Adalberto Müller é professor da UFF, escritor e tradutor, autor de “O traço do calígrafo” (Medusa, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo tomando muito café, do tipo americano, feito na prensa francesa. Enquanto tomo o café, leio notícias ou livros. Depois começo trabalhar. começo respondendo e-mails, mensagens, posts. Depois me dedico a escrever ensaios e artigos, ou à tradução. Quando estava traduzindo Emily Dickinson, ficava de 3 a 4 horas traduzindo ou dois poemas, diariamente, durante 7 anos (inclusive domingos, feriados e férias). Depois dessa primeira etapa de trabalho, saio para correr, ou caminhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Traduzo pela manhã. mas ficção, só escrevo à noite. Todas as noites, entre as seis e as nove. Isso quando não dou aula ou alguma palestra.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Todos os dias. Sempre tento escrever um capítulo (entre 1500 e 2000 palavras). Mas às vezes fico reescrevendo o que escrevi antes. Às vezes me ocorre escrever um poema. Mas a poesia é uma coisa que eu guardo para mim, como o registro de algo que eu gostaria de dizer, ou do mero divertimento com as palavras. A poesia que me interessa, aliás, é aquela que é puro jogo e puro gozo verbal. Poemas sérios me aborrecem.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para escrever ensaios, sim, dependo de muita leitura e pesquisa prévia, coloco dezenas de livros à minha volta, ou espalhados pelo chão. Mas para escrever ficção, me desarmo. Minhas narrativas são 100% inventadas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A tradução e o ensaio não “travam”, e nem procrastino nesse caso. Foi assim com Dickinson e com Ponge. Com Ponge passei dez anos. Com Dickinson, sete. Ou com a escrita de mais de 200 ensaios, publicados em livros, revistas e jornais (algum dia compilo tudo num volume só!). Agora, com ficção, eu travo. Agora mesmo, estou no meio de um romance que tem dois personagens vivendo duas histórias paralelas. De repente eu senti um vazio, e comecei a me perguntar: mas por que contar essa história? Conversando com meu analista, chegamos à conclusão que o vazio não estava na história, estava em mim. Sem o escritor, os personagens morrem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito, à medida mesmo que escrevo. Como escrevo sem o corretor (no Word), que me incomoda, eu acabo cometendo muitas gralhas, e dando muito trabalho aos revisores.
Gosto de mostrar para um grupo seleto de amigos. No caso da Dickinson, eu criei uma rede de leitores, imitando o modo como ela escrevia (mandando os poemas por carta). No caso da ficção, também uso e abuso dos amigos e das pessoas próximas. Tenho pelo menos três leitores amigos, a quem sempre confio o que escrevo. Dependo muito deles, pois sou extremamente inseguro em tudo na vida.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu comecei a escrever aos dez ou doze anos, usando máquina de escrever. Nunca gostei da minha letra, que vai mudando de forma, é camaleônica, como eu. O computador me ajudou bastante, claro. O Word é um editor de textos, isso facilita muito a escrita. Mas quando voltei a escrever prosa narrativa de ficção (contos, romances), eu fiquei quase dois anos reaprendendo a escrever à mão, e enchi uns trinta cadernos, daqueles da Muji. Hoje escrevo ficção usando o iA Writer da Apple, com tela preta, porque me lembra a máquina de escrever.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Escrevo a partir de mim, mas sabendo que esse “mim” é atravessado por incontáveis feixes discursivos e narrativos. Quando escrevo ficção, tento me libertar do meu lado acadêmico e intelectual. eu nasci numa fronteira (Brasil/Paraguai) marcada por violência e ilegalidade, mas também por uma diversidade cultural e linguística incrível. Então, posso dizer também que eu escrevo a partir da Fronteira, do estar aqui e lá ao mesmo tempo, em cima de uma linha imaginária. Passei a minha infância toda cruzando essa linha imaginária, e aprendi que ela na verdade é real e imaginária, ao mesmo tempo. Quem é da fronteira sabe disso.
Não entendo o que é “manter-se criativo” senão como uma forma de estar preparado para mudanças e transformações. Não ficar fechado em dogmas, crenças absolutas, convenções sociais. E também saber dar mais do que receber. Isso é o que se chama “dom”, que tem a ver com o que é dado mas também com a capacidade de dar, de deixar um legado. Como naquele poema de Mallarmé, “Le don du poème”. O dom é um “condão”, como dizia meu amigo Manoel: de fazer nascimentos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A maturidade, que é um abandono da ingenuidade. Mas sem perder a ousadia e o desejo. Sem perder o amor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não sei o que vou escrever, porque não sei o que vou viver. E, para mim, uma coisa leva à outra.
Não acredito que exista algo que não foi escrito, como ouço as pessoas dizerem, “vou escrever o que não foi escrito”. Não há nada novo, tudo já foi dito, e dizer isso é repetir. Mas a vida é isso: repetir, todos os dias é preciso acordar e viver de novo. Até nossas células fazem isso. Até o vírus. O importante é criar alguma variação dentro da repetição. O novo é o velho de batom.