Zainne Lima da Silva é escritora negro-feminista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Geralmente, começo meu dia atrasada. Coloco Led Zeppelin no modo soneca do celular até não aguentar mais os sons das guitarras. Levanto mal humorada, enfio qualquer coisa na boca, sem fome alguma, pego ônibus na rua de casa. A manhã é muito difícil de tragar. Meus hábitos se resumem a correr atrás dos minutos, metrôs e trens. Atravesso a periferia da zona sul para trabalhar. Não tenho folga para escrever pela manhã, nem vontade. Só desperto realmente quando encontro os olhos de alguma criança.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A noite é meu tempo de maior fertilidade. Desde o pôr do sol até seu nascer. Me sinto completa, as palavras fluem melhor. As paredes de meu quarto são forradas de poemas, por isso. A escrita me é como revelação, sempre sou pega desprevenida. Não há ritual. Estou atenta, e só. Os transportes públicos são lugares que muito me atiçam a escrita. Meus ouvidos e olhos estão abertos e o cotidiano me doa matéria prima. Obedeço. Há muita história desconhecida a ser contada.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se eu escrevesse todos os dias, ficaria intensamente deprimida. Não é comum ter essa ânsia literária dentro de mim, sobretudo porque procuro retratar coisas reais. (Retratar, observe.) Se não tenho uma escrita obrigatória, um texto encomendado, um concurso para o qual irei me inscrever, coisas assim, não sigo uma meta. Não se pode controlar epifanias, se pode? Sou espiritualista. Não tenho coragem de tornar regra o que é espiritual. Não escrevo bíblias e sou teimosa demais para seguir alguma delas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Coloco música para escrever. O que estiver me chamando atenção. Axé, sertanejo, rock, rap, samba, qualquer coisa. Gosto também de comer chocolate enquanto escrevo, mas quase nunca há chocolate. Chocolate é caro. Então, bebo leite gelado com achocolatado. Meio litro. Isso quando estou em casa. Quando não estou, tento desligar a cabeça do externo e me concentrar nos sons das palavras. Gesticulo enquanto escrevo, acho engraçado. Pareço querer segurar as palavras com os dedos. Sei disso pelos olhares estranhos acumulados, acabei prestando atenção. Se estou ouvindo música, aproveito para dançar e cantar. Dependendo do que eu esteja escrevendo, eu choro. Ou passo mal. Acontece. Essa é a minha dificuldade: ser afetada. Pesquiso pessoas. Pesquisar pessoas é pesquisar a si mesmo, também… Falar de gente e das vidas dessa gente, de suas visões de mundo, de sua literatura (tão escassa). Coisa acessível. Procuro me lembrar que não tenho obrigações com escolas ou academias. Minha responsabilidade é com as cores de meus avós.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não raramente acontece de eu ter vontade de escrever e não conseguir. É uma angústia enorme. Só tenho facilidade em escrever quando estou apaixonada, ainda não entendi que tipo de gracinha da vida é essa. Criei algumas formas de lidar com o bloqueio criativo, que são ver documentários e ler livros de pessoas que admiro. Palestras sobre temáticas as quais me interesso também funcionam. Show de música mais instrumental. Tomar sol em um lugar bonito. O que der pra fazer, eu faço, sempre buscando o virar da chave. Tenho medo das pessoas lerem o que escrevo, de pensarem que o que escrevo é autobiográfico já pelo narrador em primeira pessoa. De me tomarem como doida exagerada. Mas tenho mais medo de mim mesma, de minha autocrítica. Sou muito severa, sobretudo escrevendo contos. Ou os escrevo mal. Ou ambas as coisas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrever é um sacrifício nesse sentido. O texto sai fácil demais, chega quase pronto, mas, quando vou submeter ao meu senso de leitora, desfaço todo ele. Ou o recomeço, a depender do ponto de vista. Do mesmo texto saem duas, três versões. Me debruço até me enjoar. Nunca termino nada. Todo texto meu é rascunho de rascunho. Nessas inseguranças, peço a algum amigo para ler e me dar palpites. É costume pedir leitura quando preciso selecionar textos e fico indecisa. Quando me pedem séries de poemas ou de crônicas, por exemplo, faço isso. Cheguei a pedir comentários texto a texto de meu livro, lá enquanto apenas cogitava em publicar, para uma amiga chamada Alyne. Felizmente, meus amigos são os que mais acompanham minha escrita. Faço cara de pedinte e eles me fazem favores sorrindo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Me dou bem com a tecnologia. Ganhei meu primeiro computador aos 12 anos, a internet com 14. Sempre alimentei redes sociais. Acontece de eu postar os primeiros rascunhos do que escrevo no Facebook. Este, inclusive, é um hábito que estou tentando largar, pois, em alguns projetos, há a necessidade de estreia do texto. Quando eu posto no Facebook, muitas pessoas leem, o texto fica com roupagem velha.
Às vezes, acordo de um belo sonho e ele me leva a um poema, a alguma anotação, e coloco na parede. Escrevo onde posso – em pedaços de papel da mesa de casa, nota fiscal, cadernos de Física da minha irmã, computador, bloco de notas do celular, conversas amigas em aplicativos. Isso é uma mudança. Antes eu tinha dois cadernos de dez matérias e de papel reciclado que a gente recebia no início do ano, na escola estadual. Só escrevia neles. Todos os dias após o almoço, durante duas horas. Era o meu ritual adolescente, desse modo eu me sentia escritora. Parei quando recebi o primeiro prêmio literário. Não por essa razão, mas finjamos que sim, pela coincidência cronológica.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm dos livros e das vidas dos outros. Parece brincadeira quando conto às pessoas, mas é verdade; gosto de ouvir a conversa alheia no transporte público. Ouço e escrevo. Me contam segredos e eu os reinvento em literatura (muito bem reinventados, por sinal, pra ninguém atentar que eu sou fofoqueira). Faço exercícios, laboratórios de criação. Já cansei de sentar perto das catracas do metrô Butantã e ficar observando as pessoas passarem. Inventar histórias para desconhecidos. Uma das crônicas de meu livro, os meninos e os pipas, foi escrita em um desses momentos. Para me manter criativa, eu busco ouvir e observar pessoas que admiro. Ativismo político é uma das coisas que mais me impele à escrita. Estar viva, sendo mulher negra e pobre, é ativismo também. Transformar o bruto em subjetividade é ultrapassar o esperado. Esta é a minha forma de existir nesse mundo com alguma dignidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tomando em consideração que tenho 23 anos, passei por mudanças várias. Fui alfabetizada para ter com o que me distrair, em casa, aos cinco anos. Escrevo desde então. Meu primeiro livro, um romance, foi escrito quando eu tinha 15. Guardo pela memória afetiva, mas é muito ruim. Não tem proximidade com a pessoa que sou hoje. Tudo o que escrevi até mais ou menos os 18 anos, vejo dessa maneira. Não gosto. Se eu pudesse, diria à Zainne mais jovem que prestasse atenção em seu contexto e tivesse maior compromisso com a realidade do país. Eu tomei uma consciência política muito grande quando entrei na fase adulta, na USP e comecei a trabalhar CLT. Saí de uma produção água com açúcar para a representativa, para a de protesto. São dois sujeitos literários absolutamente distintos. Ainda bem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu quero escrever livro para crianças. Tenho duas histórias já escritas, mas abandonadas. É uma coisa que desejo muito recomeçar.
Todos os livros que eu quero ler estão escritos. Os que eu não quero também. Espero encontrar aqueles e passar bem longe destes, mas a Academia é chata e eu tenho bastante sorte no azar.