Vanessa Guedes é escritora, podcaster no Incêndio na Escrivaninha e editora na Eita! Magazine.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu acordo o mais cedo possível e começo o dia devagar. Fico um tempo na cama refletindo sobre a vida em geral, meus anseios, meus prazeres. Costumo fazer uma meditação curta antes de começar o dia e me estico em alongamentos genéricos ou sigo uma sessão de yoga qualquer do youtube. Depois vou passar café, alimentar os gatos, às vezes ouvir um podcast de notícias. Também leio algum artigo ou ensaio longo de algum autor que eu gosto – às vezes pode ser um conto de ficção. Procuro ler esses textos em voz alta sempre que possível, principalmente se não forem escritos na minha língua materna.
Fazer alguma atividade intelectual pela manhã é essencial para eu pegar no tranco para fazer coisas mecânicas como juntar as tralhas fora do lugar pela casa, preparar minha mesa de trabalho, cozinhar etc.
Só depois de tudo isso eu vou fazer o que o mundo precisa que eu faça por ele.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Meu período favorito para escrever é entre duas da tarde e oito da noite. Mas escrevo em outros horários, conforme preciso me ajustar com outras coisas que a vida exige.
Meu ritual de preparação para escrita é, de uma forma muito direta, o começo do processo de escrita em si. Explico: eu foco muito na minha primeira página, sempre. Ela é minha régua e o motivo que vai me levar de volta ao texto outras vezes, para continuá-lo. Talvez seja onde eu mais gasto as primeiras horas de escrita. Eu preciso amar reler o que eu escrevo, porque eu vou ter que voltar ao texto muitas vezes ainda, seja na fase de edição pesada ou a primeira revisão para conferir sentido a narração como uma peça única. Para tornar esse processo mais prazeroso para mim mesma, eu me dedico a escrever uma primeira página na qual eu vou gostar muito de reler quantas vezes forem necessárias.
Meu ritual de preparação sempre começa com a fase de quebrar a cabeça para encontrar uma única frase que vai ditar o tom do meu texto e vai coroar a história com seu tema principal. É uma tarefa bem pesada intelectualmente, que involve desde escutar álbuns inteiros de música, assistir filmes, ler poesia, até reler passagens de prosa de outros autores que me provocaram reflexões profundas; tudo isso imediatamente antes de sentar para escrever. Outra parte do ritual, essa bem mais prática que a outra, é deixar minha mesa de trabalho limpa e organizada, com uma garrafa de água enorme ao lado – eu bebo muita água enquanto escrevo. Parece muito com uma atividade física às vezes.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu separo muito minha escrita entre ficção e não-ficção. A última é um exercício diário tão frequente que já faz parte da minha natureza; eu sigo o dia inteiro tomando notas curtas sobre as coisas que eu vejo, sinto, percebo. Vou anotando num caderno que levo comigo sempre ou no meu diário pessoal. Às vezes tenho só o celular na mão, então escrevo num aplicativo de notas chamado Joplin, que é sincronizado com meu Dropbox (assim eu consigo ver as notas no Joplin do meu computador também). São essas anotações que eu uso de base para escrever ensaios, crônicas e reflexões em geral. Reservo as quinta e sextas para reunir tudo e dar uma forma mais consistente a esses textos, torná-los uma unidade. Recentemente comecei a publicá-los numa newsletter. Receber feedback dos leitores logo depois que publiquei o texto é um bálsamo, então também tenho reservado um tempo para ler as respostas sobre meus textos e isso virou parte da rotina de escrita. Geralmente tomo notas do que as pessoas comentam, gosto de observar que tipo de emoções e pensamentos minhas palavras provocaram. Anoto sobre o que eu acho que funcionou – inclusive os diferentes dias e horários em que o texto foi publicado, quando as pessoas reagiram e comentaram etc. Encaro isso como uma parte da atividade de escrita já, como se fosse um pós-publicação.
Já a minha rotina de escrever ficção é mais desregrada e intensa. Tem dias que eu tenho uma ideia e anoto no caderninho. Outros dias, eu não só tenho a ideia como a história inteira se forma na minha cabeça – esse é o momento mais crítico. Eu sento no computador e escrevo até a hora que eu aguentar, como se fosse tomada por um surto criativo, daqueles que as pessoas romantizam.
Eu também gosto de escrever em grupo. Então, procuro me manter ativa em pelo menos um grupo de escritores que se encontram pelo menos uma vez por semana para escrever junto. Agora estou escrevendo com duas amigas inglesas. A gente faz uma videochamada onde comentamos por cerca de 10 minutos sobre o que vamos escrever. Aí marcamos no cronômetro sprints de escrita de 20 a 30 minutos, onde a gente senta e escreve em silêncio, com intervalos de 5 minutos para comentar sobre o texto ou falar banalidades. Nesses encontros a escrita é livre e eu uso o momento para resgatar ideias aleatórias que eu anotei no caderninho e dou vida a elas. Esse hábito me mantém afiada para sentar e escrever com propriedade quando eu preciso.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Para ficção, eu geralmente começo com um tema específico. Desenho a estrutura da história dividida em 3 partes básicas (começo, meio e fim) e vou remodelando, espandindo, enquanto entro na vida dos personagens e nos lugares que componho. Vou também relendo minhas notas de não-ficção para entender onde diabos eu quero chegar com aquela história nova.
Eu amo a parte de pesquisa. Ela pode entrar em qualquer momento do processo, mas é mais comum que entre antes de qualquer ideia ser concebida. Eu adoro ler sobre coisas que não entendo, ou que são completamente distintas do meu dia a dia, pois é daí que eu faço links com formas de expressão que vão parar no texto. Quando tenho personagens que são muito diferentes de mim (o que é basicamente o tempo todo) eu procuro referências em depoimentos, vídeos, obras, etc, de pessoas reais que se parecem com eles.
Para não-ficção, eu começo sempre escrevendo sobre algo que me causa desconforto ou prazer. E dali eu vou desmembrando o assunto à exaustão – para então, depois, cortar sentenças, reescrever frases, remodelas ideias, diminuir o tamanho do texto e fazê-lo mais palatável. Escrever não-ficção é um exercício intenso de encadeamento de ideais, me faz estabelecer um diálogo de muitos níveis entre a emoção e a racionalidade. Gosto muito dessa montanha-russa.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação e o bloqueio estão aí para nos comunicar coisas. É fácil lidar com eles quando você não tem prazo de entrega. Eu geralmente tiro uma soneca. Ou vou lá aprender a tocar um instrumento novo, saio para correr. Tem que deixar o cérebro respirar. Às vezes eu me submeto a fazer trabalhos que não fazem sentido para mim ou que me cansam de maneiras impensáveis. Eu geralmente prefiro estar escrevendo do que fazendo qualquer outra coisa. Então, fazer coisas que não gosto ou que faço muito mal me colocam em uma nova perspectiva.
O problema do bloqueio só é um problema quando há prazo. Aí eu vou dizer uma coisa polêmica: nesse momento não existe bloqueio nem procrastinação. É que nem qualquer outro trabalho, eu sento e faço. Ninguém espera o chaveiro estar inspirado para que ele venha trocar a fechadura de uma porta que precisa ser aberta agora. E tem vezes que você precisa se posicionar como um profissional da escrita, assim como o chaveiro é o profissional das chaves. As palavras que lutem para abrir as ideias. Uma cabeça treinada com hábito geralmente encontra as saídas.
Projetos longos são mais intensos para mim, mas eu procuro determinar no mínimo um dia específico da semana para trabalhar neles; não preciso obrigatoriamente escrever o texto, mas posso usar esse momento para pesquisa ou rascunhar a linha do tempo da história, escolher nomes e datas, conferir se as coisas estão coerentes, etc.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não tenho um número fixo de revisões, mas costumo fazer muitas. Eu gosto de fazer uma revisão básica quando termino o texto, depois eu deixo ele descansar. Sou uma pessoa muito esquecida, inclusive por isso escrevo o tempo todo. Então, permito o texto ficar ali marinando intocado. Depois de um tempo eu abro-o de novo – esse tempo pode durar de semanas até meses, ou mais de um ano – e dali começo a edição pesada, que inclui reescrever, às vezes até trocar o ponto de vista, experimentar.
Tenho amigos que lêem quase tudo o que eu escrevo antes de publicar. Mas também gosto de mostrar o texto para pessoas que parecem com o público a quem ele é destinado. Acho esse feedback essencial para completar meu processo de edição.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu escrevo com o que eu tiver à disposição no momento. Papel, caneta, celular, computador.
Gosto de usar o processador de texto, como o Libre Office ou o Google Docs, na fase da primeira edição do rascunho. Assim posso eu mesma fazer comentários e sugestões enquanto reviso, mas também posso pedir para outras pessoas darem pitacos sem mexer no texto diretamente.
Eu sou programadora por profissão, então costumo usar algumas ferramentas de programação para versionar meu texto – como o git. Mas serve melhor para textos curtos e contos.
Tenho um teclado chamado Alphasmart One que me permite escrever de modo offiline. O Aphasmart tem uma tela pequena onde você vê o que digita, depois pode plugar com um cabo USB num computador e apertar a tecla ‘send’ que envia seu texto puro para o computador como se você estivesse digitando na hora. É bom para escrever em casa, concentrada, sem me sentir tentada a espiar redes sociais e perder o foco.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Me mantenho criativa quando troco ideias com outras pessoas. Tiro inspiração de praticamente tudo. Gosto de ver filmes obscuros, ler artigos acadêmicos das mais variadas áreas, consumir obras de autores que escrevem em outros gêneros. Aprendo muito sobre encadeamento de ideias lendo poesia, por exemplo. Música é outra fonte de inspiração Esses tempos eu provei uma bebida pela primeira vez, por indicação de um amigo. Quando ele me perguntou o que eu achei, eu mandei para ele uma música. Acredito que temos muitas outras formas de expressão além da palavra e me sinto privilegiada de poder usar todos os meus sentidos para compreender o que se passa na imensidão que é a experiência de ser humana.
Também me inspiro para descrever emoções ao assistir séries de drama, ler livros que mergulham fundo na tarefa de descrever sentimentos sem nome. É importante ficar de olho não só no passado, nos grandes autores, mas nos nossos contemporâneos, essa gente que tem tanto a dizer sobre as coisas que nós todos estamos vivendo aqui, agora.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que a prática de meditação mudou muito minha escrita. Parece que agora eu consigo ter espaço entre minhas ideias, como se elas pudessem respirar melhor.
Se eu pudesse dar uma dica para eu mesma no passado, eu diria para eu começar a experimentar diferentes práticas de meditação o mais cedo possível. Faz toda a diferença hoje em dia.
Outra coisa que eu falaria para mim mesma é que eu estava certa em demorar tanto para começar a publicar ficção. Hoje eu olho para aquelas primeiras histórias, que ficarão para sempre na gaveta, e fico aliviada de não ter sido abofada em publicar o que eu poderia ter publicado há dez anos atrás.
Às vezes me pergunto se daqui vinte anos eu vou olhar para os textos que estou publicando agora e me arrepender. Mas dou de ombros. Isso é um problema para o meu eu do futuro.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu adoraria criar um passado mítico para o lugar onde eu nasci. Temos tantas lacunas na nossa história, como todas as pessoas latino-americanas, que eu acho que temos muito potencial para preencher esses espaços de formas criativas. Acho que merecemos, sabe? Se a reparação histórica não vem pela política ou por ações afirmativas, que comece a vir pela ficção então. Que povoe a mente das pessoas de ideias novas, para que a gente consiga construir um tempo presente melhor, para que a gente tenha espaço para imaginar.
Os livros que eu gostaria de ler e não existem são esses: os que preencheriam esses espaços em branco do passado com ideias do presente, com esperança e promessas de que ainda possamos imaginar o futuro que queremos agora.