assunto quente e atual, e costure-os a partir de um problema teórico comum”. Sobre o processo de escrita, creio que falei disso o suficiente na resposta à pergunta 4.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever, um dia, dois livros muito diferentes entre si. Um mais acadêmico, uma sócio-história da classe política brasileira. Outro, de divulgação científica, sobre a política brasileira contemporânea. O primeiro seria uma história sociológica da constituição da profissão de político no Brasil, do século XIX ao XXI. O segundo seria um livro que resumisse os principais achados das pesquisas que estão sendo feitas hoje na ciência política acadêmica brasileira para o grande público, uma explicação bem didática do que já se descobriu nos estudos sobre as elites políticas, os humores da opinião pública, a forma de classificar ideologicamente nossos partidos e como medir nossas coalizões de governo e estimar sua eficiência e estabilidade. A sócio-história da classe política é o meu projeto de pesquisa financiado pelo CNPq, mas até agora só publiquei artigos muito específicos, sobre temas circunscritos no tempo. O livro de divulgação é um projeto começado e hoje pela metade, pois falta tempo para tudo isso. Que livro eu mais gostaria de ler? Na realidade, este mesmo livro de divulgação científica, mas bem melhor que o meu, que não terei forças para terminar.