Ademir Barbosa Júnior (Dermes) é escritor, titular da cadeira 62 da Academia Independente de Letras.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo, tomo uma xícara de café, chamo meus filhos, cumprimento os cachorros e vou caminhar num parque. Até chegar lá, faço preces de gratidão e mentalizações diversas. Daí, no parque, enquanto caminho, faço Ho’oponopono, uma técnica havaiana de autocura. Volto, às vezes passo no mercado, tomo banho e trabalho em casa ou sigo para dar aulas.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã, de preferência. Há fases que prefiro a tarde e deixo a manhã para ler. Faço (cada vez mais) notas antes de começar. Prefiro mesa clean, mas me adapto a qualquer circunstância. Às vezes risco um fósforo, apago e ponho na boca. Nunca fumei. Houve épocas em que punha lápis na boca. Minha irmã dizia que eu fumava lápis de cor. Aproveitei a ideia num poema sobre um arquiteto alemão que teria se mudado para o Brasil em virtude da Segunda Guerra Mundial.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Em 22 anos de carreira foram mais de 100 livros, cerca de 80 publicados, fora as 36 revistas especializadas que assino, além de outros textos. Na maioria dos casos, escrevi nas horas vagas. Por essa razão, há quem pense que sou vagabundo. Espero ser para escrever mais.
Houve fases em que tive 15 minutos por mês para escrever. Doía. Hoje consigo administrar melhor o tempo e, claro, sonho em ter tempo livre para escrever. Viver de e para escrever.
Estou numa fase que tento escrever menos ou nada para ler, em especial para um projeto que bolei. Mas a escrita vem e domina. Não reclamo. Sempre quis isso. Em suma, tenho escrito quase todo dia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tudo é questão de ritmo. As ideias, as notas, o início. O ritmo das frases é fundamental, como as ouço antes e enquanto escrevo. Cada tipo de texto tem seu ritmo próprio, seja um prefácio ou um haicai ou, ainda, uma novela, por exemplo. A pesquisa geralmente se mistura com a escrita. Eu escrevo como se fosse morrer amanhã. E, como sempre digo, quando morrer, quero virar palavra.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A única trava, para mim, é escrever e não publicar. Como nunca sei se vou publicar (a não ser quando se trata de encomendas ou se há uma grande certeza interna), deixo isso para lá e escrevo. Procrastinar jamais. Sinto que procrastinar não é morrer aos poucos, mas morrer por inteiro inúmeras vezes. Não faço isso comigo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Às vezes mostro e às vezes mostro antes de revisar. Ouço com atenção e tomo as decisões.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje é indiferente. Até anoto, rascunho ou escrevo no celular.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ideias vêm da observação, da vivência, da troca de histórias, do interior, da cabeça. Viver e ler ajudam muito. Compartilhar histórias também. O silêncio ajuda, seja em casa, quietinho, ou na multidão, pulando carnaval. O que vou escrever é uma massa. Dou os formatos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A escrita amadureceu na forma e no conteúdo e quero ser ainda mais preciso, devotado à palavra. O texto tem de dizer, não o autor. O autor escreve o texto e o texto tem de ser autônomo, ele mesmo. O autor é o meio para o texto existir. O texto é o ser amado, o autor é o sogro ou a sogra. A pessoa tem uma relação com o texto, não com o autor. O autor você convida para tomar café, como o sogro ou a sogra. Quem vai para a cama é o texto.
Eu diria a mim, no passado: “Não tenha pressa de publicar.” Eu até tive, mas demorou e o primeiro livro veio na hora certa.
Também diria: “Continue!” Continuei, mas não de qualquer forma. A destreza tem sido fundamental.
Amo o que faço. Uma vez, num dos primeiros trabalhos, creio que no sexto livro, não lembro, me pediram uma foto para orelha e acharam que eu sorria muito. Tinha de ser sério, blasé. Respondi que não me culparia pela alegria de ser autor e não fiz a foto. Em outras, anteriores ou posteriores, estou sorrindo, é a celebração de mais um livro publicado: a foto tem de ser uma epifania.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Já comecei. Prometi a mim mesmo pesquisar e fazer anotações sistemáticas este ano e começar a escrever em 2020. Porém, já entendi que talvez comece no segundo semestre de 2019, não sei. Paralelamente a isso, tenho escrito outros projetos (um estava previsto, outro não) e algumas encomendas. Ou seja, tenho escrito todo dia.
Tenho 15 ou 16 inéditos para os quais ainda busco editoras. São livros de diversos gêneros.
A respeito da última pergunta, o livro só existe, de fato, quando o leio. Então, tendo já sido escrito ou não, quero todos que possam chegar às minhas mãos, aos meus olhos.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Existe um planejamento familiar, que serve de mapa. Com um mapa na mão, pode-se mudar a rota, não é mesmo? Isso costuma acontecer também com o texto, o destino das personagens, detalhes etc. Talvez o mais difícil seja iniciar, contudo, às vezes, o início flui mais facilmente que o final, o desfecho.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Ao longo dos últimos anos, tenho tentado me dedicar a um projeto por vez. Quase nunca tenho conseguido. Mas a ideia é essa depois de mais de 20 anos de carreira e 70 livros publicados, ainda com cerca de 20 inéditos.
O que motiva você como escritor? Você se lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
É o desejo. Existe o desejo de escrever e o de ser lido. Nem sempre ambos coincidem ou coexistem. É uma pena? Sim. Mas, se não sou lido em dado momento, isso não anula o desejo de escrever.
Em 2019 pensei muito que escrever é uma maneira de permanecer vivo em meio a dores profundas (pessoais e/ou coletivas).
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Creio que o chamado estilo próprio ainda está se definindo. Ou se definiu, mas com nuanças diversas. Vários autores influenciam, de modos diferentes. Um sugere ironia, outro ritmo de narrativa ou frase etc. São muitos mestres. O aluno ainda está aprendendo.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Pergunta terrível. Ficarei apenas com três, então.
“O nome da rosa” (Umberto Eco). Li inúmeras vezes e em idiomas. Há riqueza em cada detalhe, no espaço, no tema, nas angústias, na linguagem e em situações que podem passar despercebidas, como na da personagem Pacifico de Tivoli, comumente citada em listas de personagens, mas sobre a qual não se diz mais nada, o nome apenas aparece ao se elencarem personagens, em determinadas cenas, e pronto.
“Dom Casmurro” (Machado de Assis). Li adolescente. Acostumado com os romances românticos, quando Bentinho e Capitu se casaram, pensei “O que será que acontece nas tantas páginas restantes?”. Discordo dos críticos que dizem que o genial Machado perdeu muito de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” a “Dom Casmurro”. Creio em genialidades diferentes para ambos os livros.
“Mulheres que correm com os lobos” (Clarissa Pínkola Estés). Já havia ouvido leituras de trechos, mas li em 2001. Há inúmeras abordagens, mas, para o objetivo deste projeto, elencarei uma: a força da narrativa, força constitutiva, força curadora etc., em especial do feminino. Li outros livros e textos da autora. É palavra que dança, que flui.