Ademir Assunção é poeta, mas poderia ser astronauta, arqueólogo ou palhaço de circo, autor de “A Voz do Ventríloquo” (poesia), “Adorável Criatura Frankenstein” (romance) e “Faróis no Caos” (jornalismo).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou um animal noturno, gosto muito do silêncio da noite e também gosto de dormir. Durmo profundamente e não funciono muito bem pelas manhãs. Nem sempre posso, mas prefiro acordar calmamente, ficar mais um tempinho na cama, anotar fragmentos de sonhos. Muitas imagens que aparecem em meus poemas, contos e romances vêm dos sonhos. Deixo uma caderneta de anotações na cabeceira da cama. Sempre que tenho lembranças muito nítidas, procuro ordená-las em forma de linguagem escrita. Penso com frequência na dúvida de Jorge Luis Borges: “Terei vivido a minha vida ou tudo não passou de um sonho?”
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho o tempo todo, até mesmo quando estou dormindo, mas geralmente penso e organizo melhor a escrita à tarde e à noite. Não tenho nenhum ritual, tenho alguns costumes. Por exemplo: coleciono palavras que quero utilizar em meus textos – poemas ou prosas. Geralmente palavras que pareceriam pouco poéticas: pereba, biriteiro, escafandrista, cachaça, xilindró, maconheiro. Tenho predileção por essas palavras ordinárias ou estranhas e procuro manter um vasto repertório delas para utilizar na minha escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, não necessariamente um poema do início ao fim, mas fragmentos de ideias, anotações, reflexões, registros de algo que me despertou a atenção na rua, no noticiário, na audição de uma música, na leitura de algum livro, num filme que vi no cinema, na conversa com um amigo. Não tenho nenhuma meta diária. Escrever é uma necessidade para mim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É um processo contínuo, mas muitas vezes confuso. Como a própria vida. Anotações, pesquisas, registros de percepções, observações, leituras, principalmente leituras, tudo faz parte do processo de escrita – desconheço grandes escritores que não sejam grandes leitores. Uma boa pesquisa, um conjunto de anotações, geralmente rendem poemas, contos ou um romance. Algumas vezes não. Porém, insistência e disciplina são essenciais – pelo menos no meu caso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não costumo ter travas de escrita nem sinto medo de não corresponder às expectativas. Expectativas de quem, do leitor, do editor, dos amigos? Não penso nisso. Penso nas minhas intenções, se quero construir um determinado poema com imagens fortes, se quero uma sonoridade mais melodiosa ou mais sincopada, se quero dialogar com outras tradições, se quero criticar explicitamente um tipo de comportamento no mundo. Para desenvolver projetos longos é melhor ter disciplina do que ansiedade. E aceitar que em alguns dias ou períodos estamos mais criativos, outros menos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumo fazer muitas anotações e pensar bastante antes de desenhar a estrutura de um texto. É um trabalho prévio muito intenso. Quando estou escrevendo, propriamente, seleciono as palavras, corto, avanço, volto, dou polimento, sujo, até ficar do jeito que quero. Depois de pronto – um poema, um conto ou um romance –, reviso pouco. O trabalho maior é no momento mesmo da escrita. Mas isso é variável. Às vezes um poema surge praticamente pronto, os versos deslizam como num incêndio. Nesses casos, é uma maravilha, uma benção. Sim, costumo mostrar meus trabalhos para algumas pessoas próximas, que possuem um repertório grande de leituras e um senso artístico desenvolvido. Sempre que possível, prefiro vê-las lendo os textos e presto atenção às suas reações. Mas o critério final é sempre o meu.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre gostei de ver o formato das letras, o tamanho das palavras. Isso parece que deixa o texto mais materializado para mim. Antes do computador, utilizava a máquina de escrever, que era a tecnologia disponível há algumas décadas. Por isso, acredito, adquiri o hábito de ver o texto impresso. Sempre que escrevo no computador, imprimo o texto e leio, troco palavras, modifico frases. E também leio em voz alta. O ouvido, para mim, é importantíssimo. As palavras não são mudas. Elas soam. Trabalho bastante a sonoridade dos versos – e mesmo das frases quando escrevo ficção ou textos jornalísticos. O olho está mais para o espaço, o ouvido para o tempo. Prestar atenção aos sons do texto é algo indissociável do meu trabalho.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm basicamente dos estudos – e aí não me refiro somente à leitura, mas à audição de música, ao hábito de ver filmes, ao aprendizado com outras pessoas, enfim, as ideias vêm de todos os lugares. Pode vir de um livro de Guimarães Rosa ou de uma conversa com o vendedor de ovos na feira. A intuição tem um papel importantíssimo também. A criação, acredito eu, vem da descoberta, da observação intensa e da percepção aguçada. Talvez seja uma combinação daquilo que o artista conhece e daquilo que ele desconhece – e passa a descobrir com o processo criativo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tudo está mudando o tempo todo. Não há nenhum livro meu que seja igual ao outro. As motivações e intenções para cada um deles foram diferentes. Por exemplo: no Zona Branca procurei imaginar como poderia incorporar aos poemas alguns recursos do cinema (cortes, closes, movimentos de câmera, sequências). No Pig Brother, busquei uma fusão de elementos do xamanismo e da ficção científica, num cenário caótico, urbano, com imagens brutalistas. No Adorável Criatura Frankenstein, que é aquilo que se costuma chamar de romance, procurei ironizar com algumas estruturas formais do próprio romance, que se repetem há séculos. Por exemplo: os personagens principais do livro são pronomes (Eu, Tu, Ele, Ela, etc.) e não nomes. Isso já determina todo o enredo e até a construção de frases, que parecem erradas, até o leitor se situar. Coisas do tipo: “Eu desceu do carro, caminhou dois passos em direção à porta do hotel Della Volpe e não tropeçou em monte de lixo algum.” Eu, no caso, não é o narrador em primeira pessoa mas o nome do personagem principal. Enfim, essas intenções e motivações é que determinam o processo de cada livro. E o que eu diria se pudesse voltar à escrita de meus primeiros livros? Bem, diria simplesmente, fiz o melhor que pude, está feito. Vamos adiante.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de me enfiar em uma praia semideserta, levar uma vida o mais barata possível e ler um montão de livros que já existem e que ainda não li. Esse é o projeto que ainda não pude começar.