William Soares dos Santos é professor da UFRJ e escritor, autor de “Poemas da meia-noite (e do meio-dia)” (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina matinal, mas que não necessariamente está relacionada ao fazer literário, uma vez que, além de escritor, sou professor da UFRJ, instituição a qual me dedico a maior parte do meu tempo. Algo que considero fundamental como escritor, é o hábito de ler de forma regular, por isso, em minha rotina, a leitura é algo que está sempre em simbiose com a escrita e com a minha dedicação ao magistério. Tenho a pretensão de pensar que faço parte de uma tradição de escritores brasileiros que, como por exemplo, Cecília Meireles, Eduardo Portella, Antonio Carlos Secchin, Paulo Henriques Britto, Rubens Figueiredo, dentre tantos outros, buscaram ou buscam conciliar o ato de escrever com o de ensinar. A escolha por esse caminho pode ser limitadora por um lado, uma vez que o tempo para a escrita acaba sendo, inevitavelmente, mais reduzido. Por outro lado, a simbiose entre a arte da escritura e a função do magistério, pode nos granjear a construção de saberes em diferentes espaços, nos quais podemos desenvolver diálogos com uma grande variedade de mundos sociais e de existências humanas em que pode ganhar a literatura e o magistério.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho melhor de madrugada e de manhã, mas como tenho de lidar com outras responsabilidades além da escrita, nem sempre eu consigo escrever em um horário preciso. Muitas vezes, escrevo entre as aulas e no intervalo de outras responsabilidades que tenho como professor.
Não tenho um ritual, mas, talvez, por ser um escritor nascido e alfabetizado em uma época em que ainda não existiam computadores pessoais, eu sou daqueles escritores que, na maior parte do tempo, ainda escrevem a primeira versão de seus trabalhos em um caderno. Eu sempre ando com um caderno para escrever onde quer que eu vá. Tenho mesmo um medo enorme de precisar escrever e não ter um caderno e uma caneta ou um lápis por perto, assim, geralmente, tenho um caderno em cada bolsa, pasta e mochila que tenho. Esse hábito me permite fazer da transcrição do texto para o computador uma segunda parte do processo de minha escrita. Ou seja, ao verter os meus textos para uma versão digital já estou realizando um processo de revisão e modificação do texto. Dificilmente o que escrevo no computador corresponde integralmente ao que escrevo inicialmente à mão. Por isso, o ato de escrever em um suporte como papel é fundamental para a maturação do meu texto. Desse modo, passar o texto de um suporte a outro não é, simplesmente, um ato de transposição, mas algo que faz parte do importante processo criativo da escrita do texto que produzo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
As metas de escrita que estabeleço para mim não são nunca em termos quantitativos, mas sempre qualitativos. Se estou escrevendo um livro, ou realizando uma tradução (que considero uma outra face do processo de escrever), procuro me dedicar com afinco ao que estou escrevendo, sempre buscando o melhor resultado. Eu acredito que o escritor, geralmente, é limitado para julgar o seu próprio trabalho, mas temos sempre a obrigação de darmos o melhor para os nossos leitores potenciais. Nesse sentido, acho que os escritores deveriam ter como meta não uma intensa produção, mas o desenvolvimento de textos que venham ao encontro de um diálogo com as existências das pessoas. Qualquer que seja o gênero que pratique, considero importante que o escritor estabeleça para si o compromisso de ofertar para o leitor o melhor resultado possível de seu empenho hoje. O escritor deve ser capaz de entregar o melhor de si no momento de sua escrita e de querer se superar na produção que virá. Essa percepção independe de se escrever um pouco todos os dias ou em períodos concentrados, mesmo porque eu tenho a crença de que o escritor comprometido com a sua função exerce a sua atividade em tempo integral, mesmo quando não está, aparentemente, escrevendo. Para mim, ser escritor é, sobretudo, uma forma de estar no mundo, é pensar literariamente grande parte do tempo, é imprimir o olhar de sua literatura na existência. Esse posicionamento é independente do tempo e mesmo de uma produção contínua. Cada escritor deve respeitar o seu tempo e, sobretudo, o tempo de sua escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como eu escrevo poesia e contos, eu lido com dois processos diferentes de escrita. Embora ambos possam trazem traços comuns, eu lido de forma distinta com esses dois gêneros. No meu caso, geralmente, a escritura da poesia exige mais aquilo que posso caracterizar como uma “pesquisa interna”, ou seja, a pesquisa é mais voltada para a estrutura do poema em si. No caso do conto, muitas vezes, vejo-me envolto com a exigência daquilo que posso nominar de “uma pesquisa externa”. Como exemplo desse processo eu cito o meu conto intitulado “o amor da mãe pelo filho”, publicado em meu livro Um Amor. O conto tem como pano de fundo o processo de higienização urbana por que passou o Rio de Janeiro na década de sessenta do século XX e mostra a vida de personagens que trafegam em diferentes mundos sociais de seu tempo. Eles vivenciam a destruição da Favela do Pinto, que ficava dentro do que é hoje um dos bairros mais abastados da cidade, ao mesmo tempo em que se dava a remoção de parte das pessoas da favela para os subúrbios ou para outros espaços de segregação dentro da cidade. Eu desenvolvi a história dos personagens contando, basicamente, com a minha criatividade, mas, para inseri-los no espaço histórico da cidade em transformação, tive de fazer uma pesquisa em livros e jornais da época, o que me proporcionou construir uma história que busca aliar o aspecto humano à veracidade histórica que eu buscava para conto.
Mas, é importante deixar claro que um tipo de pesquisa não exclui a outra, o que chamo aqui de “pesquisa externa”, por exemplo, não é privilégio da prosa, como o conto ou romance, prova disso é um poema meu, publicado recentemente na Revista da Academia Brasileira de Letras, no qual tematizei a questão dos imigrantes sírios. Além de realizar uma pesquisa interna ao texto que me possibilitasse trazer o lado do sofrimento humano do conflito, através de uma estrutura poética que evocasse o movimento da peregrinação, desenvolvi, também, uma pesquisa externa sobre os lugares citados no poema, bem como a respeito das condições em que as pessoas forçadas à imigração vivem quando tentam atravessar grandes percursos a pé e com escassas condições de subsistência. Assim, cada trabalho exige um tipo particular de pesquisa ou pode envolver vários tipos de pesquisa. Tudo depende dos objetivos do texto e dos efeitos que, como escritor, eu considero importante criar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que o melhor modo de lidar com essas “travas” é a reflexão e a persistência. Obviamente, cada escritor desenvolve as suas próprias estratégias para lidar com as dificuldades da escrita, que, ao final, são as suas dificuldades, únicas e que podem fazer parte de apenas um dado momento de sua existência ou de seu processo como escritor. Por isso, a importância da reflexão, porque a reflexão sobre o que impede o desenvolvimento da escrita é o que pode destrinchar o seu processo. Mas não devemos deixar de considerar que a reflexão também pode levar à dúvida sobre o fazer literário, sobre a sua relevância, construção e sentido na existência. Se o escritor deseja continuar, só resta elevar a sua persistência acima dos impedimentos, mas nunca é uma passagem simples. Às vezes, simplesmente, a vida nos nega o fazer literário. O que fazemos nesses casos é uma escolha que só cabe àquele que se encontra no centro da encruzilhada. O fazer literário é uma coisa que pode ser uma das mais difíceis experiências humanas porque ele nos cobra tempo, recursos e a nossa própria vida, mas quase nunca ele nos dá o retorno na mesma medida. Não podemos julgar Artur Rimbaud por ter abandonado a literatura em um dado momento de sua vida. Só podemos nos regozijar que ele tenha nos legado tanto. Não podemos julgar Harper Lee por ter nos dado apenas um livro em vida, mas devemos nos alegrar pelo privilégio de ler uma obra tão marcante quanto To Kill a mockingbird (O sol é para todos). Não sabemos o que impediu esses autores de continuar, se a literatura não fluiu mais ou se a vida, simplesmente, exigiu deles outras experiências em que o fazer literário não tinha mais espaço. De qualquer forma, mesmo que a desistência do caminho literário se configure, o olhar do escritor provavelmente permanece. Para os que desejam continuar no caminho são importantes a reflexão e a persistência.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu reviso os textos constantemente, praticamente a cada leitura, mas, infelizmente, quase sempre deixo passar algo que eu acho que não deveria ter passado, seja um erro de digitação, seja uma vírgula ou uma palavra ou frase inapropriada. Além disso, considero que o texto nunca está pronto. Por isso, sempre me dou a liberdade de intervir no texto, mesmo depois de publicado, fiz isso, por exemplo, na recente segunda edição do meu livro Poemas da meia-noite (e do meio-dia), mudei palavras, corrigi erros e inseri um texto de apresentação gentilmente escrito a quatro mãos por duas críticas literárias (Morgana Rech e Tânia Ardito).
Em relação aos leitores, atualmente, além de revisores e do próprio editor, tenho o privilégio de contar com a leitura prévia de minha mulher, Cláudia, que tem apoiado a minha produção literária de diversas maneiras, inclusive e, principalmente, com a sua paciente leitura e crítica daquilo que escrevo. Poder contar com essa visão do outro é algo fundamental para todo o escritor, porque é muito fácil se deixar levar pela falta de percepção de sua própria escrita. Sem outro olhar, sem a leitura do outro o escritor pode achar que está indo em uma direção e acabar em outra. Por isso, o olhar do outro é fundamental.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como coloquei acima, quase sempre, realizo as primeiras versões de meus trabalhos à mão e, depois, transcrevo essas versões para o computador. Enfatizo que esse processo não é, simplesmente, mecânico, mas faz parte de meu trabalho de transformação do texto literário.
Em relação à tecnologia, antes de qualquer consideração, julgo importante a consciência de que a folha de papel e o grafite são, por si mesmo, enormes soluções tecnológicas, que sobrepuseram outras tecnologias, como a escrita em pedaços de barro ou em pele de animais. Ou seja, escrever é uma arte que conta com milhares de anos de evolução tecnológica que tem como um de seus marcos a configuração da escrita mesopotâmica, que passa por transformações como a invenção do papel e a impressão de Guttemberg e chega às tecnologias de produção e divulgação de textos atuais.
Obviamente, a pergunta nos leva a relacionar “tecnologias”, com as novas tecnologias, que envolvem, nos últimos anos, desde os diferentes processadores de texto de computadores e outros dispositivos (tablets eletrônicos, telefones digitais, leitores eletrônicos, etc.) até a sua publicização nas diferentes redes sociais e plataformas de divulgação e venda de textos escritos (os livros eletrônicos) na internet. Acredito que a primeira consideração que devamos ter em mente é a de que qualquer tecnologia pode ajudar muito no processo de escrita e na divulgação do trabalho do escritor, mas ela pode atrapalhar também. Hoje as tecnologias podem otimizar a produção de textos, mas, também podem dar a impressão de que sem elas o processo de escrita não ganha configuração, o que não é verdade. Para alguns escritores de minha geração, escrever um texto diretamente no computador pode até ser um problema porque, entre outras questões, ele apaga com muita rapidez o processo de escritura enquanto este se desenvolve e retornar a algum elemento de uma configuração anterior, nem sempre pode ser uma opção fácil.
Outra questão das novas tecnologias é que, de certa forma, elas podem levar à ilusão de que a carpintaria do ato de escrever se limita à organização formal de um texto, levando muitas pessoas a pensarem que basta o acesso e o bom uso de recursos das novas tecnologias para fazerem delas boas escritoras. No entanto, qualquer pessoa que tenha passado pela experiência de tentar desenvolver uma escrita autoral, certamente foi levado à compreensão de que a arte de escrever exige um caminho de apreensão do fazer literário que nem sempre é fácil.
Outra questão que considero pertinente levantar é que novos programas de computador, em breve, serão capazes de desenvolver textos literários, ainda que parciais, a partir da inserção de alguns dados por parte do usuário, o que logo trará perguntas éticas sobre a autoria de um dado texto. Quem, verdadeiramente, criou o texto advindo de um programa como este? Quem inseriu os dados ou o programador que desenvolveu o aplicativo? Ou seria o próprio computador?
Essas considerações me levam a pensar que cada escritor tem de respeitar a sua forma de interagir com as tecnológicas que dispõe e deve procurar reconhecer os seus limites e reconhecer, sobretudo, que ser escritor é alguém que pode até prescindir do uso das tecnologias mais avançadas, mas que não pode prescindir de elementos como imaginação, conhecimento apurado do gênero literário que deseja praticar e da ética que envolve o fazer literário.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Acho que uma das principais ferramentas do escritor é o desenvolvimento de uma percepção apurada daquilo que está acontecendo ao seu redor. É a arguta percepção de seu próprio mundo que possibilita ao escritor o desenvolvimento daquilo que chamamos de criatividade e a criatividade é o que pode conduzi-lo pelos caminhos de sua arte. Ninguém cria algo do nada ou em um vazio, toda a criação parte de um contexto cultural, daquilo que a existência nos deu, talvez, por isso, os grandes escritores, aqueles que são capazes de abordar temas universais, falam, sobretudo, de suas experiências pessoais, locais ou íntimas. Para retomar uma célebre ideia, os bons escritores conhecem e falam de suas aldeias muito bem, por isso falam para o mundo. Acredito que seja nesta simbiose entre mundo e tentativa de escrever sobre o mundo que a criatividade se impõe. Não há fórmulas mágicas, há o contato constante e a construção com o fazer literário. É na luta com a palavra que as soluções se impõem, que aquilo que chamamos de criatividade se faz presente.
Minhas obras procuram tematizar as questões do mundo à minha volta. Sobretudo, em minha recente produção de contos, tenho procurado localizar sócio e historicamente parte significativa dos personagens que construo. Na produção poética, isso também acontece, mas tenho deixado mais espaço para a construção daquilo que posso definir como reflexões mais abertas sobre a existência. Em ambos casos, a minha criatividade é dependente de como sou capaz de olhar o mundo à minha volta. Desse modo, o estado criativo se nutre e é nutrido pelo desejo de exprimir vidas e as suas experiências e o hábito a ser nutrido é o do próprio fazer literário.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Como eu escrevo de forma literária desde os doze anos de idade (são desse período os meus primeiros poemas) eu espero, sinceramente, ter mudado muita coisa nas últimas quatro décadas e espero estar mudando sempre. A natureza da arte literária pede pela mudança, que pode envolver desde a maneira de tratar a estrutura do texto ao olhar para diferentes temáticas e perspectivas. Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos eu diria, simplesmente, para continuar, para não desistir. Não me daria nenhum conselho sobre utilizar dada estrutura ou olhar para abordar um dado assunto porque nada pode ser mais engrandecedor para um escritor do que seguir o seu próprio percurso de descobertas.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Estou muito satisfeito de me dedicar aos gêneros conto e poesia por tanto tempo. Mesmo que eu não tenha muitos livros publicados, fico feliz de como esta produção, que tem, pouco a pouco, recebido a atenção de leitores de diversos lugares do Brasil, vem sido publicada e divulgada. Tenho recebido leituras de meus textos, críticas, cartas de leitores e mesmo pedidos de livros de lugares diferentes, espaços em que só posso estar por causa da literatura. O contato com os leitores é uma das coisas mais engrandecedoras de ser escritor. No meu caso, os projetos não se atropelam ou se sobrepõem. Assim, não há desejos inconclusos. Quando o desejo se inicia, o projeto tem início com ele e ambos caminham lado a lado. Eu procuro me dedicar a cada projeto à medida de meu tempo e de minhas forças. Se eu não comecei um projeto é porque ele ainda não está pronto para ser iniciado. Cada coisa tem o seu tempo e com a maturação de um livro é a mesma coisa. A leitura de um livro é algo que acontece do mesmo modo. É impossível ler todos os bons livros escritos e cada leitor deve se esforçar para desenvolver um percurso formativo que, na maioria dos casos, é o seu percurso particular. Obviamente, oficinas e cursos sobre um determinado autor podem expandir as suas possibilidades de leitura, mas o processo de leitura sempre é algo sem fim e, quase sempre, particular. Muitas vezes, o livro de que mais precisamos já foi escrito e pode estar em nossa estante, aguardando pacientemente a nossa leitura ou, quiçá, a nossa releitura com o coração mais aberto.