Yara Fernandes Souza é escritora, poeta e ghost writer, autora de Sádica Sílaba (Patuá).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Nos últimos dez anos eu trabalhei na indústria e minha rotina esteve muito controlada pelos horários do trabalho. Acordava às 4h20 para ir trabalhar.
Fui demitida em setembro de 2020. A partir disso, minha rotina se alterou, estou em transição para viver da minha escrita. Nessa nova rotina, acordo geralmente entre as 7h e 8h, mas sem despertador, na hora que meu corpo decidir. Tomo café da manhã com meu marido e meus gatos. E começo as escritas do dia. Sempre prefiro escrever primeiro algo meu, depois os trabalhos remunerados que eu estiver fazendo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor nos primeiros horários do dia, por isso prefiro iniciar minhas escritas diárias pelos meus textos pessoais. Os que produzo para clientes vêm depois.
Gosto de escrever ouvindo músicas instrumentais, clássicas, jazz e blues. Esses estilos parecem deixar as palavras fluírem melhor.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho nem nunca tive metas. Quando tinha um emprego não relacionado à escrita, nem sempre era possível escrever todos os dias. Mas nas minhas atuais condições e rotina eu escrevo diariamente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Sempre levo comigo pequenas cadernetas para fazer anotações de ideias, para que elas não escapem da mente. Quando trabalhava na fábrica, levava esses caderninhos nos bolsos do uniforme e salvava neles muitos embriões de textos e poemas.
Prefiro usar cadernos sem linhas, para mexer nessas ideias com maior liberdade, puxar palavras de lugar, quebrá-las, mudar o sentido na página, inserir desenhos entre as frases. Escrever, para mim, sempre foi exercitar muito essa brincadeira com as palavras, explorar seus deslimites. A ideia que germinou e foi anotada é apenas a semente.
Também leio os textos e poemas em voz alta para testar suas sonoridades.
Hoje em dia eu faço mais pesquisas ao escrever, seja poemas ou textos em prosa. Gosto de buscar, dentro de uma palavra que gostei, seus movimentos e possibilidades. Se coloco no poema um vulcão como metáfora, quero encontrar o funcionamento do vulcão, suas partes e porquês. Os resultados podem ou não entrar no texto, mas sem dúvida fazem parte do meu ato de sentir o vulcão.
Ao mesmo tempo, penso que a leitura é a principal fonte de pesquisa. Se estou escrevendo um livro de poemas sobre as mulheres, suas lutas e dores, fico um certo tempo buscando e lendo outras obras que entraram nesse tema. Se estou escrevendo contos que dialogam com o universo do terror e horror, leio obras desse gênero.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esses bloqueios ou receios são fantasmas que sempre voltam. E são sentimentos que rondam principalmente nós, mulheres escritoras. Isso porque vivemos em um mundo machista, que sempre nos disse que não somos capazes, que não somos boas o suficiente, que não devemos soltar nossas vozes. Um mundo que nos cala e nos julga desde que somos crianças. Quando um desses medos ou bloqueios me trava, eu sempre lembro a mim mesma sobre essas causas. É assim que me fortaleço.
Mas procuro sempre também fortalecer outras escritoras. E buscar nelas apoio quando estou insegura. Porque fazer isso de forma coletiva é muito melhor do que sozinha.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso e altero algumas vezes. Há textos que deixo descansarem alguns dias, para voltar a eles depois em uma nova revisão. Mas procuro não exagerar.
No caso de pequenos textos e poemas publicados em redes sociais, acabo não mostrando para ninguém antes de publicar. Já os textos mais longos ou livros, sempre busco várias leituras antes de libertá-los ao mundo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sempre escrevo tudo à mão e depois é que passo a limpo no computador. Tenho os caderninhos sem linhas para ideias de poemas. Mas mesmo os textos mais longos em prosa eu escrevo em um outro caderno maior. Para mim, a escrita surge muito mais fluida, até mesmo sensorial, quando os canais são caneta e papel.
Eu passei por um período de aprendizado e adaptação em relação às tecnologias neste último ano. Aprendi sobre marketing digital, a usar as redes sociais para divulgar meu trabalho, conheci as diversas formas de publicação que o mundo atual dispõe para escritores. Ainda estou aprendendo e quero me apropriar dessas ferramentas para levar meus escritos às pessoas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A maior parte das coisas que escrevo nasce a partir de realidades que me incomodam. Há escritos mais sentimentais ou sobre pequenos encantos da vida. Mas os incômodos e revoltas sempre foram minha matéria-prima constante.
No entanto, para além dessas realidades que me arrebatam, eu tento sempre me manter escrevendo. Gosto de participar de exercícios, oficinas e desafios de escrita, me colocar temas que não surgiriam normalmente, explorar técnicas propostas por outras pessoas. Oficinas de escrita não são apenas espaços de aprendizado, mas trocas necessárias para que possamos manter nossa escrita em movimento.
O hábito constante de ler também é uma ferramenta poderosa para a criação literária.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A principal mudança é que hoje eu me compreendo como escritora. Eu invisto nisso, priorizo minha escrita e vivo dela. Demorei muito para fazer isso.
Eu escrevo poemas desde os oito anos de idade, mas tratava a minha escrita como uma espécie de lazer, atividade para os intervalos de tempo da vida. Apenas em 2020, aos 37 anos, entendi que essa atividade é o que eu sou de verdade. Essa compreensão mudou tudo.
Certamente, se eu pudesse, abriria meus olhos de antigamente para essa verdade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero muito escrever uma narrativa longa, com traços de prosa poética. Esse projeto de romance traz elementos autobiográficos misturados a ingredientes inventados. Ainda tenho dificuldade em transpor essa ideia de livro para o papel, mas construí uma estrutura e estou testando linguagens para ele. Vai nascer.