Whisner Fraga é escritor.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Assim que acordo ouço uma música, depois leio algumas matérias de jornais e de páginas ditas alternativas de notícias. Essa rotina é diária. O que faço depois depende de um certo estado de espírito, mas procuro revisar algum texto escrito na noite anterior. Se não faço isso, então procuro algum livro para ler. A manhã, para mim, é o momento em que o cérebro está disposto a revisar. O que significa um momento mais racional. Escrevo à noite e tento revisar todas as manhãs. Sábado e domingo são dias diferentes, em que tento me dedicar um pouco mais à família, então a rotina é diferente. De um modo geral, ao menos para mim, a rotina em termos de trabalho é bastante benéfica, uma espécie de impulso ao raciocínio.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu prefiro escrever à noite e revisar durante a manhã. Tenho um ritual sim: escrevo sempre à mão. Faço anotações diariamente. Anoto tudo. Quando inicio um conto, poesia ou romance, faço-o sempre em uma caderneta sem pauta. O papel deve ser de boa qualidade e a tinta também. Muita gente acha que é frescura, mas não adianta ser uma caneta bic. Não que eu não escreva com uma caneta bic. Até escreveria, mas se tenho outras possibilidades, prefiro utilizá-las. O bom escritor tem de escrever e pode fazer isso com qualquer instrumento. Não é esse o ponto. E sim o meu ritual, as minhas possibilidades. Quando tenho à disposição uma boa caneta tinteiro, um bom papel, uma boa tinta, tudo isso parece me convidar ao trabalho. Caso contrário, como sou propenso à procrastinação, talvez nem a literatura fosse possível. Pois bem, inicio o conto nessa caderneta sem pauta, geralmente à noite. Depois transcrevo para o computador, já modificando, já filtrando, já, na minha concepção, aperfeiçoando o texto. Depois imprimo e deixo as frases descansarem. Imprimo uma cópia e no dia seguinte, pela manhã, reviso. Rabisco o papel, faço observações, novas anotações no caderno de folhas sem pautas. À noite recupero todo esse trabalho e vou um pouco adiante. Um ponto muito importante no ritual diz respeito à leitura e utilização do que leio em minha obra. Faço muitas anotações a respeito de todos os livros que leio e, principalmente, registro palavras que descubro nessas obras. Não importa se são palavras que já conheço, o que importa é que me cativaram naquele momento, por motivos que não me interessam. O ponto de partida para a produção de qualquer obra minha são essas palavras anotadas. E depois elas são fundamentais para a continuidade. Tudo começa com elas, trabalho por elas e elas são o sentido de tudo o que escrevo, afinal.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo todos os dias. Quando trabalhei nos romances Abismo poente e Sol entre noites, minha meta era de quatro linhas diárias. Mas aquilo era um pouco insano. Eu produzia essas quatro linhas e jamais chegava a revisá-las após prontas, tamanha a concentração e o trabalho durante o processo. Eram três horas ou mais diárias para ter três ou quatro linhas prontas. Isso é profundamente desgastante. Ao fim dessas três horas de trabalho, eu lia o resultado em voz alta. Se não estivesse ao meu agrado eu o descartava. O teste final era a oralidade, o texto tinha de soar bem, era uma grande exigência minha. Ainda é.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O início de um conto ou de um romance ou de uma poesia é sempre o ponto mais crítico e, portanto, sempre difícil. A primeira linha ou o primeiro verso tem de cativar. Não o leitor, mas o autor. Porque o autor, naquele momento, é o melhor leitor que existe. O mais crítico, o mais criterioso. Como fiz para transpor essa dificuldade? Eu anoto palavras, muitas palavras. Não consigo ler nada sem uma caneta e uma caderneta por perto. Também não consigo ver um filme ou escutar uma música sem esses apetrechos. Anoto tudo. Anoto falas de personagens de filmes, anoto trechos de letras de músicas e depois uso como auxílio para esse momento delicado, o ponto de partida. Mas, no meu caso, o que funciona é uma palavra. É ali que está o germe, é ali que está o início.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação é um problema. Mas é uma solução às vezes. Se procrastinamos é porque, de certa forma, não estamos preparados para enfrentar algo. O importante é não sofrer com isso. Esperar o momento certo. Qual é o momento certo? É aquele em que você vence a inércia, em que a vontade de rabiscar o papel supera qualquer outra vontade e se torna ação. A rotina, para mim, funciona muito bem contra a procrastinação. Já com relação às expectativas de outras pessoas, ou dos leitores, não tenho muito receio. Sempre fui um autor de poucos leitores, então por que deveria nutrir qualquer tipo de expectativa com relação a isso? Hoje estou preparado para qualquer tipo de crítica. Nem sempre estive, é verdade, mas o tempo nos ensina essa resignação, essa paciência, esse respeito com o olhar alheio. O mais complexo, para mim, é o que você citou por fim, o trabalho com longos projetos. Meu último romance eu demorei mais de seis anos para concluir. Ano passado, quando pensei que estava pronto, percebi que me enganara. Faltava um capítulo ainda. E essa pressa para terminar algo é ruim para a obra. Eu tenho de treinar a paciência, cada texto tem seu tempo. É preciso domá-lo e isso não é tarefa para um dia apenas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Certa vez tive a curiosidade de contar quantas revisões fiz em um conto. Foram 252. Achei pouco. Lendo-o depois de publicado, achei pouco. Havia mais a fazer. Acho que fui preguiçoso. Não há um número correto, mas é certo que precisam ser muitas. Ao menos comigo é assim. Pode ser que haja algum escritor que já coloca tudo no papel do jeito que tem de ser e pronto. Às vezes ele faz a revisão mentalmente. Eu faço também, mas sinto que não é suficiente. Mas é importante também guardar o texto um pouco na gaveta, deixar que ele descanse um pouco. Um mês, dois meses. Por isso estou sempre trabalhando em dois, três projetos simultaneamente. Enquanto um descansa, burilo o outro. Eu tenho sempre dois leitores de meus trabalhos. Acho importante essa peneira crítica. São pessoas impiedosas no sentido de me alertar sobre os problemas. E devem ser mesmo. Acho que não adiantaria se eu mostrasse a algum amigo mais caridoso, que não me apontasse os problemas no texto. É desnecessário, para mim, alguém só fazer elogios. Penso que elogios são um grande inimigo do artista.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu me adiantei a essa pergunta. Sempre escrevo à mão. Gosto dessa sensação de proximidade que a caneta me dá quando desliza pelo papel. Dessa intimidade. E a minha memória trabalha bem com essa tribologia. Não tenho nada contra a tecnologia, ela é útil. Trabalho com um software, por exemplo, que faz um resumo sobre a utilização de determinadas palavras. Ele faz uma contagem. Aí eu sei de cara se usei determinado termo muitas vezes. Essa é uma possibilidade fantástica, que funciona muito bem para dar uma última burilada no texto. Como tudo, a tecnologia tem sua função e seus limites.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
As ideias vêm de todo lugar. Uma manchete de jornal, um comentário, uma piada, um diálogo entreouvido em uma fila de cinema, um trecho de livro, um filme, uma música, um jogo de futebol, tudo é inspiração. O importante é anotar, anotar, anotar. Anotar tudo. As ideias vêm daí. Ouço um comentário de alguém, é tema. Por exemplo, ouço a música “Neighborhood #2”, da Arcade Fire, e de repente leio a letra: “When daddy comes home you always start a fight, so the neighbors can dance in the police disco lights”. Ora, isso não é um tema fantástico? Já vejo o início de um conto. Para mim, não há hábito melhor do que estar sempre perto da arte e o mais sozinho possível, perto apenas de minha família. Lendo sempre, vendo filmes sempre, ouvindo música sempre, assistindo a peças de teatro sempre, anotando sempre.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Quando comecei era afoito. Queria terminar logo o texto, publicar logo. Isso era da minha imaturidade, acho normal, não me chateio com isso quando penso retrospectivamente. Era parte do processo de crescimento. Hoje não publicaria os três primeiros livros. Mas também tenho um antídoto contra isso: o segundo livro eu revi completamente. Reescrevi. Pretendo fazer isso com o primeiro e com o terceiro. Se eu voltasse lá atrás, eu me diria para ter um pouco mais de calma. E não me ouviria, lógico. O importante é que o amor às palavras existe desde que nasci.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Todos os projetos que gostaria de fazer já finalizei ou estou quase finalizando. Isso é ruim, pois dá um certo medo de não ter mais o que fazer. Hoje não me importo tanto, porque sei que só devo escrever obras que julgo necessárias, ao menos para mim. Sobre os livros que gostaria de ler, mas que ainda não existem, não sei. Tenho a impressão de que li grandes autores, que me agradam, de um jeito ou de outro, e que sempre posso recorrer a eles. O livro que gostaria de ler e ainda não existe só vou descobrir quando conhecê-lo, num futuro que espero próximo. É sempre um prazer ter contato com algum livro transgressor.