Aderaldo Luciano é poeta, ensaísta e cantador.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo sempre cedo, mas não me levanto cedo. Cedo que eu digo é seis horas, seis e meia. É relativa essa hora. O homem lá no Brasil de dentro acorda às três, três e meia. Mas acordo por aí, essa é minha madrugada. Olho a hora no celular, vejo se tem alguma mensagem no WhatsApp. Em dois minutos, no máximo, abandono esse capricho da atualidade fugaz e ligo o rádio, minha mais antiga paixão. Foi o rádio quem me trouxe tudo de bom que a vida ofertou-me. Sonhei com o rádio, chorei com o rádio, gargalhei com o rádio, surpreendi-me. A literatura, a música, a palavra escrita e falada, a sonoplastia dos dias, a audição das noites e o olho fantástico foram guiados por ele e, por ele, entraram em mim e amadureceram minha alma. Também pelo rádio compreendi as distâncias, a saudade. Pois bem, como dizia, ligo o rádio, escuto o noticiário, sei do trânsito e do tempo: o trem lotado, alguém que perdeu-se na ida ao trabalho, a chuva fina, a ventania, ressaca no mar, o sol que não pediu para tomar as ruas.
Penso nesses caras que dizem que acordam cedíssimo e vão fazer suas caminhadas, pedalar, levantar pesos nas academias, tomar seus cereais, comer seu iogurte e morrer de repente. Acho que esses caras, sobretudo os dos palacetes, não sabem o que é acordar com uma ereção enorme. É minha rotina, mas também não acordo mais assim, acordo preocupado com a conta da luz e da água e se não cortaram minha internet. É assim que acordo. Vou na cozinha e tomo meu remédio pra pressão e acho que esse remédio tem uma ação direta naquela ereção que não tenho mais quando acordo. Mas tenho que tomá-lo, senão é caixão. Se tiver gás no fogão, preparo meu café, todos os dias, religiosamente: um suco, uma vitamina natural: uma banana, um pedaço de mamão, um limão espremido, cubinhos de gengibre, uma colher de sopa de chia e outra de farinha de linhaça, às vezes vai uma folha de couve, meio pepino, folhinhas de salsa e um pedaço da parte gelatinosa da babosa. Isso tudo com o rádio ligado, contando a merda do cotidiano nacional. Isso é um problema do rádio, não do Brasil. Não é possível que não haja nada de bom, nada que não interesse a não ser a barbárie.
Café na cafeteira italiana que ganhei de presente, aliás a maioria do que tenho ganhei de presente. Menos cuecas, que não uso. Peneiro a massa de tapioca, pego o ovo (não é o testículo, tá?), margarina na frigideira, faço os três ao mesmo tempo: a tapioca, o ovo e o café (em recipientes diferentes, né, rapaziada da interrogação?). Tenho dois gatos, não preciso dizer que já dei comida e água pra eles: Jojoca e Bela. O rádio ligado, ainda. Tomo meu café e, da cozinha, passo ao meu ateliê de trabalho. Aqui, nesse trono, é onde escrevo e penso na poeira que cobre tudo. Aqui tenho livros, raramente os folheio, mas também tenho uma zabumba, uma alfaia, dois pandeiros, um violão, uma viola nordestina, uma rabeca quebrada e vários papéis de jogos da mega-sena, que nunca jogo. Então, essa é minha rotina. Penso nos meus filhos, estão em Campina Grande, na Paraíba. A essa altura, Rosa, minha filha mais nova que mora comigo, já partiu para a escola, em Realengo. Ela quer ser artista: tem um certo talento com as mãos, desenha e já escorre sentimento pelo teclado e pelo violão. Aí me bate a velha angústia que fode com o coração do poeta.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Por volta das onze da manhã assento o pensamento na tela. Não consigo mais escrever à mão, agora tem que ir direto no computador. E mais, também não consigo escrever no processador de texto, tenho que escrever online, ali, e lá mesmo, corrijo e publico e espero as saídas para os gargalos da escrita. Invento projetos para escrever. Não tenho qualquer ritual, sento e espero, às vezes vem, na maioria das vezes não vem nada, então pego coisas antigas e recupero e destrinço, aumento, rasgo ou jogo na lixeira virtual ou na lixeira facebookiana. Essa minha vida é dessa maneira, meio robotizada, assim como se eu tivesse apenas cumprindo o mesmo roteiro escrito sem qualquer modificação. Sei que a isso chamam de rotina e que a rotina é um grande ralo para onde descem todas as esperanças, mas é assim que é. De vez em quando, quando aparece algum trocado, rasgo o script e vou pra cidade, mas cheio de culpa porque pode ser que um filho da puta de um poema tenha querido se conectar e, puto, vai procurar outro poeta. Foda-se.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como disse na resposta anterior, invento projetos para escrever e são eles que me guiam, mas entendam, ou entenda, essa invenção não é motivada por mim, geralmente não tenho controle. É como se uma voz dissesse: “Ei, seu carai, tenho umas coisas aqui pra você, mas você tem que dar seu jeito. Dê um jeito e organize que, se nós aqui do outro lado acharmos que está bom damos continuidade, se não, abortamos a operação!” E sempre abortam. Mas eu seguro pra mim, já que eles não querem e vou procurar outra legião, como aquela que Jesus jogou dentro dos porcos. O problema é que os porcos se jogam todos no mar. Mas o mar é o mar e sempre tem histórias, seja o mar das águas, seja o mar da terra, da caatinga, do sertão, de nós mesmos.
Escrevo o que dá, durante o dia. Teve um dia aí que em uma semana escrevi duzentas páginas e em um minuto, como não tinha muito sentido, destruí tudo. Instalei um dispositivo no meu computador que identifica tudo que escrevo. Ele é sabido. Ele sabe quando estou escrevendo ou quando estou apenas copiando e colando. Não sei como é que funciona. Talvez seja pelo teclado. Tudo que escrevo, automaticamente ele pega e organiza em pastas, data e até faz anotações sobre o meu humor naquele momento. Comenta nas bordas, grifa com diversas cores e tem uma opção de correção. Sempre deixo desabilitada. Outro dia, um leitor chegou e disse: “Você tem problema em usar os pronomes oblíquos!” Aprendê-los-ei-um-dia-lá-le-li-lo-lu, meu camarada!
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sou basicamente poeta, pelo menos imagino que seja assim. Mas também sou acadêmico, escrevo ensaios, pequenos artigos (os quais julgo científicos). Nesse último caso, e contei isso na pergunta anterior, é um inferno. Na escritura de minha tese de doutorado, passei anos, coletando dados, conceitos, ideias de outrem, para basear a minha própria teoria. Esperei muito tempo, aguardando a primeira frase, a primeira linha. Nós sabemos que é essa frase que vai inaugurar o processo. Comigo não aconteceu. Não saiu nada daquele oceano de informações. Fiquei literalmente louco, procurei minha psiquiatra e relatei o fato. Ela passou-me um remédio manipulado. Mandei fazer. Caro que só a peste. Tinha que valer à pena. Seriam três gotas diárias, remédio concentrado. Pensei que se tomasse nove, o processo deslancharia três vezes mais rápido. Não aconteceu. No segundo dia tomei doze. E nada. Dezoito. Vinte e quatro. Quase fui internado com uma overdose. E não aconteceu nada. Um mês depois, assim como que do nada, minha tese saiu inteira num dia e numa noite, sem consultar notas nem nada. Uma semana depois, estava pronta. Entendi que é assim meu processo. Tem esse tempo indeterminado. Minha cabeça funciona assim: armazena tudo, compila e escreve fora de mim. É esse o aplicativo ao qual me referi na pergunta anterior.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido mal, pessimamente. Apesar de já conhecer o meu processo, de entender que as travas são parte do processo, que a procrastinação é um artifício de um sujeito que está dentro de mim e que assume o controle e aciona as bombas, de perceber que há um jogo de autossabotagem, essas manias loucas e absurdas habitantes do meu submundo, isso causa ansiedade. Qualquer escalada ansiosa é horrível. Dá insônia, gula desenfreada, mijadeira, medo e terror. É infernal. Chego a odiar os projetos. Vou encostando até o dia no qual o prazo grita: “Tá pronto, seu arrombado?” E não tá. Aí é um Deus nos acude. Um Diabo que nos carregue!
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Se não entregar, o texto será revisado até não ter mais nada a ver com o texto inicial. É um poço sem fim, sem fundo. Fico duvidando e duvidando e duvidando. E nunca está pronto. Daí porque resolvi escrever online, em tempo real, pra deixar o texto viver sua própria derrocada. E assim tem sido. O que é uma armadilha da qual saímos sempre mancos, o texto e eu. Mas dane-se.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Respondi lá em cima. Hoje só escrevo no computador. Ariano, que Deus o tenha e guarde e o proteja no seu colo santo, escrevia à mão e desenhava, ilustrava seus textos, adornava. Era um santo. Hermeto, o músico dos músicos, tem esse mesmo processo de Ariano quando está escrevendo suas músicas. O seu Calendário do Som tem desenhos nas bordas e nos próprios pentagramas. É lindo. Tem um sujeito, o Jessé Andarilho, que escreveu no trem, num celular velho. É uma façanha, não pela literatura extraída daí, que é boa, mas pela paciência de teclar. Esse camarada deveria ser canonizado. Carolina Maria de Jesus escreveu seu best-seller em pequenas notas em cadernos. Tinha um cara lá na minha cidade que escrevia nos lajedos, nas pedras. O Profeta Gentileza foi um revolucionário ao escrever nas vigas de sustentação dos viadutos cariocas. Tem uns outros que escrevem no próprio corpo. Os senhores fazendeiros dos sertões nordestinos, não tinham o que fazer e escreviam a ferro em brasa seu próprio brasão no couro vivo do gado. Os senhores de escravos ferravam da mesma maneira pessoas dignas submetidas ao cativeiro. Anchieta, o padre, escrevia nas areias das praias, o mar vinha e lavava tudo. Temos políticos que escrevem na água, suas palavras não valem nada um risco.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei de onde vêm minhas ideias. Augusto dos Anjos, o poeta mais malassombrado da poesia nacional tem um soneto no qual pergunta e tenta responder, mas fala apenas das sinapses, das colisões dos feixes de moléculas nervosas etc. O que me mantém vivo é a contemplação da natureza, da arte, do Homem, da vida e do mistério. Talvez existam outros que pensem assim. Agora, muitas das minhas ideias vêm da safadeza da humanidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O homem muda e sua escrita também. Não acredito em evolução na escrita, mesmo porque teríamos que saber o que é evolução em literatura e arte, propriedade difícil de apalpar. Há a mudança. E ela vem com a consciência do ato de escrever. Para uns a evolução é a simplificação. Para outros a complexidade. Para outrem a anulação do ego. Eu percebo que minha mudança se deu na opção. Na poesia, optei por seguir ao lado da métrica do povo. Meu verso tem essa métrica do cordel, da poesia respirada e narrativa, nada filosófica na forma, mas filosofal no conteúdo. Foi a opção que mudou minha forma de escrever e de pronunciar-me. Na prosa, da mesma maneira, optei por ser mais claro, menos acadêmico, utilizando um paradigma menos rebuscado, mas não menos precioso. Optei por escrever de forma que todos entendam. Quando escrevi minha tese de doutorado tive como público leitor o aluno do ensino médio e os professores do ensino fundamental. Escrevi sobre a Poética do Cordel. Como poderia complicar? De maneira alguma. E, agora, olhando para trás, eu diria: “Meu camarada, escreva como abre uma vereda que atravessa riachos, vales e campinas, nas quais os pássaros ainda cantam e a natureza ainda dialogue em paz com a letra!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há uns três anos, resolvi escrever uma novela online, diretamente em meu perfil do Facebook. Obriguei-me a escrever um capítulo por dia. Foram setenta dias relatando um tempo que passei em São Paulo. Não falhei nenhum dia. Foi difícil. Tinha que ter matéria de memória todo dia, numa sequência narrativa lógica, entre ficção e realidade, mais ficção. Cumpri a tarefa. Depois de terminar, compilei, joguei tudo no processador de texto e fui ler. Que decepção, que coisa triste. Fiquei arrasado, embora obtivesse muitos comentários positivos. Mas o resultado não foi o que eu esperava. Deixei de lado, me deu vontade de deletar de lá e de rasgar pra sempre e nunca mais visitar. Paguei a uma pessoa para ler e opinar, não quis pedir a amigos, os amigos são passionais, querem seu bem, são complacentes, amáveis. Paguei o que não tinha e esperei a bordoada. Veio só elogios. Mas não fiz as pazes com esse texto. De vez em quando pego, mas não consigo seguir adiante. É um texto que eu queria colocar uma pá de cal. Fosse terminando e publicando, fosse pedindo perdão por ter ousado. É uma espinha de peixe na garganta do poeta.
A cada dia que passa encontro livros que pensei não existirem. Muita literatura latino-americana desconhecida de nós, falando de nós e de nossa sina. Seria muito bom se esses livros viessem até nós. Para isso seria fundamental falarmos espanhol. A vasta tradição da América Central nos é desconhecida. Até de nossos vizinhos mais chegados como os argentinos e os uruguaios ou dos mais distantes como os franco-guianenses. Aliás, a literatura das Guianas nos é totalmente desconhecida. Que maldade. E estamos falando apenas de nossos vizinhos. E a produção literária mais longínqua: a africana (que não a de expressão portuguesa), a asiática e a oceânica? Vivemos com os telescópios virados para os EUA e para a uma pequena parte da Europa, porque os escandinavos nos são alheios. Precisamos desses livros. Para nós esses livros nunca foram escritos. Não existem. Eu os quero, mesmo sabendo que não tenho mais tempo de ler, a vida é curta.