Adilson José Moreira é mestre e doutor em direito pela Universidade de Harvard.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina diária estruturada. Acordo por volta das sete horas. Saio cedo para trabalhar dois dias da semana. Leciono e passo o resto da manhã na biblioteca lendo ou preparando aulas. Faço uma caminhada de uma ou duas horas nos outros dias. Vou para a biblioteca depois disso ou então fico em casa quando estou escrevendo e preciso consultar meus livros.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu produzo melhor pela manhã e à noite. Meu cérebro funciona a pleno vapor entre oito horas da noite às três da manhã. Bem, eu só começo a escrever depois de ter elaborado toda a argumentação do texto mentalmente. Passo horas e horas caminhando e formulando o texto na minha cabeça. Quase fui atropelado por estar inteiramente imerso nos meus pensamentos. Meus textos são “escritos” durante as minhas caminhadas. Eu sento e escrevo um esquema que tem início com as particularidades e implicações jurídicas de um determinado problema. Ele prossegue com os principais tópicos que serão tratados nas partes ou capítulos. Eu preciso estar em um local silencioso. Tomo um copo de água, tiro os sapatos, pego a minha coleção de 47 lapiseiras e começo a trabalhar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Isso depende do momento de elaboração do texto. Tem dias que não escrevo nada porque estou apenas lendo, fazendo fichamento ou preparando um esquema do que eu pretendo escrever. Passo o dia inteiro escrevendo quando tudo isso já foi feito. Preparo as minhas aulas durante a semana pela manhã e escrevo à noite e nos finais de semana. Eu dedico semestres ou anos à elaboração de um projeto. Faço leituras sobre outros assuntos, mas a maior parte do meu tempo é dedicada à leitura de obras relativas ao que estou escrevendo. Estabeleço alguns objetivos que poderão ser alcançados em um dia ou em uma semana. Tudo depende da complexidade do argumento que estou desenvolvendo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não começo a escrever a partir de notas. Começo a escrever a partir de um esquema detalhado de todos os tópicos que serão tratados em cada uma das partes do texto. Esse esquema é produto de toda a pesquisa bibliográfica anterior à elaboração do artigo ou livro. Não tenho problemas com a escrita. Na verdade, ela é bem rápida. Gasto a maior parte do tempo elaborando as ideias mentalmente, e isso depois de longas discussões com colegas sobre o assunto. Os fichamentos dos livros e decisões judiciais não são a fonte principal da minha escrita; ao contrário de muitos autores brasileiros, meus textos não são meras paráfrases dos textos de outros autores. Sempre quero estar certo que sou eu, Adilson, que está falando. Eu estabeleço conversas com os autores.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação acontece quando os argumentos ainda não estão suficientemente claros na minha mente. Tenho colhido material para um pequeno livro sobre racismo recreativo ao longo dos últimos três anos. Já escrevi dois livros nesse período, mas só agora consegui terminar esse projeto porque a argumentação ainda não estava clara na minha cabeça. Aliás, não é uma “falta de clareza”, mas sim uma demora em sentar e organizar todos os tópicos do assunto. É uma pesquisa interdisciplinar: esse livro sobre racismo recreativo toca temas jurídicos, sociológicos, filosóficos, psicanalíticos. Há toda uma filosofia do humor com a qual eu não estava familiarizado.
Penso que o medo de não corresponder às expectativas decorre de problemas de caráter metodológico. Leciono metodologia científica e sei quais são os obstáculos que as pessoas enfrentam. A ansiedade com a escrita decorre basicamente da falta de planejamento. A escrita não me causa ansiedade alguma. É, para mim, um momento de grande tranquilidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Creio que todos os textos passam por um processo de gestação. Estou trabalhando em dois artigos no momento. Um faz uma crítica racial do debate sobre uniões entre pessoas do mesmo sexo e o outro uma crítica sexual da discussão sobre ações afirmativas. Apresentei as ideias centrais desses textos em um evento no qual participei no início do ano passado. Anotei as sugestões feitas pelos outros membros da mesa e pela audiência presente. Escrevi grande parte dele e os deixei de lado. Li mais artigos e livros sobre o assunto e voltei a trabalhar neles recentemente. Sinto que estão suficientemente amadurecidos para serem submetidos aos meus colegas.
Tenho longas conversas sobre meus trabalhos com meus colegas e alunos. Coordeno um grupo de leitura com os professores da faculdade de direito na qual leciono. Também coordeno um grupo de estudos. Esse diálogo é muito importante. As pessoas no Brasil sofrem com a escrita porque não compartilham seus trabalhos, porque não discutem suas ideias. Eu as discuto com pessoas que são especialistas e também com aquelas que não têm conhecimento sobre o assunto sobre o qual estou escrevendo. A escrita só acontece depois que já debati o tema e o esquema da argumentação que pretendo desenvolver com um número significativo de colegas. Não produzo nada sozinho. A produção científica é um parte de um diálogo que está em andamento. Essa é uma coisa boa que aprendi com os norte-americanos: a escrita é um projeto coletivo. Observo uma grande mediocridade na produção jurídica do país e isso se deve ao fato de que as pessoas não têm e não procuram interlocutores. Bem, isso não é culpa delas. Não somos educados dessa forma. Isso não faz parte de nossa cultura acadêmica.
Eu incluo as sugestões dos meus interlocutores e só depois envio para publicação, o que acontecerá depois de várias revisões. Levarei em consideração a clareza da proposição do problema, da hipótese, do marco teórico e da argumentação. Também observarei se o material de análise realmente oferece elementos suficientes para sustentar o que estou dizendo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo à mão. Leio o que escrevi e depois passo para o computador, o que é um momento de revisão do texto. Fico mais concentrado quando estou escrevendo à mão, meus textos escritos dessa forma são sempre muito melhores.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Bem, sou um jurista e escrevo sobre temas referentes à realidade social do nosso país. Estabeleço tópicos sobre os quais pesquisarei durante um determinado período de tempo. Sou especialista em direito de minorias e procuro abordar uma dimensão dos problemas enfrentados por esses grupos em cada um dos meus trabalhos. Considero que não tenho mais contribuições significativas a dar para o debate sobre os direitos de minorias sexuais no momento. Estou interessado no racismo no judiciário. Aliás, acabo de terminar um artigo sobre criminologia. Esse será o tema da minha produção durante os próximos anos.
O jurista não trabalha com inspirações no sentido comum do termo. Nossa produção não é movida pela atuação das musas, embora alguns juristas escrevam com a mesma elegância que muitos poetas. Não tenho o mesmo espaço para criatividade que um poeta ou um prosador tem. De qualquer forma, sempre procuro utilizar metodologias de pesquisa que permitam abordar os temas de minha pesquisa de forma inovadora. É o caso do meu texto sobre epistemologia racial chamado “Pensando como um negro”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Minha experiência acadêmica nos EUA teve um impacto tremendo na forma como escrevo. Meus textos são bem mais objetivos e rigorosos. Escrevo para o público em geral e não apenas para o meio jurídico. Sigo à risca o modelo norte-americano e creio que isso fez com que meu trabalho se tornasse muito melhor do que antes. O que eu diria para mim mesmo se pudesse voltar à escrita da minha tese? Planejamento, planejamento, planejamento.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Bem, ainda quero escrever um livro sobre meu bisavô João Pereira da Gama. Ele era um homem negro que lutou na Guerra do Paraguai. Seria ótimo escrever uma obra que faça uma relação direta entre a história da minha família e um dos episódios mais trágicos da história do Brasil. Quero ler um livro sobre o envolvimento das mulheres negras na história dos movimentos políticos do nosso país.