Aclyse de Mattos é poeta, escritor e professor da Faculdade de Comunicação e Artes da UFMT.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim. Adoro tomar café bem reforçado e acordo geralmente com a luz da manhã. Aproveito a primeira luz natural para ler na varanda. Gosto de ler vários livros ao mesmo tempo intercalando-os. Abro um livro de poemas e leio algumas páginas, leio um conto, uma crônica, releio os livros mais significativos descobrindo o que tinha escapado à primeira leitura. Depois começo a rotina de professor universitário lendo trabalhos, dando aulas (atualmente online) e participando de reuniões (online também).
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Gosto mais de escrever e tudo flui melhor no começo do dia e no final da tarde. Quando era jovem e solteiro escrevia muito à noite. Perdi esse hábito. Preparação: anoto ideias em folhas e cadernos logo que aparecem, quando sento para escrever abro os cadernos e olho nas folhas o que ainda parece interessante para dar uma forma melhor ou mais longa. Quando estou trabalhando no computador, tenho alguns arquivos tipo berçários onde escrevo as ideias, trechos, lembranças que depois serão expandidos. Ou não.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quando o dia deixa, porque tem dias em que não dá. Procuro escrever todos os dias. Conforme o dia eu refaço alguma escrita, amplio alguma ideia, passo a limpo, agrupo em blocos de textos próximos para formar capítulos ou livros de poemas ou contos. Algumas ideias chegam tão fortes e prontas que escrevo tudo de uma vez, 4, 6, 8 páginas. Acontece assim com textos infanto-juvenis. Outras vão se formando aos poucos. Quando acontece de pancada, tudo de uma vez, a sensação é melhor. Não me cobro de escrever todos os dias, mas trabalho bem com prazos. Não gosto de sentar com a folha (ou a tela) em branco e ficar esperando surgir alguma ideia. Ou já começo com alguma ideia ou percorro os cadernos e folhas soltas. A maioria das ideias surge quando estou lendo, ou caminhando, ou em trânsito, ou no banho. Faço uma anotação para continuar depois ou fico brincando com as palavras até poder anotar.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho que falei um pouco na resposta anterior. Para poesia não há pesquisa: é expressão de sentimentos, memórias, imaginações. É história de vida, paixões, conversas, experiências. Meu processo é errático e não linear. Assim como faço uma leitura dispersa, as notas também são dispersas. Avanço o quanto der criativamente e só depois releio e refino. Gosto de casar a ficção com a realidade: Van Gogh foi para o sul da França a procura dos amarelos solares (acabei de ler); então o sol brasileiro traria que efeitos (olhei pela varanda a manhã). Pronto. O livrinho Sabiapoca foi uma notícia na televisão que disparou a ideia. Criar é unir possibilidades soltas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sou muito severo com a minha escrita. Se não gosto, não vou prejudicar o pobre do leitor fazendo-o perder tempo com algo que não agradou nem quem escreveu. Aprendi a ser menos severo porque uma vez rasguei o rascunho de um poema que passei a limpo para a escola. Achei que estava péssimo. O poema foi selecionado para uma antologia da escola. Meu juízo não estava lá muito calibrado kkkk. Mas prefiro assim. Nunca consegui escrever um romance longo (no máximo novelas de 70 laudas). Será meu próximo desafio. Já comecei. Quanto aos livros de poemas, não tenho pressa. Sempre acho que estão inacabados. Que vai aparecer mais um poema para aquele grupo que está ali no livro. Faço os livros de poesia como se fosse uma constelação de poemas. Alguma força deve existir para reuni-los. Sempre que estou fechando um livro, de fato aparecem poemas novos na imaginação. Para que a pressa então?
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Algumas vezes. Na escrita de poesia muitas vezes. Mudo pouca coisa, mas sinto que reler traz novas conexões. Sim, passo originais ou inéditos para leitores com boa percepção e sensibilidade darem alguma opinião. No Brasil há poucos editores no sentido de alguém que de fato contribua para a construção do texto em livro. Aqui em MT temos boas parcerias com as editoras Entrelinhas e Tanta Tinta na materialização dos livros.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Os poemas começam na cabeça, na boca, na memória. Quando começo a escrever já estão alguns versos ou estrofes quase prontos. Dizem que Borges quando foi perdendo a visão, usava esse recurso de memorizar os poemas antes de escrevê-los. Poesia, escrevo primeiro em folhas, pedaços de papel (lembro do Noel escrevendo letras de sambas em guardanapos de papel nos bares). Depois passo em cadernos ou no computador se tenho prazos. Prosas e artigos já gosto de começar no computador. No princípio dos celulares, gostava de escrever micro poemas no aparelhinho tipo este haikai pop : postou\o pop star\aposta[1] – ou então usar a grafia abreviada das mensagens tipo blz (tem o poema Psiu P\Sil todo em abreviações). Os poemas se materializavam na rede social ou nas mensagens de celular se tornando uma meta plataforma poética (coisa que o Pignatari e os Campos sonhavam). Pesquiso como professor a Educomunicação e a Transmídia. Aprendi a ler em gibis e placas e anúncios de rua antes mesmo de ir para a escola. Escrever e ler são tremendas tecnologias. São tecnologias essenciais para assimilar todas as outras.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Ler e viver perceptivamente. Quando criança queria ser desenhista e criador de quadrinhos. Na juventude queria ser músico e compositor. Meio que descobrir a poesia foi cair do céu perceptivo das imagens e sons tentando desenhar e musicar com as palavras. Meu pai lia muito. Minha mãe cantava que era uma maravilha! Tive uma avó contadora de histórias maravilhosa! Lá pelos 14 ou 15 anos passei a me sentir melhor se escrevesse o que pensava ou sentia. O dia ficava mais pleno. Era como se existir fosse escrever. É mais qualitativo do que quantitativo. A imaginação parte do chão da percepção e segue seu voo. Tem mais uma coisa: minha cidade (Cuiabá) foi completamente modificada pelo progresso desordenado, daí que muitas vezes refazer esse mundo perdido também é outra fonte de ideia ou inspiração. A Arte é muito esse guardar o que passa que mereça ser guardado.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Pergunta fácil (kkkk). No início era mais lento e trabalhado. Aos poucos fui aprendendo os caminhos de acender a imaginação e o processo criativo. Era muito tímido. Tinha coragem de dar os poemas para as minhas musasinhas, mas não queria que mais ninguém lesse. A timidez se acabava quando fazia letras para músicas e tinha que cantar. Não mudaria nada. Até os erros fazem parte. Ser outro talvez fosse bom para o Rimbaud, mas me parece muito mais uma ironia dele para dizer que a alma do poeta não é só dele, que quando escrevemos estamos traduzindo um eu para um nós, um tu, um outro que se refaz quando conseguimos escrever essa tradução = transformação.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de ler livros que talvez tenham existido: um livro de prosas de Álvaro de Campos ou o terceiro volume que dizem que Dostoievski tencionava escrever para Os Irmãos Karamazov. Ainda não consegui escrever um romance. Tenho começado muito (kkkk). Duro é seguir as linearidades da prosa. Gostaria de ler um panorama da vida comunitária que existia em Cuiabá entre os anos 30 e 80. Encontro fragmentos de lembrança, de memórias. Mas falta uma costura ficcional como Érico Verissimo fez com o Tempo e o Vento para o Rio Grande do Sul, ou Milton Hatoum fez com a Amazônia. A história deste nosso Velho Oeste aqui é muito rica (sem contar o cerco a Cuiabá na Guerra do Paraguai, a loucura do ouro no século XVIII e muitas outras fases). Vem um livro do Ivens Scaff aí sobre as Bandeiras que estou louco para ler. Mas meu fascínio é a Cuiabá multicultural dos anos 30 a 80. Para se ter uma ideia, na rua da minha infância, num raio de 100 metros havia japoneses, libaneses, árabes, italianos, franceses, caboclos, africanos, bororos, portugueses, húngaros que fugiram do comunismo, o líder comunista que se disfarçava de comerciante, judeus, o palácio episcopal católico e uma igreja Presbiteriana, um cinema a céu aberto e a estação rodoviária que trazia todos os que chegavam completamente empoeirados pelas estradas de terra. Todas essas pessoas moravam no fundo das casas porque a parte da frente eram lojas comerciais, farmácias, consultórios, oficinas. Todas as crianças brincavam na rua, na praça e nos quintais. Depois vem dizer que o mundo hoje é multicultural. Nem a Internet põe um mundo assim na nossa vida.
[1] Perfeita inversão da filosofia zen dos haicais para o mundo das frivolidades contemporâneas preocupadas mais com a vida alheia e aparente do que com o autoconhecimento.