Adriane Figueira é revisora, escritora e pesquisadora, autora de “Revoada do Dragão” (Patuá).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Meu dia começa quase sempre com mau humor. O meu sono é muito desregrado, às vezes adormeço com o nascer do sol, outras vezes durmo tarde e acordo cedo, outra vezes ainda acordo na hora do almoço. Sofro de insônia e tenho um gato inquieto e muito ativo durante a madrugada. Durmo mal e não crio uma rotina, também não faço esse tipo de cobrança a mim mesma, as manhãs são totalmente perdidas, inúteis e com a pandemia esse caos cotidiano/matutino se agravou.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A melhor hora do dia para escrever é, sem dúvida, quando está escuro e silencioso, quando é madrugada ou quase. Eu raramente consigo escrever literatura durante o dia, mas não há um planejamento ou metas impossíveis, não sou uma máquina e nem obcecada pelo método ou pela quantidade de páginas e palavras e acredito em inspiração, sim, claro que o estudo e a prática são necessários, mas o encanto precisa coexistir também. A escrita poética não é um trabalho remunerado, é um labor afetivo, por isso mesmo não é uma obrigação minha, apesar de escrever sob demanda, mesmo que seja uma demanda própria, algum projeto. Quando pesquiso, o que é bem constante, escrevo durante à tarde, nunca pela manhã, que é quando meu cérebro ainda está dormente, as revisões costumo fazer após o almoço também e minha mesa, quando a uso, fica sempre cheia de papéis com anotações, referências, livros e dicionários de todo o tipo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quase todos os dias ou sempre que me chega a epifania, jamais forço a escrita de um poema ou qualquer outro texto poético, pois não funciona assim para mim. Escrevo sem regras rígidas, sem amarras, vou colocando tudo na tela a partir das imagens estocadas e as que vão sendo desenhadas pela minha imaginação na hora, no susto. Sempre fui leitora, principalmente de poesia, mas comecei a escrever “literariamente” há menos de um ano, então não sei muito bem como caminhar por essa vasta estrada de palavras, mas sigo o fio de Ariadne, que irremediavelmente me tira de um labirinto e me joga em outro, ou um Sísifo que não cansa de empurrar sua pedra. Não há metas diárias para a literatura, apenas para a produção acadêmica, pois há prazos e exigências bem delimitadas, o que exige bastante estudo e concentração.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não há um processo de escrita literária ou eu não consigo percebê-lo. Eu escrevo quando sinto vontade ou necessidade de expelir as palavras, não encaro como algo dificultoso Apesar de ser muito falante, tenho certo bloqueio para expressar alguns pensamentos e sentimentos espinhosos, então, também escrevo para responder ou questionar esses lamentos quase inconfessáveis, fragmentados. Eu anoto no bloco de notas do celular alguns apontamentos, ideias e pesquiso significados de palavras, conceitos de outras áreas, estudo mitos e símbolos e sempre estou atenta às artes, principalmente, a literatura, o cinema e a música. Muitas das minhas iluminações são diretamente inspiradas e influenciadas por momentos lidos, vistos e ouvidos, ou, por sensações que nunca vivi que não são minhas, mas me cabem, me vestem no momento do verso, da poesia. Na escrita acadêmica é diferente, a abordagem é outra, mais rígida e formal, eu passo horas lendo e às vezes não consigo escrever um parágrafo, mas depois que organizo os tópicos a escrita flui. Para escrever o que quer que seja eu preciso de silêncio, qualquer ruído me dispersa e me aborrece, mas nada de preparos, chás e incensos, sem “ritos sagrados”. Escrevo no desconforto, na dor de cabeça causada pela luz dos ecrãs, raramente utilizo mesa e cadeira para a escrita literária, ligo o computador em cima da cama ou pego o telefone e começo… haja dor nas costas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não lido nada bem com travas de nenhuma espécie, mas em muitos momentos elas chegam e eu me rendo. Sofro de síndrome da impostora e ao mesmo tempo tenho preguiça de seguir regras, então procrastino e estou sempre em atraso comigo mesma e com os outros. Tento não criar expectativas absurdas ou me comparar (muitas vezes falho miseravelmente nesse ponto), vou trabalhando do jeito que dá e vendo se consigo cruzar essa linha de chegada imaginária. Atualmente estou bastante submersa na escrita da minha tese de doutorado, estudando os textos teóricos, anotando ideias, delimitando os objetivos e sofrendo por antecipação com os prazos e outros trabalhos, sou muito ansiosa e apressada, quero tudo para já e sei que sempre acaba faltando algo indispensável, mas sou persistente com a minha escrita, dificilmente desisto de algum texto ou projeto seja ele curto ou longo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Leio uma porção de vezes o mesmo texto e ele nunca parece pronto, sou “a louca” da revisão, mas acho que é assim para quase todo mundo que lida com a escrita, seja ela acadêmica ou literária. Na escrita poética reviso cada palavra e vejo se o sentido está correto para o momento e se não prejudica o todo, troco versos de lugares, suprimo outros. Alguns textos descansam por um bom tempo antes de qualquer revisão, outros apressados já nascem quase prontos para o mundo, não porque estejam perfeitos (perfeição não existe e não é este o ponto), mas as palavras lançadas no “papel” desenham uma trilha trafegável e eu já não consigo “desvirtuá- los”, viro a esquina e cerro os olhos… Um caos completo, mas em algum momento, numa centelha ínfima de confiança, eu lanço os meus textos ao acaso, às vezes me arrependo do resultado (risos) e mudo de novo, pois reciclo textos. Minha autoestima literária é bem frágil, aliás autoestima é um negócio bem complicado por aqui, pois sofro de ansiedade e sou um bocado preguiçosa. Mostro alguns textos para poucos amigos (curiosamente estes 5 são professores da área de Letras e entre eles há 3 poetas), também mostro para minha irmã mais velha que apara algumas arestas ortográficas que deixo passar (é difícil revisar o próprio texto). Confio nessas 6 pessoas e elas são sempre gentis e elogiosas, o que me faz também desconfiar (risos), sou muito insegura em relação ao que escrevo. O meu último trabalho finalizado foi absolutamente secreto, não mostrei o resultado para ninguém e só falarei sobre isto se tudo o que pensei para ele der certo. Em relação a artigos, resenhas e ensaios acadêmicos é praticamente a mesma coisa, leio e releio diversas vezes, mudo, apago e acrescento; depois mostro para as minhas duas irmãs que sempre contribuem neste processo de escrita e reescrita, apesar de serem de áreas distintas: uma é do Direito e a outra é da História da Arte.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou adepta das tecnologias contemporâneas — celular e computador — para escrever meus versos e prosas. Papel e caneta também são itens tecnológicos, mas de outras épocas e nunca saem de moda. Meus cadernos, canetas coloridas, post-it e o planner, uso para organizar e anotar coisas importantes de aulas, grupos de estudo, seminários e palestras que ministro ou participo, utilizo o papel também para fazer resumos e fichamentos de obras teóricas e literárias voltadas para as minhas pesquisas acadêmicas ou por pura curiosidade e estudo, este é o meu modo de fixar o conteúdo. Digitar é mais rápido e eficiente para mim, o barulho das teclas do computador me motiva e me acalma.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias nascem de sonhos, do meu olhar sobre a realidade, da dor, do silêncio, dos momentos vividos, das saudades do que foi e do que não foi e de tantos afetos por pessoas, objetos, canções, filmes, séries e principalmente dos meus amores literários. Minha força poética também vem das mulheres que leio e admiro, do meu passado, da Floresta Amazônica e suas lendas, das águas dos rios da minha terra. Eu leio muita poesia para desassossegar minha alma e me manter desperta. Ouço músicas também, canto e danço sozinha em casa, gosto muito dessa ideia de movimentar o meu corpo e ouvir minha voz desafinada entoando canções em línguas estrangeiras. O meu lirismo é antigo, mas minha escrita é uma filha que está sempre no momento do parto que é aqui substantivo e verbo. Não me acho muito criativa, escrevo para não enlouquecer, para não esquecer, por uma necessidade visceral de sentir o mundo, o espanto, a fúria, o (des)encontro, o sonho…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Literariamente, eu escrevo há muito pouco tempo, não tenho uma jornada longa com esse tipo de texto, por essa razão não percebo grandes mudanças, mas há uns poucos escritos do passado que ainda me recordo e lamento (risos). Escrevi estes em determinadas situações hoje embaraçosas, a maioria, nem tenho mais guardados, foram devidamente descartados. Eram textos absolutamente horríveis, jamais publicaria algo do tipo. Nunca pensei que pudesse me tornar uma escritora (apesar de que sempre quis muito conseguir escrever um livro de poesias), então, talvez não tivesse mesmo nada a dizer para a Adriane do passado. Em relação aos meus escritos acadêmicos e pesquisas, acho que há enormes mudanças, leio textos meus antigos que soam tão ingênuos e rasos, então, o meu conselho para a Adriane pesquisadora do presente é: leia, leia, leia e leia antes de traçar qualquer argumento, só o estudo amplia o horizonte.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de conseguir organizar meu projeto “ordo amoris” que está pausado há meses. Nele quero escrever sobre meus afetos de modo mais direto (autobiográfico), falar sobre minhas referências líricas, meu dicionário de significados internos em versos ou prosas breves, mas tudo é tanto que eu me perco pelo trajeto e vou adiando. Queria também conciliar desejo e tempo para estudar, ler e reler mais, tanto a Literatura propriamente dita e as suas: história, crítica e teoria; quanto trabalhos de filosofia, sociologia, psicanálise e mitologia. O livro que gostaria de ler, já li, ELE existe, é o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, semi- heterônimo de Fernando Pessoa que é absolutamente o meu grande amor da Literatura.