Adriana Vianna é professora do programa de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos dias bons, medito um pouco antes de tomar café e banho e tento organizar o que há para fazer no dia: uma mistura entre o mais urgente, o mais importante e o que mais quero fazer. É bem comum também fazer meu almoço cedo se vou para o Museu. Se trabalho em casa, faço isso um pouco mais tarde.
Nos dias não tão bons… bem, aí é como dá pra ser. Tento cumprir pelos menos o básico sem me atropelar demais e sem ficar andando em círculos, gastando um monte de energia à toa, aumentando a sensação de que só o urgente importa e mesmo assim o dia só vai dar pra um pedacinho de urgência, se tanto…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A escrita pra mim tem, mais que horários, umas “estações”. Quando estou ainda pra começar a escrever faço mil coisas “em volta”: leio, faço anotações, esquemas e mais esquemas. Geralmente demoro a começar, enrolo um bocado, arrumo “urgências” sem fim etc. Quando finalmente começo, costuma ser lento e acho que flui à tarde e no começo da noite, quando já consegui “perder” de manhã o tempo que precisava pra acalmar a ansiedade, mas não quero quebrar demais a rotina dormindo tarde ou deixando de fazer algumas coisas que costumo rotineiramente fazer de noitinha, como ioga.
Quando a escrita já se tornou de fato aquilo que estou fazendo, não importa quantas outras coisas continuem acontecendo – aulas, atividades na universidade etc – o horário vai se esticando. A sensação que tenho é que há um momento – uma “estação” – que é da escrita e aí os horários já não são tão marcados. Posso levantar cedo e começar a trabalhar na escrita ou ir esticando, esticando e acabar dormindo de madrugada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Em períodos concentrados e bem raros, se comparado com as outras atividades de trabalho. Nunca consegui ter uma rotina diária para escrita, só para leitura. Leio todo dia: coisas de trabalho, mas muita literatura também.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu preparo as tais notas por um tempo quase infinito. Quem espera algo meu com prazo sabe disso e com certeza já me inscreveu na fila do inferno dos procrastinadores (peço desculpas de coração, mas minhas fraquezas são mais fortes que eu, como dizia o Filipito, personagem do Quino)…
Na verdade, a ideia de “notas suficientes” chega a ser um pouco curiosa pra mim porque de fato nunca acho que elas são suficientes. O que acontece é que chega um ponto em que algum argumento já parece firme demais para continuar não sendo escrito e é nesse ponto que começo. Nem sempre este começo tem a forma de um início/introdução de texto: pode ser apenas um parágrafo arrumando uma ideia, costurando algumas imagens, produzindo uma cena e sua análise. O importante, mais do que aquilo que vai ser dito nesse primeiro momento, é desfazer a distância entre o que estou pensando enquanto anoto e o papel ou a tela do computador. Aliás, cada vez mais nos últimos tempos, meu movimento inicial de escrita tem sido feito no papel mesmo. Depois que tive um problema na vista, passei a tentar usar menos o computador e isso me levou a redescobrir o prazer da escrita à mão, em caderninhos – quadriculados de preferência – que dão uma sensação mais acolhedora pra essas primeiras arrumações de ideias. Em geral, quando os argumentos e a organização geral do texto já estão maduros, passo a escrever direto no computador.
Não é raro, porém, que passagens que fazem parte da pesquisa de campo apareçam no meio da escrita mesmo sem terem sido selecionadas antes. Muitas das coisas que vão sendo separadas para entrar no texto acabam ficando de fora e outras, que estavam quietas, vão sendo puxadas pela memória. Isso leva, claro, a novas notas, mais consultas e reorganizações do plano da escrita. Por mais que eu goste de montar esquemas de redação – partes, itens, argumentos que devem entrar em cada parte – a experiência concreta é de que eles vão se recombinando na medida em que a escrita acontece. Tem horas em que isso dá uma sensação ótima, como se tudo fluísse com vida própria, e tem horas em que é um desespero. Parece que o caminho se embaralhou todo e aí tenho que parar um pouco, descansar, andar, tomar um banho (escrever é um negócio muito limpinho, gente!) até poder ver outra arrumação de texto surgir.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu lido meio mal com tudo isso, pra ser sincera. Começando pela procrastinação: sou capaz de procrastinar lendo sites que dão dicas sobre como não procrastinar. Se você não tem ideia de quanto tempo é possível levar lendo todas essas dicas, você não passa de um amador da procrastinação. É o equivalente a acumular livros sobre minimalismo…
Uma das formas de combater esse adiamento sem fim está, claro, nos prazos. E eles chegam, ora se chegam. Nos últimos tempos, tenho tentado lidar com os prazos menos como se fossem cobradores sem alma ou piedade e mais como sinal dos compromissos coletivos que nos fazem bem se forem honrados. Como disse, não sou boa nisso, mas estou me esforçando. E, pra fazer isso, é fundamental “quebrar” um pouco as expectativas. Tem aquela dica básica que a gente sempre dá pra orientandos e orientandas: você não está escrevendo uma tese, mas uma página, uma parte de capítulo, uma introdução provisória. A ideia do “provisório” funciona imensamente pra acalmar a ansiedade no meu caso e, consequentemente, destravar um pouco a escrita.
Outra forma de lidar com essas dificuldades e que tem sido imensamente prazerosa pra mim por inúmeras razões é escrever em parceria. Do mesmo modo que gosto muito de dar cursos com outras pessoas, acho uma grande experiência a coautoria. O processo em si de pensar sobre o texto se torna muito mais rico e a ideia de que tem alguém ali do outro lado esperando alguns parágrafos chegarem – e sabendo que são parágrafos provisórios – ajuda demais a quebrar as travas, diminuir as fantasias e a solidão. Venho me dando conta de em quantas coautorias incríveis estive metida e percebo que elas me fizeram trabalhar mais e melhor do que eu poderia sozinha, inclusive por darem limites para esses temores e ansiedades que cercam a escrita.
O medo de não corresponder às expectativas, por sua vez, está sempre presente, mas ele vem mudando ao longo do tempo. Por um lado, cada vez mais meus receios estão relacionados às implicações éticas e afetivas do que faço. A eventual aprovação do que escrevo está profundamente ligada às pessoas que protagonizam as situações que pesquiso. É com elas que sinto o compromisso mais forte no sentido de ser coerente com o que ouvi em campo, com o que disse para elas (e com elas) e com relação aos limites sobre o que pode ser representado e o que não pode. Hoje em dia essa é minha principal tensão em torno da produção e circulação de um texto: não participar de modo algum de processos que possam contribuir para exposições indevidas de questões relevantes para as pessoas reais com as quais estou em contato.
Isso não quer dizer, claro, que repercussões no circuito acadêmico estrito senso não possam ser intimidantes, mas acho que críticas e discordâncias simplesmente fazem parte do jogo. A honestidade intelectual deve nos levar inclusive a discordar de nós mesmas. Nada pior que achar que temos que defender com unhas e dentes tudo que escrevemos, ficando reféns do que pensamos há dez anos ou há um mês que seja.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sempre que possível, eu reviso bastante.
E, sim, mando para outras pessoas: parceiros de trabalho e reflexão de longa data, orientando/as, pesquisadore/as com temas próximos. Quanto mais velha fico, pra mais gente mando, sem nenhum constrangimento. Tem sido incrível receber as leituras críticas das pessoas.
E, como disse acima, já que volta e meia escrevo em parceria, o próprio processo de redação acaba sendo de mútua leitura e debate, o que ajuda demais a ter outra percepção do texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como respondi acima, agora ando escrevendo mais à mão para começar, o que tem sido muito gostoso. Só passo pro computador quando já tenho anotações ou esboços no caderninho. E, mesmo quando uso o computador do começo ao fim, fico fazendo esquemas e anotações à mão em incontáveis papéis de tamanho médio que vão se acumulando na mesa.
Na graduação e ao longo do primeiro ano de mestrado, eu usava máquina de escrever (!). Só no segundo ano do mestrado é que comprei um computador e me pareceu incrível aquilo de poder escrever e apagar, escrever e apagar. De algum modo, porém, o hábito de pensar bastante primeiro e só depois escrever meio de jorro – típico pra mim da máquina de escrever – ficou.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Tem aquela música que diz “as ideias estão no chão / você tropeça e acha a solução”. Pois é, tem algo de tropeço quando a ideia surge, parecendo vir do nada. Mas, assim como o tropeço, ela está lá basicamente porque você não está parado, e sim andando há um tempão…
Eu diria que a combinação entre fazer pesquisa e dar aula regularmente torna meio impossível não ter ideias, porque elas nada mais são do que diálogos com o que se está vendo, ouvindo, lendo, tentando expor e por aí vai. Isso também coloca em questão a singularidade das ideias que a gente tem. Numa troca em sala de aula, em reuniões de orientação, nas bancas de que se participa, nos textos dos amigos que a gente lê, nas situações de campo, enfim, por todo o tempo há uma infinidade de ideias circulando, sendo coproduzidas, deslocadas, desafiadas. Ou seja, a rotina é, por um lado, basicamente manter olhos e ouvidos abertos, sustentando a curiosidade e o cuidado que as trocas pedem. E, por outro, trabalhar essas informações e impressões, tornar-se íntimo delas, organizá-las à exaustão. Aí sim, dá pra tropeçar e achar a solução.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
O que mudou principalmente foi a gestão da expectativa e da ansiedade. Embora elas ainda estejam presentes, nem que seja pela dúvida fundamental que envolve qualquer esforço de expressão e de comunicação, cada vez mais sei que o que estou fazendo é parcial, transitório e faz parte de uma rede muito maior de reflexões, experiências, criticas e olhares. Resumindo: a palavra final não existe e, se alguém tem a ilusão de que ela é sua, que fique com essa ilusão. Cada texto é parte de muitas conversas, algumas delas conectadas diretamente às pessoas com as quais a gente se relaciona nos processos de pesquisa, aula, orientação e troca acadêmica e outras indiretamente, nos textos que nos marcam, nas outras pesquisas que nos inspiram, nas comparações que a gente quer construir. É preciso ser honesto nesse processo, extremamente honesto, reconhecendo essas relações tanto quanto possível, cuidando dos modos de narrar situações vividas e que implicam experiências de outras pessoas, mostrando nossos atravessamentos coletivos. Para além das etiquetas acadêmicas, isso ajuda a não se pensar – ou ao seu texto – como centro do mundo, qualquer mundinho que seja.
As teses produzem não raras vezes a sensação de um “tudo ou nada” pessoal e acadêmico que é bem irreal. Há uma ânsia de “dizer tudo” sobre algo, ou de dizer diferente, mas não diferente demais a ponto de não ser reconhecido, de ser validado e por aí vai. Se eu pudesse falar com aquela pessoa que eu era na escrita da tese, eu diria, antes de qualquer coisa, que a tese é sempre a tese possível e isto é muito bom (e, sim, meu querido orientador me falou exatamente isso inúmeras vezes, mas eu não conseguia ouvir de jeito nenhum, ai ai). Diria também que essa angústia fundamental que move uma tese não vai se resolver totalmente nela. A tese é uma forma de construir uma pergunta sobre essa angústia, assim como alguns caminhos para decompô-la e remontá-la, mas ela vai seguir e será refratada em novos temas, pesquisas e textos. “Não se afobe não que nada é pra já” – mesmo que os prazos sejam. O que se cumpre em quatro ou cinco anos de doutorado é só um pedaço do caminho. Bem importante e marcante, mas um pedaço. Ah, e diria pra fazer muita, mas muita ioga mesmo. Boa parte daquelas horas que passei congelada na frente da tela teriam sido melhor aproveitadas se estivesse fazendo ioga (ou natação ou caminhando ou qualquer exercício que me fizesse soltar o ar e renovar a energia).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de fazer algo mais centrado em histórias vividas ou imaginadas por pessoas em diferentes momentos de suas vidas. Algo que trabalhasse a partir dos processos reflexivos delas sobre trajetos, mudanças, decisões; sobre o tempo que passou, sobre aquilo que ficou ou sobre o que nunca aconteceu.
Já sobre a segunda parte da pergunta, diria que tenho lido ao longo dos anos coisas incríveis e não paro de me surpreender com escolhas estéticas, com enredos, com a capacidade dos livros destruírem nossos modos de ver e nos ofertarem outras possibilidades de enxergar, refletir e sentir. Prefiro então pensar que há muitos livros por aí dizendo de tudo um tanto. Eu é que ainda não os li.