Adérito Schneider é professor de Cinema e Audiovisual do Instituto Federal de Goiás.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Paradoxalmente, sou uma pessoa que odeia e adora rotina. Preciso de rotina tanto quanto da quebra da rotina. Felizmente, há anos tenho tido empregos que ou me dão certa liberdade de rotina ou têm rotinas que variam de períodos em períodos. Sou jornalista de formação. Trabalhei muitos anos como jornalista, como roteirista de televisão, eventualmente executei alguns trabalhos como cineasta ou realizador audiovisual ou em outras áreas artísticas… Depois, veio a formação acadêmica e as atividades de pesquisa acadêmica em cinema… Em seguida, a sala de aula… Atualmente, sou professor de Cinema e Audiovisual no Instituto Federal de Goiás (IFG) – Campus Cidade de Goiás. Então, existe uma rotina que é determinada pelos horários de aula, reuniões e tudo mais, mas que muda semestralmente. E, da mesma forma, há um tanto de flexibilidade com atividades que executo em casa, com alguma liberdade de rotina. Acho isso bom, pois, como disse anteriormente, me garante uma rotina, mas também certa liberdade. De qualquer forma, eu tenho uma rotina matinal. Meu dia só começa depois do café da manhã e de um banho. Aliás, não costumo ter um bom humor matinal, ao menos na primeira hora após acordar. Então, eu preciso de um pouco de tempo para desjejum e banho sem pressa. Prefiro acordar mais cedo a fazer essas duas coisas correndo. Após isso, parto para a agenda do dia, que pode começar com sala de aula ou outras atividades. Quando estou sozinho e não dou aula ou não entro em sala muito cedo, gosto de tomar café da manhã assistindo a algum episódio de desenho animado. Quando posso tomar café da manhã com minha família, a gente aproveita para conversar – o que não acontece sempre, pois moramos em Goiânia, mas eu trabalho em Goiás (Cidade de Goiás).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Desde a adolescência, eu gosto da noite. Sempre me senti bem trabalhando de noite, escrevendo de noite. Não sei se sou mesmo um animal noturno ou se isso é porque sempre morei em cidades muito quentes, de muito calor. No entanto, desde que terminei a faculdade de jornalismo, eu nunca mais tive condições de usar a noite para horário de escrita, pois pagar as contas sempre foi prioridade e, desde então, meus trabalhos me exigem uma rotina laboral diurna. Houve uma época em que trabalhei nos três turnos, mas, felizmente, essa não é mais minha realidade. Então, estou adaptado a essa rotina de trabalho diurno mesmo, especialmente depois de casado. Numa vida em família, todo mundo precisa se adaptar à rotina das outras pessoas da casa – o que significa principalmente se adaptar à rotina e horários de uma criança, quando você tem filhos (e eu tenho um enteado). Portanto, eu diria que hoje, mais importante do que a noite, é uma dádiva você ter um dia (luxo) ou ao menos um período completo livre para poder se dedicar integralmente à escrita com alguma tranquilidade. Eu não funciono bem escrevendo em intervalos (entre uma aula e outra; entre o horário de almoço e o horário de buscar menino no inglês…). Nesses intervalos, prefiro ler literatura ou notícias. Então, é isso: ter uma manhã ou tarde inteira livre é muito bom. Ter um dia inteiro livre é fantástico. Mais do que isso, é um pequeno prêmio de loteria. E eu não tenho ritual algum de preparação para escrita. A escrita (jornalística, acadêmica ou literária, esta última sendo a mais rara) é para mim trabalho. Então, o ritual é apenas o ritual da rotina de trabalho mesmo. E, para o bem ou para o mal, a escrita está naturalizada em minha vida.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Bom, isso depende muito de que tipo de escrita estamos falando. Hoje, posso dizer que sou mais professor do que qualquer outra coisa. É a atividade que mais tem me “tomado” o tempo (preparar aulas, corrigir trabalhos, preencher diários, participar de reuniões, lidar com uma burocracia infinita…). É a minha realidade no momento e me parece que é neste lugar que vou ficar por pelo menos alguns anos, caso ainda exista isso que chamamos de educação neste país – que, tradicionalmente, não valoriza de fato a educação (“a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto” etc), mas que, comumente, passa por governos que levam essa área de mal à pior, como agora. Na época em que trabalhava principalmente como jornalista e/ou como roteirista de televisão, eu escrevia diariamente, pois o meu trabalho dependia sobretudo da escrita, era a escrita. Nos períodos de mestrado e doutorado, realizados entre os anos de 2013 e 2019, a prática da escrita acadêmica dependia mais das condições e dos prazos mesmo. Basicamente, eu escrevia quando dava. Entretanto, nesse período, houve momentos em que eu escrevi nas condições ideais, ou seja, com bolsa (no mestrado) e com um semestre de licença remunerada (na fase final do doutorado) e, portanto, podendo me dedicar “integralmente” à escrita da dissertação ou tese. Nesses momentos ideais, eu sempre preferi escrever em períodos concentrados. De maneira geral, eu prefiro, por exemplo, escrever por cinco horas seguidas apenas uma vez na semana do que ter uma hora por dia para me dedicar à escrita durante cinco dias da semana. Então, houve dias em que eu começava a escrever lá pelas sete ou oito horas da manhã e só parava no final da tarde ou mesmo de noite. Mas, às vezes, eu escrevia algumas páginas ou por algumas horas e aquilo me bastava, no dia. No caso de uma pesquisa acadêmica de fôlego como dissertação ou mestrado, o (minimamente) ideal é que os pesquisadores tenham ao menos um semestre para dedicação exclusiva à escrita. Por isso, bolsas e licenças remuneradas são essenciais, como política pública. Textos acadêmicos são textos que exigem dedicação integral, pois quase sempre é a própria escrita, a própria pesquisa, o próprio texto que dita o ritmo. E é um momento em que você precisa manter uma certa constância no embate com o texto, sem perder o contato com o texto, caso contrário você quebra uma linha de raciocínio, perde o ritmo, acaba desperdiçando muito tempo com releitura quando volta ao texto e precisa tomar pé da situação, retomar uma linha de raciocínio (muitas vezes, bruscamente interrompida, quando você não está escrevendo nas condições minimamente ideais). Nessa época de mestrado e doutorado, eu percebi que um dia que rende muito, com escrita “garrada” manhã, tarde e noite, é tão importante quanto um dia “livre”, para você arejar a cabeça, descansar, deixar as ideias decantarem um pouco. Nos meus tempos de jornalista e roteirista, eu não tinha muita dificuldade com escrita. Eu não “travava”. Aquilo estava tão naturalizado em minha vida, em minha rotina, que dificilmente eu tinha essas coisas de “bloqueio”. Sempre saía, até mesmo porque, nesses trabalhos, os prazos são curtos, quase sempre diários. Daí, não tem escapatória: o texto tem que sair, nem que seja o feijão com arroz razoavelmente bem feito. Mas a escrita acadêmica é completamente diferente. Não é só produção de conteúdo, é produção de conhecimento, é ciência. Esta lógica tão pragmática não funciona na academia. Por outro lado, eu percebo que a minha experiência como jornalista e roteirista, a forma como a escrita se naturalizou na minha vida como ferramenta de trabalho, me ajudou bastante na vida acadêmica, pois, de certa forma, eu tenho facilidade para escrever. E, aqui, não estou falando da qualidade do conteúdo, mas a parte operacional disso, propriamente. Eu não sou um pesquisador brilhante, minhas dissertações e tese e meus artigos não trazem nada de muito novo, mas eu sempre fui elogiado pela qualidade do texto e tenho certeza de que isso vem da minha vida profissional mesmo. A objetividade do texto jornalístico e do roteiro e a relação pragmática com a escrita, além da própria rotina de escrita, me fez não ter medo da tela em branco durante minha pesquisa acadêmica. Agora, em relação à escrita literária, eu nem posso falar, pois, infelizmente, não tenho muita prática nisso. Escrevi alguns contos literários e alguns roteiros de ficção (curta-metragem), mas tudo muito esporádico, sem muito compromisso, nada muito sistematizado em termos de projeto literário ou de projeto de escrita. E eu nunca escrevi um roteiro de ficção longa-metragem ou um romance. Então, nem sei como é lidar com isso (espero que “ainda”). Sinto vontade e necessidade. Espero que agora, com o fim do doutorado, eu consiga colocar alguns planos em prática.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
No caso da escrita jornalística ou do roteiro, estrutura e rotina de trabalho estão naturalizadas dentro de uma realidade pragmática mesmo. Talvez eu possa até estar “enferrujado”, mas não sofro com isso. É como andar de bicicleta. Normalmente, anoto algumas palavras-chave ou ideias centrais e pronto, mando bala. No caso da escrita acadêmica, minha dificuldade é maior com a pesquisa (estudo) do que com a escrita. Tenho dificuldade com textos mais densos e pesados e, por vezes, acabo fugindo disso – o que é um grande erro, claro. Em outros momentos, me faço a pergunta: por que vou passar isso para o papel, se tanta gente melhor do que eu já fez ou está fazendo isso com muito mais propriedade? Isso me trava. E, honestamente, eu sou particularmente contra essa lógica acadêmica que praticamente nos obriga a escrever tantos artigos, apresentá-los em eventos acadêmicos, publicá-los… Sempre tenho a sensação de que há mais quantidade do que qualidade. E não acho que a intenção (pensando em políticas públicas) seja a de forçar uma prática de escrita e publicação como incentivo à pesquisa. Acho que é uma política de geração de dados quantitativos mesmo, de estatística, dentro dessa lógica perversa da meritocracia, das pontuações, dos rankings. É um sistema muito perverso. A academia é muito cruel, nesse sentido. Tanto que é comum ver acadêmico criticando a meritocracia ou o neoliberalismo sem se dar conta (ou fingindo não se dar conta) de que está enterrado até o pescoço num sistema altamente competitivo e desgastante, que exige alta produtividade, sobrecarga de trabalho – e, muitas vezes, sem oferecer as condições minimamente satisfatórias, desde infraestrutura e tempo até remuneração compatível. E eu, particularmente, não tenho orgulho da maioria dos artigos que escrevi, apresentei em eventos acadêmicos, publiquei. Fiz por obrigação mesmo, porque era exigência do Programa de Pós-Graduação em que eu estava matriculado, porque precisava contar “pontos” no meu currículo Lattes. E isto até gerou um bloqueio mesmo. Eu nem lembro quando foi a última vez que escrevi ou publiquei um artigo (teria que olhar no meu Lattes). E agora preciso lidar com isso na minha vida como acadêmico sendo professor-pesquisador e confesso que não está sendo uma coisa fácil. Há pesquisadores publicando artigos maravilhosos, mas acho que isso deveria acontecer por demanda espontânea. Eu acho que dissertação e tese são obrigações, devem ser obrigatórios mesmo, pois você precisa “prestar contas” da sua pesquisa, claro, provar que está apto a carregar esses títulos (de mestre e doutor). Eu não acho que minha dissertação e minha tese são brilhantes, mas eu me orgulho delas, pois são “provas concretas” de um percurso, de uma trajetória, de um amadurecimento, de uma jornada como pesquisador e como acadêmico que eu acho que ainda está no início e que pode gerar bons frutos, futuramente. Eu não aspiro à genialidade, mas eu me considero uma pessoa ética e eu levo a sério minhas pesquisas. Neste sentido, sou uma pessoa séria. Por isso, escrever e publicar artigos apenas por “obrigação” me incomoda tanto: me sinto meio picareta e, ao mesmo tempo, agindo por coação. E, ainda por cima, tem uma questão muito importante que é a do trabalho, da profissão mesmo. No meu caso (e dos meus colegas), é notório que o governo não nos oferece a infraestrutura adequada, nos sobrecarrega com disciplinas e carga horária de sala de aula e ainda nos cobra extensão e pesquisa, sem falar de outras demandas pedagógicas ou de gestão. É um absurdo. No caso da escrita literária, que seria aqui a minha terceira “via” de escrita, eu não posso falar muito porque o único texto literário que eu publiquei foi o conto “Sete polegadas”, da antologia “Cidade sombria”, que organizei e lancei em 2018. Eu fiz o conto para atender a essa demanda do projeto. Na verdade, foi um processo meio curioso. Eu tinha algumas ideias em mente e comecei a escrever o conto sem um “projeto” muito definido. Sentei um dia e escrevi sem parar, deixando a história e o personagem me levarem até onde deu (me perdendo pelas ruas de Goiânia); uma coisa bem amadora mesmo, mas de um amadorismo consciente, pois eu já tinha uma bagagem considerável de estudos de roteiro cinematográfico de ficção e tudo mais. Depois que a história “travou”, aí sim eu fui planejar o enredo, racionalizar a estrutura do conto a partir do que eu tinha escrito. Então, eu sentei e escrevi a segunda parte do conto até finalizá-lo (mas não me lembro exatamente onde é este “metade”, onde eu travei; onde é o Lado A e o Lado B do conto). Em seguida, parti para revisões e edições do texto. Depois de várias reescritas, passei o conto para a Fernanda (Marra, esposa) e ela fez várias críticas, apontamentos, sugestões. Fui lapidando o texto até chegar na versão publicada. Acho que a versão que foi para o livro foi o décimo segundo tratamento. E, claro, depois de publicado eu achei um monte de coisas que considero “erro” ou que mudaria. Como não tenho rotina ou prática de escrita literária, o pouco que escrevi de literatura foi assim mesmo, “na tora”. Quando uma ideia bate muito forte a ponto de eu não dar conta de seguir a rotina sem parar tudo e colocá-la no papel, simplesmente sento e escrevo o conto. Depois, vou lapidando, editando, reescrevendo, aprimorando… Ou simplesmente deixo jogado na gaveta, com uma etiqueta de “incompleto”. E, obviamente, muita coisa eu simplesmente abandonei, pois na ocasião parecia importante ou uma boa ideia, mas, pouco tempo depois, perdeu completamente o sentido. Então, na verdade, de escrita literária, o que eu tenho é isto: um conto publicado, pouquíssimos contos inéditos, outros incompletos, muita coisa abandonada e muitas, muitas ideias anotadas e jogadas no fundo da gaveta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
No caso da escrita jornalística ou nos roteiros de televisão (eu trabalhava com roteiro de programas televisivos e documentários, ou seja, não-ficção), isso de “travar” praticamente não rolava. Ao menos o feijão com arroz saía. Eu acho que não chego a ser um cara muito metódico, perfeccionista, rigorosamente disciplinado, mas eu sou bastante organizado e levo a sério meu trabalho. Não cumprir prazos é intolerável, inadmissível. Então, no caso do texto jornalístico, a relação sempre foi muito pragmática mesmo. No caso da escrita acadêmica, eu sempre lido com isso: procrastinação, ansiedade, medo de não corresponder às expectativas… Eu me sinto inseguro mesmo. No entanto, como eu disse, sou um cara organizado e não me permito descumprir prazos. Então, ainda que muitas vezes aos trancos e barrancos, a coisa sai. Foi assim na dissertação e foi assim na tese. Artigos eu tenho como política fazer o mínimo possível, por questões pessoais e pelas questões anteriormente apresentadas de ser contra essa vida muito calcada no Lattes. No caso da escrita literária, é algo que estou precisando me redescobrir. Escrever literatura é meu sonho de infância, mas eu acabei postergando. Eu escrevia literatura quase que diariamente quando era criança e hoje é raridade eu me dedicar à escrita literária. Acho que tanto por uma questão pragmática mesmo (como eu disse, pagar contas sempre foi uma prioridade, pois vim de uma família de classe média baixa), quanto por medo ou insegurança. Eu tenho anos e anos de anotações e ideias e “projetos” no fundo da gaveta. Hoje, pela idade, após a conclusão do doutorado e, principalmente, pela experiência com o projeto “Cidade sombria”, eu sinto que cheguei num momento de maturidade para lidar com essa escrita literária. Estou trabalhando para isso e espero que consiga avançar nesta questão.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
No caso da escrita jornalística ou do roteiro de televisão, as coisas rolavam dentro de um fluxo de trabalho mesmo. No jornalismo, temos a figura do editor – que pode ser bom ou não, e eventualmente rola tretas (editores podem tanto melhorar seu texto quanto cagar neles). Mas com as redações jornalísticas cada vez mais enxutas e com os salários cada vez mais baixos, jornalismo tem cada vez mais deixado de ser um lugar de escrita elaborada. Vivemos uma “morte” tanto da escrita quanto do jornalismo (ao menos se pensarmos sob um olhar mais “romântico”), com algumas felizes exceções (tanto na grande mídia, quanto em veículos independentes, como a Agência Pública e outros). No caso da escrita acadêmica, a relação de “feedback” costuma ser mais com os orientadores mesmo (no meu caso, Ana Lúcia Vilela, no mestrado, e Cristiano Arrais, no doutorado, ambos professores da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia), mas também com as bancas (de qualificação e defesa), os colegas nos eventos acadêmicos, os pareceristas das publicações acadêmicas etc. E, no caso de minhas dissertação e tese, contratei serviços de revisores, tanto para revisão gramatical quanto formatação às normas da ABNT. Sei apenas o básico das normas da ABNT e tenho interesse zero em dominar isso. No caso da escrita literária, praticamente tudo (do pouco) que eu escrevi nos últimos anos (de maneira geral, meus textos de “juventude” foram para o lixo) está guardado na gaveta, precisando passar por revisões e edições. No caso do “Sete polegadas”, que, como eu disse, é até então minha única publicação literária, eu tive a leitura muito atenta da Fernanda. A Fernanda é a melhor leitora que eu poderia ter. Ela tem formação acadêmica em Literatura, prática de escrita (literária, acadêmica…), é uma excelente leitora de literatura e é bastante crítica. Então, ter uma leitora como a Fernanda é maravilhoso para um aspirante a escritor literário, como é meu caso. Assim, se e quando (espero que “quando”, e não “se”) eu conseguir retomar a prática de escrita literária, acredito que o método será este: transpirar em cima do texto (escrever, editar, revisar….) e, quando o considerar “finalizado”, passar para a Fernanda e, depois da leitura e das críticas dela, voltar a transpirar em cima do texto, até considerá-lo pronto para publicação. Mas pode ser que sobre para alguns amigos também. Veremos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sem minha agenda (física) e sem meu notebook, eu sou imprestável. Me sinto nu. Eu lido bem com tecnologias (para a escrita), mas não sou um cara que sente necessidade de estar antenado às novidades ou modismos tecnológicos. Sou de uma geração que viveu bem a transição do analógico para o digital (nasci em 1987). Na infância, cheguei a escrever bastante à mão e cheguei a usar máquina datilográfica (havia uma em casa). No entanto, não tenho nada de saudosismo “vintage” quanto a isso. Escrevo no Word desde (pelo menos) os doze anos de idade e depois aprendi a usar outras ferramentas, como o Celtx, para escrita de roteiro, ou outros softwares que eventualmente precisei usar por necessidades práticas, por conta das empresas em que trabalhei. Rotineiramente, uso Word mesmo. Só faço anotações no papel quando não estou com o computador facilmente acessível. Tenho aprendido a usar o gravador de voz do celular, mas eu ainda me sinto meio idiota falando sozinho. Prefiro andar com bloquinhos de anotações ou puxar qualquer papel disponível e rabiscar mesmo. Apesar de tudo, esta relação física com a escrita ainda é importante para mim. Tenho Kindle, mas prefiro ler o livro físico, de papel. Gosto de ter lápis e canetas, papéis e blocos de anotações sempre à mão. Deve ser por isso que não abandono a agenda física. Na escrita, propriamente, é sempre direto no computador. Acho até que perdi a prática de escrever à mão. Minha letra não é bonita e sinto dor na mão após alguns minutos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não tenho um conjunto de hábitos para me manter criativo, mas faz parte da minha rotina anotar ideias. Como disse anteriormente, eu tenho anos e anos de ideias acumuladas, mas são coisas que vem da vida mesmo: experiências, rotina, conversas, sonhos, filmes, séries televisivas, leituras literárias, quadrinhos, notícias de jornal, estudos, imaginação, videogame, música, insights, visita a museus…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sem sombras de dúvidas, o que mudou foi uma profissionalização. Eu entrei na faculdade de jornalismo com dezessete anos e, mesmo antes de me formar (aos vinte e um), posso dizer que sou um “operário” da escrita. Há muitos anos é a escrita que paga minhas contas, é minha principal fonte de renda. Com prós e contras, de uma forma ou de outra, eu vivo do que eu escrevo. E, assim, inevitavelmente, minha escrita e meu processo de escrita foram muito moldados por esta relação pragmática com a escrita. Acho que minha carreira como jornalista e como roteirista de televisão acabou moldando uma escrita mais objetiva, pragmática, mas, dentro disso, acho que eu consigo perceber (e espero conseguir amadurecer) um estilo, uma identidade. Eu não sou um cara de texto “poético”, sofisticado. Meu texto é mais “cru” mesmo. E não necessariamente isso é um defeito. Acho que bons textos (literários, inclusive) foram escritos dessa forma. Acho que o feijão com arroz bem feito tem seus méritos também. Então, acho que perceber isso e aprender a lidar com isso foi muito importante para mim. Como eu disse, eu não sou um escritor de literatura, mas sonho em escrever literatura desde a infância e arrisco dizer que cheguei a um momento da vida em que me sinto maduro e pronto para isso. É o que quero e pretendo fazer. Então, acho que esse percurso foi ótimo. Acho que, daqui para a frente, pensar em um “projeto” literário, em uma “identidade” como autor, vai ser muito lidar com essa característica de um texto e de uma escrita moldados por essa relação laboral com a palavra. Vou precisar lidar com as potencialidades e também com as limitações disso. No entanto, acho que o mais importante desse percurso é que eu amadureci como leitor. Por ser de uma família de classe média baixa e, ainda por cima, ter sido criado no interior (Barra do Garças), eu tenho muitos “buracos” na minha formação como leitor, pensando nos clássicos (do cânone Ocidental, mas também da literatura brasileira). Nos últimos anos, por questões pessoais, tenho me dedicado mais à literatura goiana (na verdade, isso foi mais na época do projeto “Cidade sombria”) e, especialmente, à literatura brasileira contemporânea, por sentir uma necessidade de entender o que está rolando agora, neste momento. Mas, enfim, eu tenho conseguido manter uma regularidade de leitura de literatura (prosa) e acho que isso tem me ajudado muito a pensar em que tipo de escritor eu desejo ser, a pensar uma escrita, uma identidade, um projeto literário. E, finalizando, sobre essa ideia de voltar a mim mesmo se pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, eu estou tranquilo com isso. Primeiramente, eu não me considero um escritor de literatura, então, como tenho apenas um conto publicado, eu não preciso lidar com este “eu escritor do passado”. Eu simplesmente joguei no lixo meus textos juvenis e segui a vida (o que sobrou, está na casa da minha mãe e é memória de mãe, acervo de mãe). Por outro lado, eu lido relativamente bem com estes “buracos” na minha trajetória como leitor. Naturalmente, eu vivo essa ansiedade de listas e listas que vou fazendo e não consigo “vencer”: clássicos da literatura Ocidental; clássicos da literatura brasileira; literatura latino-americana; literatura em língua portuguesa (Portugal e países africanos lusófonos); literatura brasileira contemporânea… e outras coisas mais. Além disso, sinto que tenho deficiência em estudos de gramática, linguística, crítica literária, teoria literária… Mas, ao mesmo tempo, eu tenho consciência (e, arrisco dizer, até um certo orgulho) da minha trajetória, apesar das limitações (ou justamente por conta delas). Eu sou um goiano-mato-grossense, vim de uma família de classe média baixa, e meus sonhos (literários, inclusive) são tão ambiciosos quanto pé no chão. Eu escrevo antes de tudo porque isso é primordial para minha sobrevivência (me dá prazer, paga minhas contas…). Sou leitor-escritor porque ler e escrever são duas das coisas que mais gosto na vida. Então, sei que é uma jornada de degrau em degrau, tijolinho sobre tijolinho. Estou tranquilo com isso. Quero conseguir escrever e publicar literatura um dia? Claro que quero, mas vai rolar quando rolar. E vai ser do meu jeito. E sem muitas ambições (mas, espero, bom em alguma medida, com algum mérito).
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho diversos projetos que gostaria de fazer, mas ainda não comecei. Acho que estar aqui respondendo a esta entrevista marca um momento de transição na minha vida nesta relação com a escrita (especialmente com a escrita literária). De certa forma, estou me reorientando a partir disso que é um sonho de criança (depois que eu entendi que não seria um detetive, decidi que seria um escritor). Inclusive, é bom ressaltar que seu pedido de entrevista me pegou de surpresa. Quando eu penso em “escritor”, penso, antes e acima de tudo, no autor literário. Depois, eu entendi que o projeto “Como Eu Escrevo” abre espaço também para escritores acadêmicos e tudo mais. Então, este questionário foi bom para eu pensar melhor na minha relação com a escrita, coisa que venho fazendo há um bom tempo (talvez, há anos). E foi bom entender melhor que eu sou um escritor, sim. Jornalismo, roteiro para cinema ou televisão (ficção ou não), escrita acadêmica, escrita literária, “textão” em Facebook, projetos para editais e outras burocracias… é tudo escrita. Aliás, eu até demorei bastante para responder, né? Você me disse que não tinha prazo e eu acabei deixando quase seis meses se passarem. Mas é que sinto que estou numa fase de transição e reorientação mesmo. Fazer mestrado e doutorado significou muita coisa na minha vida. Meu sonho não é a vida acadêmica, a carreira acadêmica, mas chegou um momento em minha vida em que eu vi que jornalismo não estava dando jogo e que tentar viver de arte (cinema, literatura…) era meio inviável, ainda mais em Goiânia, tanto por minhas limitações quanto por estar inserido num contexto meio viciado e muito dependente de editais públicos e coisas do tipo (e, portanto, constantemente refém dos “humores” e da situação política e econômica da ocasião, além de outras particularidades do meio). Dessa forma, passei os últimos sete anos da minha vida colocando a formação acadêmica e a carreira profissional como professor-pesquisador como uma das prioridades, por razões puramente pragmáticas. Então, como terminei o doutorado em julho deste ano (2019) – felizmente, sendo um professor concursado de dedicação exclusiva numa instituição federal (o que, infelizmente, pode se tornar cada vez mais raro neste país) –, estou ainda me adaptando a tudo isso, me reorientando. E sinto que o projeto “Cidade sombria” foi um marco em minha vida (não apenas por ter sido a minha primeira publicação e por ter me obrigado a lidar com a minha escrita literária, mas por ser um projeto pessoal e que me colocou em contato direto com vários textos, autores, editores; que me fez entender um pouco melhor as etapas de produção de um livro, tomar mais pé da realidade do mercado editorial e literário…) e sinto que hoje estou pronto para me arriscar neste rolê.
Que livro eu gostaria de ler e que ainda não existe? Honestamente, lidar com o que de fato existe já é angustiante o suficiente. Além de todos os “clássicos” e de muita coisa boa que já foi publicado, existem muitos autores bons e muitos livros bons sendo publicados todos os dias. É até difícil de acompanhar. Mesmo em se tratando de literatura brasileira contemporânea, eu não consigo ler tudo que gostaria de estar lendo. Acho que vivemos um momento excelente da literatura. Os gênios estão mortos e o espaço está livre, aberto. Não para o surgimento de novos gênios, pois seria meio anacrônico, mas para uma galera massa escrever, publicar, se ler, se conhecer… Isto está rolando faz um bom tempo e está bacana de acompanhar. Então, eu espero conseguir dominar meus medos e minhas inseguranças, organizar a minha rotina e me jogar nisso também. Acho que o “Cidade sombria” foi o começo disso e eu tenho a sorte imensa de ser casado com uma pessoa maravilhosa que é a Fernanda, que lançou recentemente seu livro de poesia “taipografia” (o primeiro em alguns anos, desde sua estreia, aos quinze anos de idade) e que está com outras obras prontas, a serem lançadas pela editora goianiense martelo casa editorial, do Miguel Jubé, com quem ela tem contrato. Então, estamos vivendo isso como casal e está sendo legal. E eu espero que os livros “Cidade sombria” e “taipografia” sejam apenas o começo de uma nova fase de nossas vidas, pois, em alguma medida, a Fernanda e eu temos uma trajetória muito parecida de origem de classe média baixa e de necessidade de colocar questões pragmáticas e urgentes na frente de sonhos e aspirações artísticas. E tempo é um bem muito caro neste mundo capitalista em que vivemos.