Adriane Garcia é poeta, autora de Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia contando minutos. Uma correria. Geralmente minha filha mais nova já está acordada se arrumando para ir à escola, a mais velha dormindo, pois chega tarde. Tadeu se levanta primeiro e vai preparar o café, enquanto me arrumo para sair para o trabalho. Aos sábados e domingos posso ficar na cama lendo um pouco. Se estou trabalhando em um projeto, uso as manhãs do fim de semana para escrever.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor pela manhã. Gostaria muito de ter minhas manhãs para escrever ou, principalmente, para ler. Não as tendo, acabo escrevendo (e lendo – que considero parte crucial do escrever) em qualquer horário e em diversas situações. Escrevo enquanto estou no metrô, no ônibus, em filas de espera, em alguma pausa do trabalho, à noite, às vezes, quando chego em casa e o cansaço não me assola. Como ter um ritual, quando escrever não pode ser sua principal ocupação? Se daqui a alguns anos, ainda existir aposentadoria, devo criar um ritual para ler.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se estou com um projeto definido, escrevo todos os dias até terminá-lo, funciona concentradamente e com disciplina. Se não, se ainda não tenho uma ideia definida, escrevo a esmo, releio textos que escrevi, reescrevo em horários possíveis. Às vezes, crio metas, em função de prazos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Já trabalhei em muitos projetos de escrita que exigiram pesquisa. Fábulas para adulto perder o sono me fez ler e reler muitas fábulas e contos de fadas, pesquisar suas origens. Só, com peixes fez com que eu visitasse aquários, inclusive. Também escrevi outros dois livros de poesia, temáticos, ainda inéditos, que necessitaram tomar muitas notas. Geralmente já sei, de antemão, o que vou fazer com elas, de maneira que quando me decido por um projeto, não acho difícil começá-lo. O que demora, às vezes, é achar a melhor forma para os poemas e a melhor forma para compor o livro, para sugerir sua narrativa. E quando a forma para aquele trabalho aparece, aí fica fluido. O processo de reescrita é que demanda muito mais tempo, pois quando achamos que está bom, ainda não está. O tempo sempre mostra isso. Todo livro pronto é o ponto onde se desistiu dele. Tem os que desistem sabiamente e os que desistem cedo demais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não procrastino. Se tenho uma ideia que considero relevante, executo sem enrolar, porque tenho essa necessidade de me livrar dela. As ideias, se não as executo, não me deixam em paz. Quanto ao medo de não corresponder às expectativas, ele sempre existe. Mas é muito mais o medo de não corresponder ao próprio projeto. Gosto de escrever algo que possa dizer para mim mesma: “fiz exatamente o que eu quis fazer aqui” ou “era disso que eu queria falar, e era assim que eu o queria dito”, “já posso desistir desse livro, cheguei ao melhor do meu limite”. O outro medo, o da expectativa alheia, não me chega a ser medo, mas uma ansiedade: publico para me comunicar, então, prefiro que meu livro encontre o outro, que seja entendido, que haja uma comunicação efetiva entre livro e leitor quando se encontrarem. Claro, se o leitor não tivesse importância para mim, eu deixaria o que escrevo na “gaveta” e não publicaria. Publicar é confessar um desejo: o de que desejamos a leitura do outro.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nossa! Muitas e muitas vezes. Reviso, releio, reescrevo. Há um inédito meu que quanto mais fica inédito, mais mexo nele. Este último que enviei para a Penalux, Garrafas ao mar, revisei tantas vezes que até parei de contar. Mexo aqui e ali, geralmente para cortar ou trocar, raramente acrescento. Quando vejo que já está quase o que quero, envio para dois ou três escritores gentis o bastante para ler um original e sinceros o bastante para dizer se está ruim. Acho muito bom receber o retorno de uma leitura antes da obra concluída. Ela pode detectar algum ponto obscuro e, para mim, que primo por clareza, é fundamental.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevi à mão durante anos. Na juventude eu datilografava o manuscrito. Depois, com o acesso fácil aos computadores, passei a escrever direto em tela. Agora, há quase dois anos, voltei aos cadernos. Cheguei à conclusão que digitar ou manuscrever alteram o ritmo e o cumprimento do verso. É também uma questão de cadência, de tempo. Sem contar que os computadores têm mil e um desvios para um escritor. O fato de se ter buscadores virtuais, notícias online, redes sociais, tudo ali onde você escreve, a um clique, desvia seu foco da escrita, dispersa, interrompe, leva seu espírito para outra direção, interfere no texto. Quando quero imersão no que estou escrevendo tenho que fugir de qualquer coisa online por perto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de tudo que vejo, ouço, vivo, leio, assisto… Minhas ideias são reações. Eu reajo ao mundo. Não cultivo hábitos para me manter criativa, cultivo hábitos para viver de forma mais tolerável, e escrever é um desses hábitos. Criar é minha reação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo de escrita continua o mesmo. Algo transborda, de bom ou de ruim, eu reajo. É minha forma de elaborar e digerir tudo o que me chega. É meu ato salvador de mim mesma. Vou para o meu caderno e escrevo (anoto). Até ali não é para mais ninguém, é só para mim, então é um ato de muita liberdade. O que penso que mudou foi que amadureci sobre o que publicar ou não.
Hoje em dia, pensa-se que qualquer pedaço de pensamento anotado é importante para o mundo. Que qualquer pensamento anotado corresponde a literatura. Há um barulho, um ruído ensurdecedor, porque pouca coisa é som, porque não há silêncio (não à toa, é uma era que prefere o celular ao livro). As redes sociais, por exemplo, estimulam a responder a perguntas como “o que você está pensando?” Ora, se fosse para sabermos tudo “o que você está pensando”, teríamos poder de telepatia desenvolvido. A natureza sabia que seria um barulho insuportável.
Minha anotação não é arte. Pode vir a ser. Se eu achar que chegou a ser – o que exige talento e trabalho – e que há algo ali que valha o tempo do outro, as árvores derrubadas para se fazer papel, eu posso pensar em publicar um livro, mas publicar num país sem leitores é algo cada vez mais questionável. Publicar um livro, quando os rumos da tecnologia levam à preferência pela imagem fácil e pela mensagem rápida, é cada vez mais motivo para minha reflexão. Quando ter um livro publicado é, tantas vezes, só uma ode à vaidade de se dizer escritor, faz pensar. Quando publicar livros se torna mais um serviço oferecido dentro da cadeia de consumo, um produto que te torna algo pelo simples ato de ter usado o serviço, é preciso refletir sobre onde há literatura nisso. Em todas as artes é preciso muito estudo, e diário. Exceto para os gênios, claro. Gênios eram coisa rara. Escritores que não leem é algo que só posso compreender pensando em genialidade. E ainda há esse fenômeno difícil de lidar ao publicar um livro: que se exige muito mais a exposição do autor do que do seu trabalho, sendo que escrever é ato tão introspectivo. As pessoas não gostam que falemos dessas coisas desagradáveis. Às vezes, eu olho, e parece que a literatura é uma festa, a despeito do fato de quão demolidor é tentar viver de literatura no país. Ainda assim é preciso falar somente dos pontos de vista confortáveis. Somos crianças e precisamos passar a mão em nossas cabeças mutuamente.
Talvez escrever literatura e tentar levá-la aos outros seja, hoje e para as próximas gerações, um grande ato quixotesco, e visto pelo que há de resistência nisso, tem sua dose de loucura e beleza. Claro que digo daqueles que ainda creem na literatura. E existem esses quixotes atuais, escrevendo livros loucos e belos.
Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, que queimei, eu diria a mim mesma: “Queime isso”.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Quando começo um livro eu planejo as linhas básicas do que quero fazer, principalmente por trabalhar, na maioria das vezes, com livros temáticos. Deixo fluir, mas apenas dentro do meu objetivo e objeto. É uma fluência controlada, com limites. Eu gosto que um livro fique orgânico, e trabalho para isso. O mais difícil é o primeiro verso; o primeiro verso me dá o tom (a voz) do livro. E é o tom que eu demoro mais para achar.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Eu escrevo nos intervalos da vida prática, do pão de cada dia. Quando não estou escrevendo, estou lendo. Na verdade, muito mais leio que escrevo. Conscientemente, escrevo um projeto de cada vez, mas a ideia de outros projetos vão atravessando esse tempo, e enquanto trabalho em um, os outros vão se sussurrando (que é uma forma de ir se fazendo também). Muitas vezes deixo um projeto de molho, enquanto avanço em outro; então é um de cada vez, mas não deixa de ser ao mesmo tempo (risos).
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Várias coisas me motivam como escritora. Estar com algo me transbordando me motiva. Olhar ao meu redor me motiva. Ler me motiva. Poder criar algo, sentir a potência que é isso, me motiva. A beleza me motiva. A necessidade de não me omitir também me motiva.
Não me lembro exatamente quando me decidi a dedicar-me à escrita. Foi tudo tão naturalmente. Escrever sempre fez parte da minha vida desde que aprendi a escrever. Já publicar é outra história.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não chamo de estilo, chamo de voz. Não tive muitas dificuldades para encontrar uma voz própria. A prática, a autocrítica e a muita leitura vão nos levando a ter essa voz. Ler bastante outros autores, principalmente os que vieram antes de nós, ajuda a perceber se estamos imitando ou não, se estamos inventando a roda. A falta de leitura pode trazer a sensação de que somos gênios inventores.
Já estar sob influência não é imitar. É ser atravessado por. Acho que vivo influências constantes. Influência tem a ver com admiração. Somos permeáveis ao que admiramos; e tudo que admiramos nos modifica. Estamos, os vivos, em fluência, em trânsito.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
A poesia de Brecht. A antologia que saiu pela editora 34 é ótima. O que mais gosto em Brecht é o quanto ele aproxima a poesia das relações sociais, do mundo do trabalho, da política. O quanto ela é denúncia. Além do estilo – direto, sagaz, às vezes sarcástico, sem medo da prosa, sem badulaques, gosto demais do modo como é impactante. (Bertolt Brecht. Poemas 1913-1956. Organização e tradução de Paulo César de Souza, ed. 34)
Racismo estrutural, do Sílvio Almeida. Recomendo este livro porque já passou da hora, há tempos, de o Brasil discutir seriamente o racismo nas suas estruturas. Não é um livro de poesia, mas explica, inclusive, o motivo de não haver grande visibilidade ou mesmo viabilidade de poetas negras e negros neste país racista (atualmente entregue a fascistas e nazistas descarados, diga-se de passagem). (Racismo estrutural, Sílvio Almeida, Coleção Feminismos Plurais, ed. Pólen Livros)
E para não dizer que eu não falei de flores, recomendo o livro Das muitas formas de dizer o tempo, de Adri Aleixo, ilustrado com a fotografia de Lori Figueiró (ed. Ramalhete). O livro é lindo. Traz uma poesia que retrata o sertão mineiro, sua gente e seu cotidiano com grande sensibilidade. É daqueles livros bons da gente pegar quando quer ler as paisagens humanas e o silêncio. (Das muitas formas de dizer o tempo. Adri Aleixo e Lori Figueiró, ed. Ramalhete).