Zé Irineu Filho é escritor e comunicador.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Travei para começar a responder essa entrevista por causa dessa primeira pergunta. Hoje [12/5/2021] faz três meses que eu me mudei para Tatuí, a 150 km de São Paulo. Eu sempre me considerei um paulistano nato, não existe no Brasil uma cidade que proporcione uma boemia como a nossa. Mesmo com as últimas prefeituras reprimindo os bares, as escolas de samba e todo espaço aberto, a cidade ainda resistia.
A pandemia levou o que sobrou da noite paulistana e eu não sou um grande fã da São Paulo diurna, isso pesou muito nessa mudança.
Comecei falando da noite porque o começo do meu dia depende da noite anterior. Em São Paulo, eu saía em uma terça-feira à uma da manhã e chegava em casa às nove da manhã da quarta. Em São Paulo o dia começava com música, avaliando a ressaca e vendo o que seria do dia.
A única rotina era sair no quintal, fumar um cigarro, ouvir um som, brincar com os bichos, três gatos e uma cachorra. Depois disso poderia ir pro sofá porque a ressaca era severa demais, ou abrir uma cerveja e ir trabalhar, ou receber alguém que passava em casa. A benção e a maldição da escrita é fazer seu próprio horário para sentar a bunda no PC.
Esses três meses em Tatuí têm sido o oposto, uma vida de dia, sem bares, sem amigos, sem passar dois dias virado, sem escola de samba, sem ressaca. Não consegui escrever uma página desde que cheguei aqui, hoje é o primeiro dia que eu sento com seriedade para escrever.
A vida parece que se tornou preguiçosa, tudo o que eu não dormia em São Paulo, eu durmo aqui. Acordo mais cedo, mas acabo dando um cochilo à tarde. Bebo, mas vou dormir, quando muito tarde, ali pelas duas. Acho que só umas duas vezes eu e a Maiza ficamos bebendo até o dia clarear.
Perder a boemia me tirou bastante a potência da escrita. Ainda estou aprendendo a lidar com isso porque parar de escrever não é uma opção.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para escrever é sempre depois do meio dia, a partir das 14 eu acho o ideal. O ritual é a microdosagem e fumar cannabis, ouvir música, ler alguma coisa na internet, ouvir um podcast e quando eu percebo que meu pensamento está mais em escrever do que no que eu estou consumindo, eu abro o Google Docs e mando pau.
Sem esse ritual eu consigo escrever, mas por menos tempo e com menos qualidade, fica mais fácil desfocar do assunto ou ter uma escrita pretensiosa. Por mais paradoxal que possa parecer, a cannabis me ajuda a manter o pé no chão, escrever de forma mais enxuta, sem [tantos] delírios.
Eu escrevo desde muito novo, mas a minha relação com os psicoativos começou bem mais tarde, por volta dos 33 anos [tenho 41 agora]. Ela abriu um mundo novo para mim, é completamente diferente de escrever bêbado, coisa que não faço porque minha escrita fica uma bosta.
Vejam bem, não estou falando de psicoativo de uso recreativo. Estou falando como um método, que no meu caso, torna a escrita melhor. São alguns anos de autoconhecimento em sessões de xamanismo para atingir um resultado que eu não sei como eu atingiria sem essas ferramentas. Existe muito respeito da minha parte a essa força poderosa, que só agora a humanidade está compreendendo de forma global.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Períodos concentrados. Eu descobri ao longo dos anos que eu preciso estar saturado de um assunto para escrever de forma visceral sobre ele.
A parte difícil desse método é a disciplina, estar constantemente me saturando de assuntos para sentir a urgência de ir ao teclado. Sem essa urgência, eu não escrevo.
Meu primeiro livro, O homem sem malícia, foi escrito em um mês. Tinha combinado com o editor de entregá-lo no dia primeiro de fevereiro, no dia primeiro de janeiro eu ainda não tinha uma página escrita. Tinha passado a virada só com a Maiza em um motel perto de casa, chegamos em casa umas duas da tarde, fui direto pro teclado e só levantei ali pelo dia 23, quando estava quase no fim. Sem sábados e domingos. Isso foi pré-pandemia e a Maiza ainda estava trabalhando no escritório, ela chegava do trabalho e ia dormir e eu não parava de escrever.
Nesse período a meta era de horas, mais do que de páginas. Dez horas por dia, mas cheguei a 14. Nesse tipo de foco é onde eu sei que a minha escrita brilha.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Voltando um pouco, o processo é muito pela saturação. Uma vez que eu estou saturado é fácil começar, é instantâneo. Meu trabalho agora é terminar a trilogia O homem, com O homem sem religião e O homem sem culpa.
Eu queria, por uma questão de marketing, lançar esses livros a cada seis meses, o que seria escrever dois livros em um ano. A Maiza me convenceu a não fazer isso para passar mais tempo pesquisando. Como minha escrita é auto referente, a pesquisa é basicamente a minha vida.
No primeiro livro essa saturação foi o suícidio de um dos meus melhores amigos. Eu precisava de um personagem no livro que fosse o melhor amigo do personagem principal, Gabriel, e eu não tinha esse cara ainda. No dia 15 de dezembro o Dani decidiu não viver mais e isso mexeu comigo de uma forma muito profunda. Eu já tinha perdido outras pessoas muito próximas, inclusive minha mãe e minha avó.
Eu não era estranho ao luto, mas naquele momento ele era o homem mais próximo de mim. Nós éramos muito semelhantes em aspectos importantes da masculinidade e essa decisão dele, para mim, foi um sinal muito claro de que eu tinha que seguir em frente.
Agora, com essa vida pacata aqui em Tatuí, eu não sei quando vai acontecer essa saturação e por hora eu não estou com pressa. Está sendo bacana viver o dia a dia de um escritor, de divulgar a sua obra, trabalhar no Instagram, ir a podcasts e receber as pessoas no meu podcast. Isso por si só tem sido uma ocupação grande do meu tempo.
Em resumo é isso, eu me movo da pesquisa para a escrita quando a pesquisa se satura, quando eu acho que nada mais pode me fazer rever o que eu estou escrevendo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
É exatamente nessa parte onde eu sinto que a microdosagem de psicoativo funciona porque, para mim, eles acabam com as dúvidas. Em vez de ter aquela voz que fica te dizendo que você não é bom o suficiente, eu ouço outra voz que é mais assertiva na hora de me colocar para escrever: “Vamos, cara, tu sabe escrever, não tenha dúvida sobre isso, é só sentar e digitar, bora!”
Agora o que acontece muito comigo são as reações do meu corpo ao que eu estou escrevendo. Eu chorei muito escrevendo o livro, vomitei, senti tesão, mas era isso: se tinha que vomitar, eu vomitava, tomava um banho e voltava a escrever; se o choro estava muito forte, eu ia tomar uma água, fumava um cigarro e voltava a escrever; com o tesão, ia no banheiro, me masturbava e voltava a escrever. Sem desculpas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Uma ou duas vezes no máximo. Eu prefiro escrever um tanto e já revisar, a escrever tudo e revisar depois. Então quando eu termino, meio que já é a versão final.
Eu mostro os textos para a Maiza, minha companheira, que é editora de livros didáticos e minha editora oficial. Ela sabe exatamente de onde vem a minha escrita e fica mais fácil confiar nas críticas dela.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Amo a tecnologia, hoje tenho tudo o que eu escrevo ao meu alcance imediatamente pelo celular, PC ou qualquer outro dispositivo. Já fiz live escrevendo, acredito que hoje existem ferramentas que facilitam demais a vida de um bom escritor.
Sempre escrevi pelo computador, nem sei mais escrever direito à mão. Está sendo uma tortura escrever dedicatórias manualmente para as pessoas nos livros. Na prática eu aboli a escrita manual da minha vida.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Muitas das minhas ideias vêm de conseguir dar um passo para trás e olhar o mundo de uma perspectiva diferente do automático do dia a dia. Vêm da observação mais do que da ação, vêm de muita leitura. A cannabis me coloca muito nesse lugar, de mudar a perspectiva da observação.
Como eu disse, essa relação começou tarde. Eu me lembro que uma das primeiras vezes em que senti o poder desse efeito de mudar a perspectiva foi aos 34 anos, voltando de madrugada da casa da minha prima. Ela morava na Alameda Barros e eu fui caminhando até o metrô Santa Cecília sozinho. No caminho eu vi uma menina chorando e a mãe dando uma bronca nela, do tipo “dorme!”, e cobrindo-a com um cartaz do Aécio. Era período de eleição presidencial em 2014.
Aquilo me tocou, eu não consegui segurar o choro e de repente eu comecei a reparar no tanto de gente que estava dormindo na rua. Lembro de ir me controlando e justificando o pensamento de que não dava para se abalar com isso porque senão eu não ia viver mais.
Cheguei em casa e escrevi um texto curto, que tinha a premissa de que “é óbvio que a maconha tinha que ser proibida, já pensou se você fuma maconha e passa a se preocupar com desconhecidos?” ou alguma coisa parecida com isso.
Sobre o conjunto de hábitos, para mim, além da cannabis era a boemia, estar na noite e conhecer pessoas diferentes o tempo todo, ver pessoas de uma forma que elas não se apresentam no dia a dia, ouvir ideias de pessoas embriagadas, fazer amizades que duram apenas uma noite. Tudo isso também ajuda nessa mudança de perspectiva, que para mim é ouro.
Acredito que minha falta de escrita vem muito da perda da boemia para a pandemia, da falta de interação com outras pessoas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Definitivamente o que aumentou o meu jogo foi conhecer a Maiza, ela foi a primeira pessoa que labuta com escrita que parou para me ler e discutir a escrita em si, e não ficar no simples “gosto” ou “não gosto”. Ter alguém para poder discutir sobre a motivação dos personagens, conceitos, estrutura do roteiro foi vital para concluir a obra.
Através da Maiza eu conheci o Gabriel Kolyniak [dono da Córrego, minha editora], o TW Jonas, que é fotógrafo e já teve editora, e toda uma galera com quem eu aprendi uns conceitos mais profissionais, como manutenção da face, que realmente trouxeram bagagem.
E acho que o próprio processo de amadurecimento que vem acompanhado com o acúmulo de experiências na vida.
Diria a mim mesmo para terminar o que se começou. Eu joguei poker profissionalmente, tive a chance de escrever um livro por volta dos 30 anos e não o terminei. Comecei outro aos 37 e não o terminei também. Se fosse para voltar, eu diria para terminar, independentemente do resultado. Na época eu sentia que ainda não era a hora e hoje eu entendo que uma obra, por pior que seja, quando terminada te dá uma perspectiva diferente para continuar. No fim das contas, para mim, a boa escrita vem muito de um ponto de vista único, dessa perspectiva diferente.
Outro fator importante foi conhecer o ocultismo. Ocultismo é uma ótima ferramenta para se estudar a psique humana ao longo das eras. Foi fundamental para entender como se conectar com o inconsciente coletivo através de arquétipos, minha escrita hoje é completamente diferente por causa desse estudo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu acredito estar até atrasado é um podcast em inglês. Com a pandemia comendo e sem a noite como musa inspiradora, conversar com pessoas de diversas partes do mundo e em outra língua é um caminho que eu acredito que possa me devolver essa inspiração.
É difícil, com o volume de escrita que a humanidade acumulou, algo que não tenha sido escrito, mas sendo muito específico: uma distopia brasileira, urbana, baseada nos últimos anos de bolsonarismo, com um herói que colocasse isso abaixo, numa guerrilha armada, mas talvez isso seja tão específico, que só eu possa escrever [risos].